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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Utopias, eutopias e distopias


Nada do que é social e humano é mais real que as utopias. Na sua vertente eutópica, as utopias constituíram sempre o fundamento simbólico e mítico sem o qual nenhuma forma de organização social se sustenta, justifica ou sobrevive. E criam, tanto na vertente eutópica como na distópica, o vocabulário da revolução e da mudança: sem os amanhãs que cantam (ou choram) teríamos, em vez de História, um presente intemporal e eterno - como o dos faraós ou o de Francis Fukuyama.
Aldous Huxley publicou o seu Brave New World em 1932. George Orwell, que não tinha em grande conta este livro ou o seu autor, publicou 17 anos depois a sua própria distopia, Nineteen Eighty-Four. Entre estas duas datas interpôs-se a Segunda Grande Guerra: não admira que na primeira a técnica básica da opressão do Estado fosse a manipulação genética e que na segunda, depois do descrédito em que o regime nazi lançou o eugenismo, as técnicas principais da opressão sejam a lavagem ao cérebro, a crueldade gratuita e a manipulação da linguagem.
Apesar desta e de outras diferenças, os dois textos foram muitas vezes lidos, nas décadas seguintes, como os dois pólos - um hedonista, outro o oposto disto - duma mesma distopia, a que os sinais dos tempos davam e dão plausibilidade. Esta distopia bipolar é identificável em grande parte com a ideia de modernidade; e hoje a invocação da modernidade, sempre na boca dos políticos e dos capitães da indústria, soa aos nossos ouvidos tanto a ameaça como a promessa.
Do texto de Aldous Huxley, o que entrou na linguagem corrente, traduzido para todas as línguas, foi o sobretudo o título: "admirável mundo novo". A expressão é utilizada em toda a parte mesmo por quem nunca leu a obra: das mesas dos cafés aos blogues, das crónicas dos jornais aos debates nos media. Do texto de Orwell, toda a gente utiliza, própria ou impropriamente, expressões como Big Brother, newspeak (que até teve, em português, honras de tradução: "novilíngua"), ou ainda doublethink. Uma coisa é certa: nenhuma destas expressões se teria conservado até hoje no uso corrente se não tivesse referentes no real quotidiano.
A mesma sorte não teve 1985, de Anthony Burgess, publicado em 1978. Um texto anterior de Burgess, também ele distópico, é de longe mais conhecido, talvez pela versão filmada que dele fez Stanley Kubrik: A Clockwork Orange. 1985 recupera alguns temas e tropos deste texto e apresenta-se como um balanço crítico de Nineteen Eighty-Four. Divide-se em duas partes: um ensaio sobre o texto de Orwell e a construção duma distopia alternativa, imaginada por Burgess 29 anos mais tarde. A frase final da primeira parte do livro é: 1984 is not going to be like that at all. Frase corajosa, vinda dum escritor que admirava e respeitava o objecto da sua crítica. E é com ela que Burgess nos autoriza a fazermos nós também o balanço crítico da sua alternativa, decorridos mais que outros tantos anos desde a sua publicação.


Pode ler o texto completo no meu blogue de apoio TEXTOS LONGOS

Nota: Durante os longos dias que demorei a escrever este texto, não deixei de acompanhar os textos a todos os títulos notáveis que o Ramiro Marques tem estado a publicar no ProfEducação, nomeadamente a série "Há um plano para imbecilizar as novas gerações." Não é paranóia: há mesmo esse plano. Espero que a leitura ou releitura dos livros que aqui comento ajude a clarificar as estratégias de marketing político que o apoiam.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Que fazer com tanta riqueza?

Segundo a revista Visão desta semana, o Produto Interno Bruto do planeta duplicou na década que agora, jornalisticamente, termina. Esta duplicação teria permitido qualquer um dos seguintes resultados:

1ª hipótese: duplicar em termos médios o rendimento dos habitantes do planeta, o que poderia ter sido feito:
a) na mesma percentagem para todos, mantendo o nível de desigualdade;
b) em percentagem maior para os mais pobres, diminuindo a desigualdade;
c) ou em percentagem maior para os mais ricos, aumentando a desigualdade.

2ª hipótese: diminuir para metade, também em termos médios, o tempo de trabalho dos habitantes do planeta
a) diminuindo os horários semanais,
b) alargando os períodos de férias,
c) baixando a idade de reforma
d) e/ou aumentando o desemprego.

O que aconteceu na realidade não tem a ver com nenhuma inevitabilidade histórica ou demográfica nem com o funcionamento "normal" do mercado: foi um facto puramente político, isto é, teve tudo a ver com relações de força.

A história do "primeiro produzir, depois distribuir" é, como a última década provou, uma treta. Na próxima década o PIB do planeta pode duplicar de novo, ou triplicar, ou até decuplicar: se as relações de força não se alterarem, nada disto resultará em qualquer diminuição nas desigualdades ou em aumento dos salários, alargamento dos tempos livres ou melhoria da segurança no emprego.

Pelo contrário: os economistas do regime, as estrelas do empresariado e e os comentadores encartados têm saturado os media com os mesmos avisos que já faziam há dez anos, e há vinte: é preciso moderar, ou até diminuir, os salários; é preciso e inevitável aumentar a idade de reforma e o tempo de trabalho semanal; é preciso e inevitável "flexibilizar" - ou seja, precarizar ainda mais - o emprego; é preciso e inevitável diminuir as prestações sociais e dificultar-lhes o acesso; é preciso e inevitável competir sem quaisquer barreiras com os países onde se fuzilam sindicalistas, como se esta competição alguma vez pudesse ser igual ou justa.

É preciso que na próxima década as relações de forças se alterem: é espantoso ver como as "inevitabilidades" se dissipam sempre que isto acontece. E não vão ser os partidos ditos socialistas, trabalhistas ou social-democratas que o farão a partir de cima: temos que ser nós, a partir de baixo. We, the People, como se escreve na Declaração de Independência Norte-Americana. O Povo Soberano: trabalhadores, consumidores, contribuintes, eleitores.

E para começar, podemos apoiar a greve dos funcionários dos hipermercados no próximo dia 24. O que está em causa nesta greve é muito simples: os patrões querem testar a eficácia do celerado Código de Trabalho que um sempre obediente Parlamento lhes ofereceu; os trabalhadores querem ter a liberdade de gerir as suas próprias vidas.

É possível que esta greve não tenha grande adesão: a relação de força não é favorável aos grevistas e muita gente, sem dúvida, irá trabalhar contrariada.

Mas contra os consumidores não têm os empresários qualquer poder de retaliação. Boicotemos os hipermercados e as cadeias de supermercados no dia 24. Se não nos for possível fazer as nossas compras noutro dia, façamo-las no comércio tradicional.

O pequeno comércio pode ajudar nesta luta. Para os patrões, será vantajoso manter os estabelecimentos abertos tanto tempo quanto possível. Para os empregados, trabalhar 12 ou 14 horas neste dia poderá ser tão vantajoso como não as trabalhar para os seus colegas das grandes superfícies; para os consumidores, serão desvantajosos os preços, mas vantajosa a variedade dos produtos disponíveis (numa mercearia fina da Baixa podemos comprar coisas que não há em nenhum hipermercado).

Não é preciso ser de esquerda, e muito menos de extrema-esquerda, para cumprir este dever cívico: basta saber um pouco de aritmética elementar, ter um mínimo de vocação para a liberdade e conservar um resquício de humanidade no coração. E não estar disposto a ser, daqui a dez anos, mais pobre num mundo mais rico.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Desglobalização

O que está a acontecer no Mundo é o que se pode ler aqui.

Mas em Portugal os economistas do regime continuam a preconizar os velhos remédios que quase mataram o doente: salários baixos, insegurança no emprego, asfixia do Estado, desregulamentação da economia, a parafrenália toda do desastre.

E o BCE não ajuda nada: por alguma razão querem lá o Vítor Constâncio... Desconfio que o modelo americano se vai manter na Europa por muito tempo depois de os americanos o terem deitado para o lixo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Caras perdemos nós, coroas ganha o patrão

Lembram-se de quando a inflação era uma ameaça que impedia o aumento de salários? Se os salários aumentassem demais, diziam-nos os economistas do regime, isso ia aumentar os custos das empresas e consequentemente os preços, do que resultaria, diziam eles, que os salários ficariam na mesma em termos reais.

Pensavam que éramos parvos e que julgávamos que os salários são o único elemento da estrutura de custos de produção. Mas adiante: agora que os preços estão a baixar, e que há quem tema a deflação, seria de esperar que se aproveitasse a conjuntura para aumentar salários. Faria sentido: a deflação tornar-se-ia menos provável, a procura aumentaria e com ela as encomendas, as empresas manter-se-iam mais facilmente em funcionamento e até a produtividade, com um pouco de sorte, podia melhorar: impedidas de se refugiar nos salários baixos, os patrões não teriam outro remédio que não fosse investir, finalmente, na gestão profissional e na inovação.

Sendo os trabalhadores os principais pagadores de impostos em Portugal, melhores salários significariam maiores receitas para o Orçamento de Estado sem necessidade de agravar a carga fiscal.

E estava ao alcance do governo forçar um aumento generalizado dos salários: bastava para tal aumentar significativamente os funcionários públicos e tirar partido do efeito de arrastamento que isto acarretaria.

Mas o que dizem agora os economistas do regime é exactamente o mesmo que diziam antes: Os salários têm que subir pouco, ou ficar congelados, ou até baixar. Vítor Constâncio põe nesta advertência toda a sua autoridade como governador do Banco de Portugal; Teixeira dos Santos diz o mesmo com a sua autoridade de ministro; Silva Lopes e César das Neves com a sua autoridade mediática; e o Primeiro-Ministro cala-se.

Só não explicam porquê. Dantes, ainda alinhavavam uma razão: pouco convincente, mas percebia-se. Agora, os salários têm que se manter baixos porque... porque... põe a televisão mais alto para ver ver se o homem explica porquê... não, não explicou, ou então fui eu que não entendi. Pareceu-me que era porque sim; ou então porque se tivessem salários mais altos os portugueses começariam a ter outras exigências. Mas devo ter percebido mal, não pode ser isso.

Ou será que pode?

sábado, 28 de novembro de 2009

Novo excerto traduzido de J. M. Coetzee


Sobre Tony Blair

A história de Tony Blair podia ter sido tirada inteirinha de Tácito. Um rapazinho como tantos outros da classe média com todas as atitudes correctas (os ricos têm o dever de subsidiar os pobres, as forças armadas devem ser mantidas sob controlo, os direitos civis têm que ser defendidos contra a intrusão do estado) mas sem bases filosóficas e reduzida capacidade de introspecção, e sem outra bússula que não seja a ambição pessoal, embarca na viagem da política, com todas as distorções a que esta sujeita quem a faz, e acaba por se tornar um entusiasta da ganância empresarial e um pau-mandado dos seus senhores em Washington, fingindo lealmente que não vê nada (não ver o mal, não ouvir o mal) enquanto os seus agentes na sombra assassinam, torturam e "desaparecem" pessoas sem quaisquer entraves.

Em privado homens como Blair defendem as suas acções dizendo que os seus críticos (sempre designados como críticos de sofá) se esquecem que neste mundo longe do ideal a política é a arte do possível. E vão mais longe: a política não é para maricas, dizem, entendendo-se por maricas quaisquer pessoas que revelem relutância em comprometer os seus princípios morais. Por natureza a política é incompatível com a verdade, dizem eles, ou pelo menos com a prática de dizer a verdade em todas as circunstâncias. A História há-de dar-lhes razão, concluem - a História com a sua visão de longo prazo.

Tem acontecido pessoas recém-chegadas ao poder jurarem a si próprias praticar uma política de verdade, ou pelo menos uma política que evite a mentira. É possível que Fidel Castro tenha sido em tempos uma destas pessoas. Mas como é breve o tempo até as exigências da vida política tornarem impossível ao homem no poder distinguir a mentira da verdade!

Tal como Blair, Fidel dirá em privado: É muito fácil para os críticos fazer julgamentos lá do alto, mas não sabem a que pressões eu estava sujeito. O que estas pessoas aduzem sempre é o chamado princípio da realidade; as críticas que lhes são feitas são sempre utópicas, irrealistas.

O que as pessoas normais se cansam de ouvir aos seus governantes são declarações que nunca são exactamente a verdade: um pouco aquém da verdade, ou então um pouco ao lado da verdade, ou então a verdade com um efeito que a faz sair da trajectória. As pessoas estão ansiosas por alguma coisa que as livre destas ambiguidades incessantes. Daqui a sua fome (uma fome moderada, devemos admitir) de ouvir o que outras pessoas capazes de se exprimirem articuladamente e exteriores ao mundo político - académicos, homens de igreja, cientistas ou escritores - pensam sobre os negócios públicos.

Mas como pode esta fome ser saciada por um mero escritor (para falar só de escritores) quando o domínio dos factos ao seu dispor é geralmente incompleto ou incerto, quando até o seu acesso aos chamados factos se faz através dos media integrados no campo de forças da política, e quando, muitas vezes, e devido à sua vocação, está mais interessado no mentiroso e na psicologia da mentira do que na verdade dos factos?

(Nota minha: Este Tony Blair não faz lembrar ninguém no panorama político português?)

Engenheiros ou classicistas?

Uma coisa é dizer que precisamos de mais engenheiros que classicistas; outra é dizer que precisamos mais de engenheiros que de classicistas. A diferença entre estas duas afirmações está em que a primeira releva do bom senso e a segunda da mais completa falta de visão.

De engenheiros, precisamos aos milhares (se alguns deles forem, além de engenheiros por profissão, classicistas por gosto, tanto melhor: serão certamente melhores engenheiros). De classicistas, talvez só precisemos de umas dezenas.

Mas oito alunos a aprender Grego no Secundário, só oito a nível nacional, parece-me muito pouco. Poderá dar-se o caso de o País estar em dificuldades mais por falta de classicistas, historiadores e filósofos do que por falta de engenheiros?

No Público, uma entrevista com o economista Jacques Sapir

Está aqui.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Universidade Lda.

Este excerto, apressadamente traduzido, de Diary of a Bad Year de J. M. Coatzee foi publicado originalmente como comentário a este artigo do João Rodrigues, a que cheguei através do Ladrões de Bicicletas.

Sempre foi um pouco mentira que as universidades fossem instituições que se governam a si mesmas. Não obstante, o que aconteceu às universidades nas décadas de 80 e 90 não deixou de ser vergonhoso, já que, sob a ameaça de verem cortados os seus financiamentos, aceitaram ser transformadas em empresas comerciais, nas quais os professores que anteriormente desempenhavam as suas funções em soberana liberdade se transformaram em funcionários, assediados pela obrigação de cumprir quotas sob a vigilância de gestores profissionais. A questão de os antigos poderes do professorado poderem vir a ser recuperados suscita as maiores dúvidas.

No tempo em que a Polónia estava sob o regime comunista, havia dissidentes que davam aulas à noite em suas casas, realizando seminários sobre escritores e filósofos excluídos do cânone oficial (por exemplo, Platão). Não circulava dinheiro, embora possam ter tido lugar outras formas de pagamento. Se quisermos que o espírito da universidade sobreviva, algo de semelhante terá de se realizar nos países em que o ensino terciário foi inteiramente subordinado à lógica dos negócios. Por outras palavras, a verdadeira universidade poderá ter que se mudar para os lugares onde habitam as pessoas e conferir graus académicos cuja única sustentação esteja nos nomes de quem assinar os certificados.

Comentário meu: Excluir Platão do cânone não é muito diferente de excluir John Maynard Keynes; estaremos a chegar a um mundo em que as verdadeiras universidades sejam clandestinas?

domingo, 22 de novembro de 2009

Vale a pena este blogue

Nuno Anjos Pereira é outros dos muitos bloggers que provam que há, fora do Ministério e das ESE's, quem saiba pensar a educação em profundidade e sem recorrer a ideologias pré-formatadas.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Corrupção

Permitam-me a auto-citação: a corrupção é um imposto, e os portugueses só a toleram (por vezes até a admiram) porque não se dão conta que o pagam.

O tema está em discussão há tempo suficiente para se ter estabelecido na sociedade, nos meios de comunicação e na classe política um esboço de consenso sobre os três pilares em que tem que assentar um combate efectivo à corrupção: fim do segredo bancário, criminalização do enriquecimento ilícito e impedimento de os ex-titulares de poder político exercerem cargos em empresas afectadas pelas suas decisões anteriores.

Todos sabemos a luta que tem representado a eliminação do segredo bancário, e o pouco que se avançou nesta matéria.

Conhecemos também a resistência determinada e desesperada do PS à criminalização do enriquecimento ilícito, resistência esta para que não encontra melhor argumento do que uma alegada inconstitucionalidade resultante duma alegada inversão do ónus da prova. Desculpa esfarrapada, esta, sobejamente desmontada por vários juristas, e de entre eles, de forma particularmente clara, por Magalhães e Silva no «i» do passado dia 12 de Novembro. Passo a citar:

Ora o crime de enriquecimento ilícito pode ser formulado nos seguintes termos: é punido com a pena de x anos de prisão o agente público que adquirir bens em manifesta desconformidade com os rendimentos fiscalmente declarados e sem que se conheça outro meio de aquisição lícito. E caberá ao Ministério Público fazer prova de tudo: (i) dos bens adquiridos e seu valor, (ii) dos rendimentos fiscalmente declarados, (iii) da manifesta desconformidade entre uns e outros, (iv) de não ser conhecido outro meio de aquisição lícito. O acusado terá o ónus de provar que, afinal, existe uma causa lícita de aquisição que não era conhecida - herança, bolsa, totoloto, euromilhões.

Ora o ónus de prova, em matéria criminal, sempre se distribuiu assim: a acusação prova o ilícito e a culpa, o acusado os factos que possam excluir uma coisa ou outra - provado o homicídio, é o arguido quem tem de provar a legítima defesa; provado o furto, é o acusado quem tem de provar o estado de necessidade.

Onde, então, a inversão do ónus de prova?!

(Só tenho uma objecção à formulação proposta: porquê restringir a lei a "qualquer agente público"? Porque não "qualquer cidadão"? Não há por aí muitos agentes privados com fortunas inexplicadas?)

Mas adiante: pergunta a seguir o cronista de que tem medo, afinal, o PS, sabendo que a lei nunca seria retroactiva. Respondo eu: se o PS não tem razão para temer o passado, só pode temer o futuro; e isto diz-nos tudo sobre a forma como tenciona governar-nos enquanto for poder.


Mas não podemos esperar melhor do PSD. Vejamos o que tem o seu líder parlamentar a dizer à Focus sobre aquilo a que chamo acima o terceiro pilar do combate à corrupção. Pergunta-lhe o entrevistador se o PSD não faz associação entre a tutela governativa e a colocação de dirigentes partidários nas empresas [que estão a ser investigadas no processo Face Oculta]. Aguiar Branco responde no seu melhor politiquês:

A questão que deve ser debatida é a da responsabilidade política de quem nomeia para funções tuteladas e que deve ter depois a atitude consequente, quando se verifica que os nomeados têm actuações contrárias à transparência e às funções que exercem.

Traduzindo para português vernáculo: as nomeações são para continuar e quando alguma manigância se tornar especialmente escandalosa arranja-se um bode expiatório. Suponho que o PS e o CDS não poderiam estar mais de acordo com isto.

A legislatura ainda mal começou e já temos um elemento de avaliação pare ela: o Bloco Central tudo fará para combater a corrupção desde que não a combata.


terça-feira, 17 de novembro de 2009

Em contra-mão na autoestrada

Suponhamos, por um voo louco da imaginação, que o governo da República Portuguesa tinha uma política educativa. Uma tal política resultaria de uma opção sobre o que melhor serve o bem comum: deve o sistema educativo ser sobretudo um sistema de ensino, como querem muitos professores e uma parte significativa da sociedade civil? Deve ser uma fábrica de mão-de-obra, como sugerem muitos empresários e alguns economistas? Deve ser um instrumento de engenharia social, como querem, e têm conseguido impor, os tecno-burocratas do ministério?

Imaginemos em segundo lugar que o governo optava por uma destas hipóteses, ou por uma combinação das três que fosse clara, coerente e explícita. Imaginemos ainda que esta opção dava à componente "ensino" a prioridade que o bom-senso lhe atribui. A primeira questão prática que surgiria seria: o que fazer para que os alunos aprendessem melhor?

Mas ao fazermos esta pergunta verificaríamos que ainda havia decisões políticas a tomar. Com efeito, quando dizemos "os alunos" estamos a falar duma média, e esta média tanto pode melhorar actuando sobre a parte como actuando sobre o todo. Esta decisão não é técnica, mas política, e implica a opção por um de três cenários: um a que chamarei "elitista", outro "populista" e outro "exigente".

No cenário "elitista" tratar-se-á de melhorar significativamente as aprendizagens dos alunos que já aprendem bem, cuidando de não piorar demasiadamente as dos outros. No cenário "populista" tratar-se-á de melhorar as aprendizagens dos que aprendem mal, empurrando os outros para fora da escola pública. No cenário "exigente" tratar-se-á, ainda mais que no "populista", de reduzir a diferença entre os melhores e os piores; assumindo porém a obrigação de melhorar também as aprendizagens dos melhores.

Para termos melhores aprendizagens precisaremos, entre outras coisas, de melhores escolas. Sublinho: entre outras coisas. E para termos melhores escolas precisaremos, mais uma vez entre outras coisas, de melhores professores.

Deixo para outra ocasião a qualidade das escolas e as outras condições que referi e trato aqui apenas da qualidade dos professores. Nesta fase do processo já estará resolvida a questão do que se entende por um bom professor: bom professor é o que ensina bem. Esta definição decorrerá naturalmente duma opção política que dê prioridade ao ensino. Mesmo a questão de ser melhor elevar a média actuando sobre os melhores (ou, em "empresarialês", promovendo a "excelência"); ou actuando sobre os piores; ou actuando sobre todos - decorrerá da decisão política paralela já tomada em relação aos alunos.

Para obter melhores professores seria necessário agir em sede de formação, de recrutamento e de motivação; para aferir os resultados desta acção seria necessário uma avaliação adequada aos fins estabelecidos. Não precisamos de um modelo perfeito: os modelos perfeitos não existem. Precisamos, sim, de um processo de avaliação que seja um meio e não um fim em si mesmo, e de um modelo de avaliação que seja um ponto de chegada e não um ponto de partida. A esta avaliação e a este modelo de avaliação eu não chamaria, se existissem, "moda" nem "fetiche".

Isabel Alçada parece ser muito mais sensata e simpática do que Maria de Lurdes Rodrigues; mas do velhinho que anda em contra-mão na autoestrada eu não quero saber se é simpático e sensato ou antipático e estouvado: quero, sim, medir o perigo que representa para os outros condutores.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Intersecções de interesses


Precisamos dos sindicatos, mas não podemos deixar que sejam eles a ditar as regras do jogo. Temos que ver muito bem onde é que os interesses deles se intersectam com os dos professores, onde se intersectam com os do Ministério e onde se intersectam com os dos partidos (que não incluí no esquema acima para não complicar).

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Rosebud

Não sei se foi pelos anos ou pelo Natal. Tinha eu oito ou nove anos quando o meu pai me ofereceu uma história em doze volumes de Henry Dalton & Philip Gray sobre as "autênticas façanhas de Anton Ogareff, o maior aventureiro eslavo". Um dos meus irmãos recebeu uma obra em quinze volumes dos mesmos autores: A Volta ao Mundo por Dois Aventureiros.

Não sei quantas vezes li e reli as duas histórias ao longo da minha puberdade. Quando eu e o meu irmão adquirimos alguma capacidade de crítica literária e deixámos de lhes dar importância, foram-se perdendo volume a volume até pouco restar delas quando saímos de casa.

Há dias, passei por um alfarrabista e descobri que tinham a colecção completa do Anton Ogareff e que era muito provável que conseguissem arranjar a da Volta ao Mundo. Foi um encanto.

Comparo-me agora, meio século depois, com a criança que tinha aprendido com estas leituras que em tempos, na Rússia, houvera senhores cruéis e mujiques oprimidos; que os Balcãs eram uma região politicamente perturbada (certo) e que a Libéria era um oásis de liberdade e progresso num continente miserável (errado); que havia no mundo a Legião Estrangeira, a selva amazónica, antros de ópio na China, piratas na Malásia e Tugues, seguidores de Khali, na Índia.

Agora, ao reler as aventuras do russo, verifico com alguma surpresa que me lembrava razoavelmente das peripécias violentas, mas de nenhuma peripécia amorosa E são pelo menos dois sub-enredos amorosos; convencionais, sentimentais, rudimentares, mas sub-enredos. Não me lembrava sequer do nome de nenhuma personagem feminina a não ser de uma, Nadia, que depois de chicoteada por ordem do tirano consegue exercer sobre ele uma terrível vingança.

Não sei se saltei as páginas em que se narravam os sofrimentos e as alegrias dos apaixonados, ou se as li sem que se gravassem no meu espírito. A aventura empolgava-me, mas o amor passava-me ao lado.

Pergunto a mim mesmo se hoje alguém daria a ler histórias como estas a uma criança de nove anos. Estou em crer que não. Seria politicamente incorrecto mostrar a violência tão de perto e apresentar como herói uma personagem que é, pelos padrões de hoje, um terrorista - ainda que a nobreza do seu carácter seja imensa, e profunda a baixeza do príncipe, contra quem se revolta de armas na mão. E seria pedagogicamente incorrecto confrontar uma criança com noções - neste caso o enamoramento - que ela ainda não é capaz de compreender.

Mas a verdade é que estas histórias não me fizeram, que eu saiba, mal nenhum. Aquilo que não compreendia, ignorei-o, ou interpretei-o à minha maneira: não me fez confusão. Mas compreendi muito bem que a tirania é execrável, e que o derrube dos tiranos pela força é um direito dos homens.

domingo, 1 de novembro de 2009

O que aprendi com as críticas

Era minha intenção escrever hoje um texto em que explicitasse e desenvolvesse a referência ao neotaylorismo que faço no título da minha proposta de avaliação. Fica para depois.

Para já, quero agradecer as críticas que recebi - tanto as negativas como as positivas, tanto as que me parecem acertadas como as que me parecem ao lado, tanto as que me parecem mais viscerais como as que me parecem mais reflectidas. Nenhuma me pareceu ofensiva ou mal intencionada e todas me foram úteis.


Uma crítica recorrente foi a imperfeita correspondência entre a secção inicial do texto e o restante articulado. O demónio, já se sabe, está nos pormenores; e fiquei a saber que, se a minha intenção fosse fazer vingar politicamente a proposta que faço, teria que trabalhar muito para conciliar melhor os princípios de que parto com a sua aplicação concreta.


A segunda lição, decorrente desta, é que é muito mais fácil obter a concordância dos outros em matéria de princípios abstractos do que na sua aplicação concreta. Esta é uma lição importante, não só para mim, como para qualquer pessoa que intervenha no debate educativo. É na transição entre a teoria e a prática que as dissensões aparecem e as solidariedades se desfazem. O governo sabe disto, e não foi por acaso que Francisco Assis se foi colocando em posição de atacar aquilo a que chamou "coligações negativas". A defesa contra estas tácticas implica a obediência a um lema: rigidez e radicalidade no abstracto, flexibilidade e moderação no concreto; e isto especialmente no debate com quem está do nosso lado. Rigidez e radicalidade para que as nossas posições não percam coerência nem sentido; flexibilidade e moderação para que não se criem fracturas onde não as há.

Terceira lição: qualquer referência aos alunos como possíveis avaliadores, mesmo que envolta em todas as precauções e salvaguardas possíveis, toca um nervo sensível dos professores. É natural que assim seja: as feridas que sofremos são demasiado recentes e ainda estão abertas; o nervo está ainda exposto; e nem sequer está garantido que o processo de cura esteja em vias de começar. Continuo a acreditar que este debate deve ser feito, mas talvez seja sensato deixá-lo para mais tarde. Para já, deixo apenas, relacionada com este tema, uma proposta de reflexão: já que nenhum avaliador pode ser totalmente idóneo, que tal alargar o mais possível o leque de avaliadores, criando do mesmo passo um sistema de freios e contrapesos que os condicione a todos?

A última lição, que aprendi por via indirecta e por processos mentais mais inconscientes que deliberados, nasce da oposição entre adequação e perfeição que fui levado a estabelecer, e desagua na solução duma perplexidade para a qual ainda não tinha encontrado resposta satisfatória: de onde nasceram os monstros do modelo de avaliação e do ECD? Como foi possível inscrever na realidade dois objectos tão desconformes a ela?


Uma das respostas aventadas por Santana Castilho - a abismal ignorância de uma ministra que nem sequer sabe o que é uma escola nem para que serve - é sem dúvida correcta, mas não chega. Se lhe adicionarmos a propensão tecnocrática de José Sócrates, o seu fascínio bacoco com os meios em detrimento dos fins, ter-nos-emos aproximado mais um pouco da solução, mas continuaremos longe dela. A vassalagem da nossa classe política a corporações que nada têm a ver com o propalado interesse público (como a indústria das ESE's e o lóbi dos editores) é mais uma explicação. A moda de que tudo deve funcionar "como as empresas" - quando nem as empresas funcionam "como as empresas" - é outra peça do puzzle. O poder das burocracias intermédias do Ministério, e a torre de marfim em que vivem e se multiplicam, é outra.


A peça que me faltava é aquilo a que Goya chamou "o sonho da razão", que "engendra monstros". Maria de Lurdes Rodrigues deixou-se envolver num sonho de perfeição e de absoluto; quis medir tudo até à última casa decimal; pensou, como pensam os astrólogos, que o rigor dos números e a complexidade dos cálculos podem compensar o absurdo das premissas. Em vez de procurar remédios adequados para todos os males do ensino, tentou impor uma solução impossivelmente perfeita para apenas um - que apresentou como se fosse o único.

O sonho da razão engendra monstros, com efeito. O próprio rigor pode entrar em delírio. Mas isto é matéria para outro texto: o tal que tinha previsto escrever sobre o neotaylorismo.

sábado, 31 de outubro de 2009

Uma fracção duma fracção

O modelo de avaliação de professores que proponho na mensagem anterior não é perfeito e não vai ser posto em prática. Eu próprio, ao relê-lo, encontro nele ingenuidades e incoerências. Não tenciono corrigi-las - quod scripsi scripsi - porque não afectam o documento nos seus propósitos essenciais, que são criar, por um lado, uma base de discussão do modelo actual e das alternativas possíveis e, por outro, um ponto de partida para outro debate que transcenda a questão do modelo de avaliação e do ECD.

Pela mesma razão não tenciono responder às críticas que me foram feitas, apesar da consideração que me merecem os seus autores e do mérito que reconheço a muitas delas.

Suponhamos, então, que o meu modelo era perfeito e que era aplicado. Ou que se descobria e aplicava um outro que fosse perfeito. Resultaria daqui uma melhoria evidente e imediata na qualidade dos professores?

Nem por sombras. Um bom modelo de avaliação é condição necessária para que tenhamos melhores professores, mas está longe, muito longe, de ser condição suficiente. Uma melhoria significativa da qualidade dos professores implicaria, logo na fase de recrutamento, que se fosse buscar às universidades os melhores graduados - competindo as escolas, para tal, com outras carreiras e com outras opções de vida, incluindo a emigração que nos está a privar, dia a dia, dos nossos jovens mais qualificados. A carreira docente precisaria, para atrair estes jovens, de ser muito mais atraente do que é hoje - quer em termos de remuneração, quer de estabilidade, quer de probabilidades de progressão, quer em prerrogativas - e destaco, de entre estas, a que mais afronta a tradicional inveja e o tradicional anti-intelectualismo dos portugueses: tempo livre para reflectir, estudar e adquirir o ascendente cultural que, mais do que qualquer outra coisa, confere autoridade aos professores. É esta, de resto, a moeda utilizada em todo o mundo, à falta de dinheiro, para pagar aos professores.

Se a carreira docente não for suficientemente aliciante para atrair os jovens mais qualificados, então qualquer modelo de avaliação, mesmo que perfeito, acabará por escolher apenas os melhores de entre os piores.

Mas a melhoria da qualidade dos professores não depende só da conjugação de um bom sistema de avaliação com um bom sistema de recrutamento. Há outros factores, tais como a qualidade da formação (quer inicial, quer contínua), a satisfação no trabalho (que implica a noção, tantas vezes ausente do trabalho dos professores, de que o que se está a fazer é útil e produtivo), o empowerment, o reconhecimento social, etc. Uma melhoria significativa da qualidade dos professores não é fácil de conseguir e não será já para amanhã.

Admitamos, porém, como hipótese, que conseguimos dotar o sistema de ensino de professores significativamente melhores que os actuais. Resultará isto numa melhoria correspondente nas aprendizagens?

Para responder a esta pergunta basta fazer o thought experiment proposto, salvo erro, pelo Ramiro Marques (se ele me estiver a ler, peço-lhe que me forneça o link para incluir aqui): trocar os alunos da melhor escola do ranking pelos da pior e ver os resultados ao fim de um ano lectivo. Concluiremos imediatamente que para a boa aprendizagem concorrem decisivamente a atitude que os alunos trazem para a escola, a acção ou inacção dos pais, as condicionantes socio-culturais, etc. Uma política que vise melhores aprendizagens terá que actuar sobre todos estes factores e não apenas sobre a qualidade dos docentes.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Por uma avaliação dos professores sem derivas neotayloristas

I

Princípios gerais

1. A Escola Republicana é uma instituição da Sociedade Civil e tem por função transmitir entre gerações o património científico, cultural, artístico e técnico adquirido pela sociedade e pela humanidade em geral. Deste modo, a conservação e a inovação são os dois pólos do seu ethos, que se realizará, quer na conservação e continuação do património adquirido, quer na sua contestação crítica.

2. O conhecimento (saber e saber fazer) e a sua transmissão entre gerações constituem a prioridade da escola e a sua razão de ser. No âmbito do conhecimento, o conhecimento contextualizante e estruturante tem prioridade sobre o conhecimento de utilidade imediata, que é efémero e se torna rapidamente inútil.

3. A função de educar compete em primeiro lugar à família e subsidiariamente à sociedade em geral, não devendo ser assumida pela escola a não ser na medida em que esta educa ensinando. Ao arrogar-se o direito de intervir sobre todos os aspectos da pessoa do aluno e sobre todas as esferas da sua vida, a escola substitui-se às famílias e ao tecido social e usurpa uma autoridade que não lhe cabe legitimamente, tornando-se assim uma instância totalitária.

4. O professor tem por função ensinar. Quaisquer outras funções que assuma ou lhe sejam atribuídas serão subsidiárias desta e orientadas para ela.

5. A avaliação dos professores deve incidir na proficiência com que exercem as funções que lhes são próprias. A proficiência em funções ou tarefas subsidiárias é presumida a partir do resultado da avaliação naquelas, e, se tiver que ser sujeita a procedimentos avaliativos específicos, sê-lo-á a título supletivo e residual.

6. O professor é um trabalhador assalariado, obrigado a uma prestação definida e limitada em troca de um salário também ele definido e limitado.

7. O professor é também um profissional, obrigado a uma deontologia historicamente definida e legitimada. A deontologia docente tem como valores centrais o conhecimento, a racionalidade, o pensamento crítico e a conformidade do ensinado com o real. Enquanto avaliador de alunos, é direito e dever do professor fazer prevalecer critérios de racionalidade e de validade científica sobre quaisquer outros critérios de avaliação que lhe sejam determinados por via hierárquica.

8. A condição profissional do professor prevalece, para efeitos disciplinares e de avaliação, sobre a sua condição de assalariado.

9. A progressão na carreira depende por um lado da avaliação do professor e por outro da sua experiência profissional, estando as duas vertentes integradas entre si segundo uma fórmula simples, clara, racional e unívoca. É além disso subsidiária da avaliação prévia da escola.

10. Só um cidadão pode formar cidadãos. O direito-dever de o professor ser avaliado articula-se com o seu direito-dever de avaliar a escola e as políticas educativas que lhe cabe executar, sem prejuízo da legitimidade dos órgãos de soberania para terem a última palavra em relação a estas.

11. A avaliação é um instrumento de determinação do mérito no âmbito duma relação legal ou contratual definida pela sua natureza e pelos seus limites, e não tem que considerar comportamentos exteriores ou suplementares a este âmbito. Este princípio decorre do facto de o trabalhador ser uma pessoa soberana em relação a si própria, não podendo o seu tempo de vida ser tratado como propriedade do empregador. Consequentemente, a avaliação, tal como a definição de objectivos, não pode ser instrumento de um qualquer neo-taylorismo, nem utilizada para defraudar, subverter ou contornar direitos definidos por lei ou por contrato.

domingo, 18 de outubro de 2009

They still don't get it

Na comemoração dos cem anos do Liceu Camões, o Presidente da República falou em educação e formação.

Não falou em ensino.

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sábado, 17 de outubro de 2009

Avaliar o Ministro

Não sabemos ainda quem vai ser o próximo ministro da educação, mas sabemos já uma coisa em relação a ele: quando tomar posse, a primeira coisa que os professores vão fazer é sujeitá-lo a uma avaliação diagnóstica.

Não será uma avaliação emaranhada, irracional, vingativa, opaca, ideologicamente motivada ou determinada por qualquer agenda oculta. Os professores sabem melhor que ninguém que uma tal avaliação seria contraproducente e lesiva, não só dos seus próprios interesses, como dos da Escola e da República.

Será uma avaliação com poucos parâmetros, e transparentes. Sabe o senhor ministro o que é uma escola e para que serve? Vê a escola como uma instituição da República, ou, de um modo redutor, como uma empresa ou repartição pública? Tem o senhor ministro como prioridade o ensino? Tem o senhor ministro alguma noção da carga de trabalho dos professores? Caso tenha, está disposto a não mentir sobre ela ao País? Tem algum plano exequível para a reduzir significativamente com base numa hierarquia de prioridades que seja racional e reflicta verdadeiramente (em vez de o invocar em vão) o interesse público?

Terá finalmente a humildade de entender que ele, o seu ministério e a burocracia que o sustenta são elementos acessórios do sistema, mas os professores e os alunos são elementos essenciais? Eu sei que esta humildade é difícil para um político, mas neste caso tem que ser: ou o próximo ministro da educação faz dela a base do seu trabalho, ou fracassará como todos os outros antes dele.

Os professores vão estar atentos. Vão avaliar cuidadosamente o ministro. E esta avaliação terá consequências. Se o senhor ministro passar, os professores trabalharão com ele para conseguir um ensino melhor. Se chumbar, trabalharão contra ele para que o ensino não piore ainda mais.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A desigualdade é o paraíso?

(Actualizado e corrigido a 13.10.09 às 19:38)

Dos tempos em que entrava em polémicas com os blogues neoliberais, recordo especialmente uma circunstância que, com a repetição, acabou por adquirir o se quê de cómico.
Disposto a admitir, pelo menos como hipótese, que a desigualdade pode ser benéfica porque, aumentando a motivação, aumenta a produção de riqueza, punha-se-me a questão de saber que grau de desigualdade se pode considerar óptimo tendo em conta este benefício.

Fiz esta pergunta centenas de vezes aos nossos neoliberais blogosféricos; e nunca, mas mesmo nunca, obtive uma resposta. Se tivesse perguntado uma vez sem obter resposta, poderia levar este silêncio à conta de o meu interlocutor preferir abordar outros aspectos, que considerasse mais relevantes, do meu comentário; ou se tivesse perguntado algumas vezes obtendo uma ou duas respostas, poderia concluir que os meus interlocutores, considerando embora a questão incómoda, faziam ao menos um esforço para não se furtarem a ela. Ou poderia pensar que, não tendo uma resposta quantificada para me dar, não lhes ocorresse dar-me uma resposta qualitativa, sujeita a um critério plausível.

Mas o carácter sistemático deste silêncio, a absoluta ausência de excepções, permite-me tirar conclusões sobre o que poderia ser a resposta sem fazer processos de intenção e sem recear atribuir a outrem, arbitrariamente, ideias que não são as suas. Estou hoje convicto que há na blogosfera quem acredite que a desigualdade económica é um bem em si mesma, que não há qualquer limite a partir do qual ela se torne contraproducente, e cujo lema não expresso é "quanto mais desigualdade, melhor."

Abandonando, por improdutiva, a tentativa de obter dos neoliberais blogosféricos uma opinião sobre os eventuais limites éticos e práticos da desigualdade económica, comecei a procurar respostas noutras fontes. O princípio de que parti era ético e político e valeu-me várias vezes a acusação de moralista: a desigualdade económica começa a ser inaceitável a partir do ponto em que gera desigualdade política. Posso não ter inveja da fortuna de um Américo Amorim; nem lhe disputo o direito de ter mais poder nas empresas em que tem mais acções do que eu. Disputo-lhe, sim, o excesso de poder numa República em que a sua participação é exactamente igual à minha. Portanto, das duas, uma: ou se consegue eliminar a convertibilidade recíproca entre a riqueza e o poder político - e nenhuma sociedade conseguiu, até hoje, mais que mitigá-la - ou se limita por lei, em nome da igualdade política, o grau de desigualdade económica que uma sociedade democrática pode tolerar sem entrar em colapso.

Tinha, portanto, um argumento ético-político contra os supostos méritos da desigualdade; mas, não sendo economista (e muito menos macroeconomista) não tinha qualquer argumento científico ou técnico. Não estava em condições de contradizer a asserção neoliberal de que a desigualdade resulta necessariamente em mais riqueza e acaba por beneficiar todos, mesmo os que ficam no fundo da escala por um processo de trickle down. Isto cheirava-me a falso, mas uma mera intuição não é argumento contra raciocínios aparentemente escorreitos e aparentemente baseados na realidade das coisas.

Depois descobri na net blogues de economistas que divergem daquilo que eu julgava ser o consenso neoliberal. O primeiro, por ordem cronológica, foi o Ladrões de Bicicletas, que ainda hoje sigo assiduamente. Depois veio O Valor das Ideias, que sigo atentamente apesar (ou por causa) da divergência de opções partidárias que me separa do Carlos Santos. Assinalo, ainda, de entre os blogues portugueses que sigo regularmente, o Da Minha Profunda Ignorância.

Uma característica simpática comum a estes blogues é a ideia que a economia não é assunto só de economistas. Concordo: quem tem alguma coisa a dizer sobre o fato não é só quem o talha, mas também quem o veste.

Da minha ainda mais profunda ignorância, comecei a dar-me conta da existência de estudos segundo os quais a desigualdade económica pode ter efeitos opostos aos que os neoliberais lhe atribuem. Quantos e quais são estes estudos? Quem são os seus autores? Que recepção crítica têm tido? Em que factos se baseiam? Em que medida são validados pela comunidade científica? Estas são as perguntas para as quais comecei a procurar respostas.


No âmbito desta procura, apareceu-me, fortemente recomendado, este livro, que, pela informação que tenho, não só trata em profundidade o assunto que me interessa, como compendia muitos outros estudos efectuados ao longo de décadas. Encomendei-o assim que pude; e, enquanto ele não chega, vou-me entretendo a ler as recensões doutros leitores. Aqui ficam alguns excertos, o primeiro dos quais me foi particularmente penoso ler porque destaca Portugal como um case study em matéria de desigualdade económica.

Simply put, [the authors'] method is to plot the level of health related/social problems against the difference in income of the world's twenty richest countries. Cleverly, this is repeated for each of the fifty United States. Each problem is dealt with separately, the data being represented in graphic form. Wherever there is a large differential betwixt the two ends of the income scale, drug abuse, alcohol abuse, obesity, mental problems, and even teenage pregnancy occur more frequently, people live for a shorter period and commit suicide more regularly. Additionally, but just as damningly, children are not as well educated and less literate . So which countries score well on this scale? Interestingly, if not entirely surprisingly, Scandanavia and Japan have can be seen to have the narrowest of divergence betwixt highest and lowest incomes and, indeed, boast the best psychological health of all. Conversely and rather predictably, those nations with the widest gulf between rich and poor, are thus plagued by the highest occurrence of health-related and social problems. Here's the rub; those countries are, in fact, Britain, the USA and Portugal.

Desta outra recensão, impressionou-me especialmente o facto de os 20% mais pobres entre os suecos terem uma esperança de vida superior à dos 20% mais ricos entre os britânicos, levando-nos a pensar que, exactamente ao contrário do que dizem os neoliberais, a desigualdade prejudica não só os mais pobres, mas a sociedade toda, incluindo os mais ricos:

This is the most important book yet on inequality's effects on society. The authors, Richard Wilkinson (Professor Emeritus at the University of Nottingham Medical School) and Kate Pickett (Senior Lecturer at York University) show how inequality affects the vast majority of the people in every country. They show that the way to deal with society's problems is not to preach at individuals, or to blame young people, parents or teachers. As they write, "The evidence shows that reducing inequality is the best way of improving the quality of the social environment, and so the real quality of life, for all of us." They point out that more equal societies have lower levels of mistrust, illness, status insecurity, violence and other stressors. "Social structures which create relationships based on inequality, inferiority and social exclusion ... inflict a great deal of social pain", worsening all society's problems. Over and again, the USA does worst, and Britain next worst. As they prove, health and social problems are more common in countries with bigger income inequalities. Sweden has lower death rates than England and Wales for working age men and for infants, across all occupational groups. The death rate in its poorest 20 per cent is lower than in our richest 20 per cent! Obesity rates are lower in more equal societies. Women's status and child wellbeing are better in more equal societies, which provide more paid maternity leave. In more equal societies, children experience less bullying, fights and conflict. More equal societies like Finland and Belgium have better educational levels across all social groups than Britain or the USA. Drug use and mental illness are less common in more equal societies; so are teenage births and divorce. More equal countries have shorter working hours. More equal societies also have more social mobility: of eight developed countries, the USA had least social mobility. US bankruptcy rates rose most in those states where inequality had risen most. Less equal societies are more punitive. California has 360 people serving life sentences for shoplifting. In Britain, every day 40 people are sentenced to jail for shoplifting. Countries that spend less on education spend more on prisons. Since 1980, US spending on prisons has risen six times faster than spending on schools. The authors note, "More unequal countries also seem to be more belligerent internationally." If Britain were as equal as Japan, Norway, Sweden or Finland, we would all live a year longer, we would have seven more weeks of holiday every year, mental illness, teenage births, obesity, imprisonment rates and murders would all be halved. The authors conclude, "If you want to know why one country does better or worse than another, the first thing to look at is the extent of inequality. There is not one policy for reducing inequality in health or the educational performance of school children, and another for raising national standards of performance. Reducing inequality is the best way of doing both." How do we achieve this more just society? To their credit, the authors don't suggest by just voting for it, or waiting for the government to do it for us. They write that we must "stand up to the tiny minority of the rich." We need to recruit to our trade unions, because the more trade union members there are, the more equal the society. If we want a better society, we will have to work for it.

Uma nota final: a imagem que apresento no início deste post não é a do livro que encomendei, mas da edição em paperback, que ainda não foi editada. O subtítulo sofreu uma alteração entre as duas edições. Escolhi esta imagem e não a da edição em hardback porque é de melhor qualidade. Em resposta ao primeiro comentário que recebi, acrescentei um link que permite chegar à página relevante da Amazon.co.uk clicando no título deste post.





domingo, 11 de outubro de 2009

Utopia, radicalismo, extremismo: a "sovietização" de Portugal

Há dias, Francisco Louçã contou, na televisão, o caso de um terreno que foi comprado por um milhão de euros para ser vendido seis horas depois por quatro milhões. Algo se deve ter passado nessas seis horas para justificar esta subida de preço - e passou-se, de facto: a autoridade pública reclassificou o dito terreno de agrícola para urbanizável.

Louçã não mencionou nomes, mas não precisava: bastou mencionar o município para qualquer português do Norte medianamente informado ficar a saber quem são os políticos e empresários envolvidos. Nem eu preciso de mencionar lugares: a prática é de tal maneira recorrente em todo o País que seria injusto particularizar um caso.

A proposta do BE para acabar com estas situações (e, como se pode ler aqui,acabar com elas é não só possível, como urgente) consiste em fazer reverter para a esfera pública todas as mais-valias que resultem de decisões da autoridade pública. Na legislatura que agora termina, foi apresentada uma proposta de lei neste sentido, e ainda agora estou à espera duma explicação plausível e que se possa dizer em público para o voto contra do PS. Anunciou Louçã que vai voltar a apresentar a proposta na nova legislatura: sempre quero ver com que argumentos os outros partidos a recusarão.

Os argumentos dos crackpots de direita que infestam a blogosfera, esses posso prevê-los facilmente: que a proposta é utópica; que é radical e extremista; que conduzirá directamente à transformação de Portugal numa República Soviética.

Utópica não é. Utópico é o que não existe em nenhum lugar, e a apropriação pública das mais-valias resultantes de decisões públicas é norma corrente nos países desenvolvidos. Em Espanha áté está consagrada na Constituição.

Radical e extremista, também não. Pelo contrário, poucas políticas têm reunido um consenso mais amplo entre políticos, filósofos e economistas - de David Ricardo a Milton Friedman, passando por John Stuart Mill e Winston Churchill.

Resta o fantasma da sovietização. Mas a medida nem sequer é anti-capitalista: pelo contrário, combate um dos maiores impedimentos do mercado livre, que é o rent seeking. Não estou a dizer que o BE tenha qualquer simpatia pelo mercado irrestrito; mas no caso vertente até está a favorecer objectivamente o mercado livre.

E por ironia quem está, neste aspecto, a pôr empecilhos ao mercado é a direita dita liberal. Vamos a ver como vai ser na próxima legislatura.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O meu palpite

José Sócrates vai tentar alianças com o PSD e CDS para continuar a governar à direita; mas, como não é suicida, não dará qualquer indicação neste sentido antes das eleições autárquicas.

5 de Outubro

É bom que haja um dia para comemorar a existência da República Portuguesa - e não Portugal SA. E é uma coincidência feliz que no mesmo dia se celebrem os professores - que são construtores, e não destruidores, da res publica.

domingo, 4 de outubro de 2009

Livro Branco da Educação: reivindicações profissionais (por oposição a laborais) dos professores

Num comentário a um post do Ramiro Marques, que ele depois teve a gentileza de publicar neste outro post, fiz referência à necessidade de um Livro Branco da Educação com origem na classe docente, livro este que, assumindo um cariz reivindicativo, não se limitasse às reivindicações estritamente laborais, reflectindo antes a visão da classe sobre o interesse público e sobre a sua acção na prossecução desse interesse. Não me ficaria bem, tendo sugerido um Livro Branco, não dar uma contribuição, ainda que modesta, para que ele viesse a existir; e por isso publico este índice, que não pretende ser mais do que um work in progress, que será modificado e completado ao longo do tempo de acordo com as críticas e achegas que venha a receber e com a minha própria reflexão. As revisões e acrescentos, resultantes, quer da minha própria reflexão, quer destas achegas, aparecerão a azul e em itálico. A data será modificada ao longo do tempo de modo que este post apareça sempre no topo da página.


Índice

1. Pressupostos: o que é uma escola e para que serve

1.1. A Escola: instituição social, repartição pública ou empresa?
1.2. Escola pública generalista e escolas especializadas
1.2.1. Escola pública generalista
1.2.1.1. Do conhecimento e da sua hierarquização: saberes contextualizantes, estruturantes e instrumentais
1.2.1.2. Do património científico, literário, cultural e artístico: papel da escola generalista na sua conservação, transmissão e produção. Escola e trabalho. Escola e Universidade
1.2.1.3. Da transmissão de valores: racionalidade e pensamento crítico.
1.3. Civilização e Economia
1.4. Da escola autónoma
1.5. Neutralidade política, religiosa e moral da escola pública

2. Do essencial imediato: as medidas urgentes
[A minha ideia inicial era que este segundo capítulo fosse o primeiro, porque trata do mais urgente. A minha principal razão de queixa contra Maria De Lurdes Rodrigues e os ministros que a antecederam é, com efeito, não terem feito nada para combater os três vícios centrais do sistema, dos quais decorrem todos os outros: pedagogia delirante, burocracia asfixiante e incivismo endémico. Maria De Lurdes Rodrigues não só não os combateu, como os agravou. Mas optei pela ordem lógica em vez da cronológica, e é por isso que este capítulo aparece em segundo lugar.]

2.1. O pensamento único em educação e a hegemonia política do pedagogismo
2.2. Centralização, burocracia e profusão legislativa
2.3. Do incivismo na escola.

3. Das pessoas
3.1. Do núcleo essencial: os professores e os alunos
3.1.1. O bom professor
3.1.2. O bom aluno
3.2. Da envolvente: família, funcionários, comunidade e autoridade pública
3.3. Papel da família. Duas centralidades complementares: da família na educação e da escola no ensino.
3.3.1. Escolaridade obrigatória e direito ao ensino doméstico
3.4. Não é o que a escola pode fazer pela comunidade, é o que a comunidade pode fazer pela escola.
3.5. Da autoridade pública: a melhor ajuda é não atrapalhar

4. Especificidade da função docente
[Relevante, nesta matéria, é por exemplo
este texto publicado pelo Ramiro Marques no ProfAvaliação.]
4.1. Profissionalismo e deontologia
4.2. Trabalho subordinado e deveres disciplinares
4.3. Prevalência dos deveres deontológicos sobre os deveres disciplinares

5. Condições de trabalho
5.1. Equipamentos e materiais
5.2. Remuneração
5.2. Horários e tempos de trabalho
5.3. Doenças profissionais e desgaste
[6. Conclusão: a profissionalidade
6.1. A profissionalidade é o contributo específico dos professores para o bem público
6.2. A profissionalidade é o principal direito dos professores]


Actualização (3/10/09 às 12:04): Wegie e Ramiro Marques põem
aqui em dúvida a utilidade de um Livro Branco. Respondi-lhes que havia uma diferença entre um livro branco gerado bas bases e um livro branco gerado nos gabinetes, mas fiquei a pensar. A designação "livro branco" ocorreu-me em contraposição a "caderno reivindicativo". Não é que eu conteste a utilidade ou a necessidade dos cadernos reivindicativos: as pessoas podem e devem defender os seus direitos, se necessário contra a autoridade do Estado e até contra a invocação, quase sempre capciosa, do interesse público.

Trata-se, sim, de os professores, enquanto agentes duma instituição central da sociedade civil e enquanto detentores de conhecimentos especializados relevantes para a prossecução do bem público, terem o direito e o dever de reivindicar não só em seu próprio nome, mas em nome da instituição da qual são parte essencial.

Está em aberto, portanto, a designação do documento. "Livro Branco da Educação?" "Caderno Reivindicativo das Escolas Portuguesas?" Ou, mais modestamente, "Os Professores e o Interesse Público: Uma Proposta de Política Educativa"?

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

PS: meio milhão de votos a menos

Não vou entrar aqui na discussão sobre quem ganhou e quem perdeu estas eleições. A meu ver, esta questão é como a do copo meio cheio e do copo meio vazio: digam os interessados o que disserem, têm sempre razão, e daqui resulta que tudo o que dizem é irrelevante.

Um facto incontroverso é que o PS perdeu meio milhão de votos. Isto tanto pode ser compatível com a reivindicação duma vitória como com o reconhecimento duma derrota. Tudo depende das causas dessa evolução, que são o que nos poderá permitir prever se estamos perante um acidente de percurso ou perante uma tendência que se prolongará no futuro. E ainda é cedo para analisar essas causas.

Como professor do ensino público, gostaria de poder dizer que os quinhentos mil votos a menos do PS se devem ao pogrom sobre as classes profissionais; mas os professores são só 150.000, menos de um terço dos votos que o PS perdeu; e as outras classes letradas, além de menos numerosas, foram menos hostilizadas.

Como homem de esquerda, gostaria de poder afirmar que a descida se deveu ao Código do Trabalho que o PS traz acorrentado ao tornozelo como uma bola de ferro; mas lá está a subida do CDS, autor original desta lei, para me obrigar a encarar com cautela esta hipótese.

O CDS, por seu lado, gostaria de atribuir a descida do PS à preocupação dos portugueses com a criminalidade, a segurança e a imigração. Esta explicação pode ser parcialmente verdadeira, mas explica menos de metade desta descida.

O mais provável é que os três factores tenham contribuído, em maior ou menor proporção. O único factor que não contribuiu, quase de certeza, é aquele que o PS mais tem invocado: a defesa do bem público contra os interesses particulares. E isto por duas razões: está por provar que os interesses dos profissionais letrados conflituem com o bem público (pelo contrário, há razões para acreditar que têm largas zonas de intersecção com ele); e se há coisa de que o PS não se pode vangloriar é de ter combatido, em nome do bem público, os interesses privados da oligarquia financeira e do capitalismo rentista.

Causas semelhantes costumam ter consequências semelhantes. Se o PS mantiver, na próxima legislatura, os ataques soezes à sociedade civil (demonizada sob o epíteto de "corporações"); se continuar a tomar o partido do capitalismo corrupto contra os cidadãos em geral; e se não der uma resposta às preocupações legítimas do populismo de direita (contribuindo assim para desmascarar a agenda oculta, essa sim ilegítima, que este possa ter); se não der sinais claros de se querer demarcar do centrão dos interesses - a consequência será uma nova descida eleitoral. Talvez não tão acentuada como a que sofreu ontem, que pode ter aproximado o partido do seu núcleo irredutível; mas assim mesmo uma descida.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Almost Thou Persuadest Me

Nunca me ocorreu votar CDU, mas o Jörg Nickl enviou-me um email que quase me convenceu. Ei-lo:
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Em quem confiaria à guarda o seu dinheiro?

José Sócrates

Manuela F. Leite

Paulo Portas

Francisco Louçã

Jerónimo de Sousa


Tem de sair de casa. A quem confiaria os seus filhos?

José Sócrates

Manuela F. Leite

Paulo Portas

Francisco Louçã

Jerónimo de Sousa


Precisa de ajuda e confiar um segredo a alguém?

José Sócrates

Manuela F. Leite

Paulo Portas

Francisco Louçã

Jerónimo de Sousa


A quem compraria um carro usado?

José Sócrates

Manuela F. Leite

Paulo Portas

Francisco Louçã

Jerónimo de Sousa


Tire as conclusões das respostas que deu e encontrará a pessoa certa em quem votar.


O Jörg não dá qualquer indicação de voto: eu é que verifiquei, com alguma surpresa, que a minha resposta a quase todas estas perguntas seria Jerónimo de Sousa. A excepção é a última, porque um carro posto à venda pelo Francisco Louçã seria provavelmente melhor e mais recente; mas por outro lado Jerónimo de Sousa teria feito uma manutenção mais cuidada e pelas suas próprias mãos.

Confiaria na Ferreira Leite no papel de avó. No Sócrates e no Portas, nem pensar. Em papel nenhum.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Programas eleitorais

Na Alemanha, o Partido Social-Democrata propõe-se desmantelar a pouco e pouco a escola a tempo inteiro; em Portugal, o Partido dito Socialista ufana-se de a ter instituído. Na Alemanha, o Partido Social-Democrata quer sujeitar a impostos as operações bolsistas e os movimentos de capitais, acabar com os paraísos fiscais e fazer reviver a tradição alemã de envolvimento dos trabalhadores na gestão das empresas; em Portugal, estas propostas "extremistas" e "radicais" ficam a cargo do Bloco de Esquerda.

As eleições são no mesmo dia em Portugal e na Alemanha. Na Alemanha, prevê-se uma subida significativa da Esquerda; em Portugal também, se pudermos considerar de esquerda o Partido Socialista. Ou, com alguma sorte, mesmo que não possamos.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Profissionalismo crítico

Escrevendo sobre a diferença entre freshwater macroeconomists e saltwater macroeconomists, Paul Krugman salienta o facto de Keynes não ser sequer abordado em algumas universidades americanas. Lembrei-me, ao ler isto, duma queixa corrente entre economistas portugueses de que Keynes quase não consta dos planos de estudo da Universidade Católica.

Não se trata aqui, note-se, de abordar criticamente um economista importante: as universidades existem para isso mesmo. Trata-se de o suprimir, de o eliminar da fotografia, de o reduzir a uma nonperson. Assim como há quarenta anos, nos liceus femininos portugueses, se colavam as folhas do Canto Nono d'Os Lusíadas para que as alunas não o lessem, assim se colam as páginas de Keynes para que não seja maculada a pureza ideológica dos estudantes actuais.

Algo de semelhante se passa noutros ramos de conhecimento. José Sócrates citava há pouco tempo, num debate, a frase de Abel Salazar segundo a qual um médico que só sabe medicina nem medicina sabe. Que José Sócrates não se desse conta que, ao citar esta frase, se estava a condenar a si próprio e ao mundo que ajudou a criar, é problema dele. Mas resta a verdade profunda da frase: um praticante das profissões letradas tem que ser capaz de pensar de fora a sua profissão, os seus fundamentos científicos e epistemológicos e o seu impacto na coisa pública; isto só se consegue a partir das Humanidades, só se realiza na autonomia e implica que o direito do Estado, mesmo democrático, de definir o bem comum não é ilimitado nem exclusivo.

Um economista que só sabe economia, e para mais truncada; um médico que só sabe medicina; um jurista que sabe tudo sobre a letra da lei e nada da sua filosofia; um sociólogo que não consegue explicar o mundo e os homens por outra grelha interpretativa que não seja a sua especialidade; um professor que só sabe a matéria que ensina e a pedagogia que lhe inculcam - são profissionais acríticos e portanto, inevitavelmente, incompetentes; e estão além disso limitados no exercício da sua cidadania.


O processo de Bolonha conduziu a uma subversão e descaracterização da Universidade. Não vou aqui especular sobre quem beneficia desta circunstância, nem acredito que ela resulte duma conspiração centralizada. Direi antes que os governantes que tratam os professores como profissionais acríticos, que os desejam acríticos, sem uma palavra a dizer sobre a ética e a política da sua profissão, são eles próprios produto deste estreitamento intelectual a que dão o nome de modernidade e eficácia.

É isto que explica um Tony Blair, um José Sócrates, uma Maria de Lurdes Rodrigues. É esta barbárie tecnocrática que urge combater em nome dessa coisa incómoda que é a civilização.

domingo, 20 de setembro de 2009

Cinquenta medidas emblemáticas do Bloco de Esquerda

O Delito de Opinião enumera 50 medidas do programa do BE que considera emblemáticas. Não as vou comentar todas: deixo de fora as que me parecem inócuas ou demasiadamente específicas para um programa de governo, comentando apenas as que me merecem concordância ou discordância.
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1. Criação de um complemento social nas pensões mínimas.

Uma pensão é um direito que se ganha trabalhando e descontando. Tanto direito tem a ela um milionário como um pobre. Já o complemento social é um mecanismo de solidariedade e de redistribuição, pelo que só deve ter direito a ele quem realmente precisa. Feita esta ressalva, concordo com a proposta, que pode ser financiada, tal como a seguinte, através dum imposto sobre as grandes fortunas idêntico ao que existe em cada vez mais países europeus.

2. Extensão dos critérios de atribuição do rendimento social de inserção.

Concordo, mas também concordo com a preocupação expressa no outro extremo do espectro político quanto às fraudes e abusos. Haveria lugar nesta matéria a um trade-off político?

4. Rescisão dos contratos de parcerias publico-privadas na gestão de unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde.

Claro que sim. A separação entre Estado e empresas é hoje tão vital para a democracia como há duzentos anos a separação entre Estado e Igreja.

7. Legalização da morte assistida.

De acordo. Cada um deve dispor de si próprio.

9. Legalização das drogas leves.

E das duras também. Por uma questão de princípio: o Estado não tem o direito de criminalizar comportamentos privados; e por uma questão de utilidade: a crimininalização falhou em toda a parte e em toda a linha, criando males muito piores do que os que pretendia eliminar.

10. Integração da medicina dentária no SNS.

Desde que com limites... Não quero ninguém a branquear os dentes à minha custa.

11. Educação sexual efectiva nas escolas, como direito fundamental.

Há tragédias que se devem à ignorância das pessoas em matéria sexual. Esta ignorância deve, portanto, ser combatida. Mas não vamos cair na armadilha de rejeitar a moral judaico-cristã para pôr no seu lugar uma moral politicamente correcta: seria saltar da frigideira para cair no lume.

12. Limitação do número de alunos por turma (máximo de 20 para o primeiro ciclo, 22 para os demais).

Outro trade-off: está muito bem desde que se criem turmas de nível, ainda mais pequenas, para os alunos com maiores dificuldades. Duvido que esta contrapartida agrade muito ao BE.

14. Recusa da deslocalização de empresas com resultados positivos.

Melhor seria penalizar, por via fiscal, a comercialização de bens ou serviços produzidos em Portugal ou no estrangeiro por empresas delinquentes. Mas isto seria matéria para umas eleições europeias, não para eleições nacionais.

15. Proibição de despedimentos colectivos em empresas com resultados positivos.

Outro incentivo à fraude contabilística? É melhor não irmos por aí.

16. Revogação do Código do Trabalho e da sua regulamentação.

Lógico e exequível. A relação de forças entre empregadores e empregados está grotescamente desequilibrada a favor dos primeiros. O aumento da produtividade não resulta em qualquer vantagem para os trabalhadores se estes não tiverem condições políticas para a impor. Pelo contrário, o aumento do custo do trabalho é que obriga as empresas a serem mais produtivas.

19. Criação de um imposto de solidariedade sobre as grandes fortunas.

Outra banalidade que só em Portugal é vista como um bicho de sete cabeças. Deste imposto depende a viabilidade de muitas das outras propostas. Inteiramente de acordo.

20. Direito à reforma sem penalização a quem já cumpriu 40 anos de trabalho e descontos.

Em vez disto: direito à reforma em qualquer idade e com qualquer carreira contributiva. Cálculo do montante da pensão tendo em conta estes factores. Possibilidade de acumular pensão com pensão e pensão com salário, de forma que um reformado com uma carreira contributiva de quarenta anos recebesse algo mais que outro com dez carreiras contributivas de quatro anos (já que este beneficiou de várias antecipações).

21. Constituição de uma Bolsa de Arrendamento, incluindo todas as casas desocupadas que tiveram intervenção pública.

Claro: onde o Estado investiu, os cidadãos devem beneficiar. Ao receber subsídio do Estado, o proprietário está a dividir com os outros contribuintes o seu direito de propriedade.

22. Redução do IVA.

Para bens e serviços produzidos ou comercializados por empresas socialmente responsáveis. Para as outras, aumento drástico.

23. Tributação dos pagamentos em espécie (incluindo usufruto de viaturas de serviço e uso livre de telemóveis).

Acabar com o truque do pagamento em espécie para fugir aos impostos. Acho bem. Nesta matéria, o CDS não tem razão nenhuma.

24. Reforço dos quadros do Ministério Público e da Polícia Judiciária para combater o crime.

Em alternativa, abolição de todos os crimes sem vítima constantes do Código Penal. Alocação dos recursos actuais ao combate dos crimes com vítima. Fim da indústria do combate à droga.

26. Levantamento do segredo bancário para efeitos de verificação das declarações dos contribuintes e do combate à evasão fiscal.

E mais: publicação anual, a exemplo do que se faz na Suécia, duma lista universal de contribuintes de que conste o rendimento declarado e o imposto pago.

27. Fim do off shore da Madeira.

Obviamente.

28. Substituição até 2011 de todas as lâmpadas incandescentes.

Não é preciso. Bruxelas já se está a encarregar disso.

31. Fim do regime dos Projectos de Interesse Nacional.

Só servem para facilitar a corrupção. Foram criados, de resto, com este objectivo. Fora com eles.

32. Cancelamento da construção das barragens do rio Sabor, Tua e Fridão.

Discordo. A independência em relação aos combustíveis fósseis deve ser uma prioridade nacional.

33. Rejeição da privatização das Águas de Portugal.

Não deve haver monopólios privados, ponto final.

39. Consagração de 1% do Orçamento de Estado à cultura.

Pode muito bem ser que a cultura seja a indústria do futuro. Concordo.

43. Franquear a cidadania eleitoral aos cidadãos estrangeiros a viver há mais de três anos em Portugal.

As pessoas devem votar nos países em que vivem, que são aqueles a cujas leis estão sujeitos, e não naqueles de que são naturais.

44. Alargar a cidadania eleitoral aos cidadãos a partir de 16 anos.

Desde que tenham cumprido com aproveitamento (e não apenas com "sucesso") a escolaridade obrigatória.

45. Alargamento do casamento civil a todos os cidadãos e todas as cidadãs.

Discordo. Proponho em alternativa a abolição do casamento civil.

46. Alargamento da possibilidade de adopção e acolhimento de crianças por parte de todos os cidadãos e cidadãs, sem exclusões com base na orientação sexual.

Concordo.

49. Saída de Portugal da NATO.

Não é nada de impensável. Nas próprias cúpulas da NATO se põe hoje em questão a actualidade da aliança.

50. Pôr termo à cedência da base das Lajes aos Estados Unidos.

Discordo. A Líbia está aqui ao pé e tem mais poder militar que nós.