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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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sábado, 28 de agosto de 2010

Poder público e poder privado

É estranho que no mundo de hoje o debate político se desvie do seu tema natural, que é a distribuição do poder, para se centrar quase exclusivamente na distribuição da riqueza. Não quero com isto dizer que a economia não seja relevante, ou mesmo determinante, no debate público, nem que seja possível discutir o poder sem discutir a riqueza; mas certamente também não é possível discutir a riqueza ou a sua distribuição sem discutir o poder e a sua titularidade.

O vício intelectual do economicismo está de tal forma arreigado em nós que acabámos por excluir a política do próprio debate político. Quando dizemos "o público" e "o privado", toda a gente entende que estamos a falar de sectores da economia e não, como seria natural, da fronteira entre o individual e o social. Num país em que a república foi "instaurada" mas nunca inteiramente constituída, qualquer debate político sobre a polis e a cidadania parece-nos antediluviano e estrangeirado; e um político que o traga insistentemente à baila, como Manuel Alegre, parece-nos mais velho do que realmente é.

Este texto tem como pretexto o livro de David Marquand cuja capa o ilustra. Marquand escreveu-o a pensar no seu país, eu li-o a pensar no meu. Não é minha intenção fazer uma paráfrase ou um resumo fiel nem é minha preocupação explicitar fronteiras claras entre as minhas opiniões a as dele, nem entre as dele e as de Karl Polanyi, um autor que Marquand refere extensa e repetidamente.

Ao pegar neste livro, pensei que se tratava de mais um contributo para o velho debate, sempre interessante, entre estado e mercado. Não podia estar mais enganado, como comecei a perceber logo que cheguei à página de rosto e encontrei o subtítulo omitido na capa: The Hollowing-out of Citizenship. O livro refere abundantemente o mercado e o estado, mas o seu tema central é a tensão entre a esfera privada das emoções, acções e pensamentos individuais e a esfera pública da cidadania.

Na introdução, Marquand diz ao que vem e define os seus termos. Para isso, distingue três domínios (e não àqueles dois a que os termos pré-formatados do debate mediático nos têm habituado). São eles: o domínio privado, que não coincide com aquilo a que na terminologia corrente se chama sector privado; este domínio privado define-se por referência às pessoas concretas, com os seus pensamentos e emoções, as suas relações de amizade, de família ou de clã, os seus valores subjectivos, a sua moral individual e os seus interesses individuais - económicos ou outros. O segundo é o domínio do mercado e da troca, que se ocupa apenas do que é transaccionável e consequentemente não coincide com o domínio privado, embora possa intersectá-lo.

O terceiro é o domínio público da política propriamente dita, que pode intersectar o sector público da economia mas, mais uma vez, não coincide inteiramente nem necessariamente com ele.
O domínio público, para Marquand, "é o domínio da cidadania, da equidade e do serviço público. [A sua integridade] é indispensável à governação democrática e ao bem estar social. Tem a sua própria cultura e os seus próprios métodos de decisão. Nele, a cidadania prevalece tanto sobre o poder do mercado como sobre os laços de clã ou de família. [ ... ] Só pode tomar forma numa sociedade em que a noção de interesse público, distinto dos interesses privados, se tenha enraizado."

Mas, "enquanto o domínio privado do amor, da amizade e dos contactos pessoais e o o domínio do mercado são dados da natureza, o domínio público depende duma manutenção continuada e cuidadosa".

Se a república é um artefacto, põe-se a questão de quem é o artífice. Para Marquand, e no que respeita a história particular do Reino Unido, a coisa pública foi construída por uma elite intelectual e política (hoje dir-se-ia, depreciativamente, um grupo de "iluminados"), pacientemente e de modo planeado, ao longo do século XIX e princípio do século XX; e está hoje a ser demolida, de modo igualmente planeado mas muito menos paciente, pelos iluminados herdeiros políticos de Margaret Thatcher.

No Século XVIII o poder político era essencialmente privado. Era prerrogativa tradicional de pessoas concretas e identificáveis e não decorria dos cargos que provisoriamente pudessem desempenhar. Um baronete do Surrey podia ser nomeado coronel na Índia - ou melhor, podia comprar o posto de coronel - mas o seu poder na sociedade decorria, não do posto militar, mas da sua condição social. Se mandava oficialmente na Índia, era para melhor mandar privadamente no Surrey. O poder exercia-se através da influência e da fortuna pessoal, da sucessão dinástica, das solidariedades de família e de clã e de toda uma panóplia de costumes, tabus e tradições para a qual em nada tinha contribuído, nem a vontade cívica dos governados, nem a vontade política dos governantes.

Este regime ficou conhecida no século seguinte, entre os impulsionadores da reforma republicana, como "the old corruption". A esta corrupção chama Marquand "monarquia", porque reside numa pessoa identificável individualmente sem que se estabeleça qualquer distinção entre a pessoa privada e a pessoa pública. O oposto de "monarquia" poderia ser "poliarquia", mas esta é uma palavra que Marquand não tem necessidade de utilizar quando dispõe da noção muito mais clara de "domínio público".

Por outro lado, a pauperização extrema duma parte da população, prevista por todos os economistas clássicos do século XIX como economicamente inevitável (The Iron Law, diziam eles), atingiu no annus horribilis de 1840 um ponto tal de degradação humana que se tornou politicamente insustentável. Alguns espíritos lúcidos (como Gladstone, e outros antes e depois dele), reconhecendo que o economicamente possível e o politicamente possível só são conciliáveis no âmbito duma polis, trataram de a projectar e construir.

Uma das maiores dificuldades de um projecto como este está em que uma polis funcional tem que ser simultaneamente igualitária e elitista. Igualitária porque todos somos iguais na cidadania; elitista porque as diversas formas de autoridade exigem legitimações diferentes, que incluem as formalidades do processo democrático mas não se esgotam nelas. A construção da igualdade na cidadania demorou um século e envolveu os esforços de centenas ou milhares de pessoas. A atestar o seu êxito temos os números: entre 1832 e 1928, em etapas sucessivas, a abrangência da franquia democrática evoluiu de 14% dos homens e 0% das mulheres até 100% dos homens e 100% das mulheres.

A outra vertente da reforma republicana exigia a legitimação de elites que contrabalançassem a tendência "monárquica" inerente a todo o poder político. Esta legitimação implicou por um lado a instituição de um quadro de funcionários públicos superiores recrutados em função do seu compromisso ético com o bem público (o que devia parecer a mais desvairada das utopias numa época em que a compra de cargos públicos era vista como normal). Estes quadros deveriam ser possuidores duma sólida formação humanista e gozar de condições de estabilidade e prestígio que lhes conferisse a necessária profissionalidade e independência, de modo a não se tornarem "yes men" dos sucessivos governos. E implicou por outro lado a formação de classes profissionais legitimadas pelo saber e por uma ética de serviço público, explicitada nos respectivos códigos deontológicos. Este projecto não teve, como nunca poderia ter, êxito completo; mas teve êxito suficiente para possibilitar ao longo de várias décadas a permanência desse bem tão precioso e tão frágil que é uma república.


O contraste entre este processo e o que se passou em Portugal é tão flagrante que até dói. No Reino Unido, porque se constituiu a república, não foi preciso "instaurá-la." O regime monárquico pôde ser mantido na forma porque tinha sido efectivamente abolido na substância. Em Portugal, a república foi "instaurada" em 1910, mas nunca chegou a ser constituída de forma sólida e consequente. O exercício efectivo do poder continuou a ser predominantemente monárquico e assim continua até hoje.

Mas se a reforma republicana diferiu tanto nos dois países, desde logo porque num se concluiu e no outro não, já a contra-reforma anti-republicana obedece ao mesmo padrão, que é o que está a ser aplicado um pouco por todo o mundo desenvolvido. Assim se explica a sensação de familiaridade que experimentamos ao ler em Marquand os métodos e as estratégias desta contra-reforma.

A demonização do funcionalismo público; a sujeição dos seus quadros superiores a um dever de lealdade pessoal aos governantes enquanto pessoas privadas em detrimento das pessoas públicas que eles também são - e em detrimento, sobretudo, da lealdade que devem à república; a proletarização e desautorização das classes profissionais; a obsessão com tudo o que seja objectivos quantificáveis e a destruição iresponsável e bárbara de tudo o que o não é; o proliferar de sistemas de avaliação estilo rococó que são, no dizer de Boaventura Sousa Santos, tão impecáveis no rigor formal quanto fraudulentos na substância; a falsa descentralização e as falsas autonomias que puxam para o centro todo o poder de decisão ao mesmo tempo que empurram para a periferia toda a responsabilidade pelas decisões tomadas; o anti-elitismo populista; o combate cego aos impostos, sobretudo aos progressivos, como se pagar impostos não fosse marca e condição da cidadania - tudo isto é descrito por Marquand , com abundantes exemplos, em referência à realidade britânica. Mas nenhum autarca português, nenhum médico, enfermeiro ou professor, nenhum advogado que não pertença aos grandes escritórios, nenhum académico, intelectual ou artista, nenhum cientista, nenhum jornalista, nenhum economista que não pertença ao reduzido grupo que trabalha para a banca e domina os media poderá ler Marquand sem encontrar acrescida confirmação na sua própria experiência profissional e pessoal.

Toda esta estratégia conduz à transformação dos regimes republicanos em "monarquias de primeiro-ministro" ao serviço de oligarquias financeiras. Daqui decorre a ideia que Marquand denuncia perto do final do livro, confiante em que qualquer leitor inglês a verá como monstruosa: a de que compete exclusivamente ao governo definir o que é o bem público. E lembro-me, ao ler isto, das palavras de Vital Moreira, já com um pé na escada do avião que havia de o levar a Estrasburgo, a propósito do conflito entre os professores e o governo: "Só ao governo compete definir o bem público."

Poucos portugueses terão visto nesta frase a enormidade que é. Que melhor razão do que esta haveria para suspeitar que Portugal nunca foi, no sentido pleno do termo, uma república?

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Utopia e realidade

Nos quatro versos iniciais do seu poema mais conhecido, António Gedeão escreve: "Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer". Apresento estes quatro versos como se fossem uma frase corrida para ilustrar o efeito que eles sempre tiveram em mim: que neste passo do poema António Gedeão, o poeta, cede a palavra ao cientista Rómulo de Carvalho. Não há aqui qualquer espécie de linguagem figurada: a afirmação é para ser tomada no seu sentido literal. O sonho existe; o sonho é real; o sonho tem o seu lugar na ordem das coisas e produz nela os seus efeitos. Mais adiante no poema haverá lugar para a linguagem figurada - usada, de resto, com mestria - mas nesta proposição inicial a única marca "literária" está na propositada ambiguidade da primeira palavra.

'Eles'? Quem são 'eles'? Os políticos? Os homens de negócios? Os fura-vidas em geral? Os espertos? Ou todos aqueles que julgam ter, mais que todos os outros, o sentido da realidade quando é precisamente na falta deste sentido que reside a sua particular deficiência? Há quarenta e dois anos gritou-se na rua que ser realista é exigir o impossível; hoje poder-se-ia gritar, com igual razão, que ser realista é recusar o inevitável. E isto porque qualquer pessoa que tenha cérebro, olhos, ouvidos e experiência já teve ampla e repetida ocasião de verificar que o impossível e o inevitável são sempre, na boca do poder, mentira.

É isto que 'eles' não sabem. Se alguém lhes fala na possibilidade duma alternativa, quer ao que está, quer à mudança que têm por resolvida e inevitável, respondem: 'Isso é uma utopia.'

Esta afirmação é, no dizer duma pessoa que prezo muito, a frase mais castradora que se pode imaginar: corta imediatamente o debate e nega terminantemente a possibilidade de qualquer opinião ou acção política. A isto acrescento eu que é a mais obtusa: não reconhece que o interlocutor está geralmente a explorar possibilidades e não, (contrariamente, muitas vezes, ao autor da frase) a tentar impor um design ao mundo. E é um insulto à inteligência do interlocutor, porque o pressupõe incapaz de distinguir entre realidade e fantasia.

A utopia, tal como o mito, existe e tem efeitos. Mais: tanto um como a outra existem sempre e têm sempre efeitos; é pelo mito e pela utopia, não pela argumentação racional, que as sociedades, os regimes políticos e as instituições humanas se explicam e legitimam. O mito e a utopia não retratam realidades, mas transformam a realidade em algo de suportável para o ser humano. Por isso nenhuma tentativa de explicação do homem e do mundo seria mais fantasiosa do que uma que não visse nas utopias objectos reais produtores de efeitos reais.

Se avaliássemos o êxito duma utopia pela sua realização integral, em toda a pureza dos seus princípios, verificaríamos que até hoje nenhuma utopia teve êxito, nem é plausível que alguma o venha a ter. Quem espera duma utopia este tipo de êxito é fundamentalista ou fanático. Mas isto é uma conclusão trivial, como sabem todos aqueles que, não sendo fundamentalistas ou fanáticos, cultivam a utopia como um modo nobre de estar no mundo.

O êxito duma utopia avalia-se, sim, pela sua influência sobre a realidade. Na medida em que essa influência pode ser maior ou menor, uma utopia pode ter mais ou menos êxito. Mas o êxito mais completo a que uma utopia pode realisticamente aspirar consiste em tornar-se parte do senso comum, isto é: em tornar-se invisível.

Uma destas utopias invisíveis, no período histórico que atravessamos, é a utopia teocrática. O que pode haver de mais sensato e mais sedutor, para quem julga conhecer a vontade de Deus, do que a ideia duma sociedade em que todas as leis e todas as instituições estejam ao serviço dessa vontade? É claro que quando falo em invisibilidade estou a ter em conta apenas aqueles que partilham esta crença. Para os outros, o carácter utópico do projecto teocrático é perfeitamente visível e as objecções que suscita perfeitamente óbvias. No entanto, há milhões de pessoas, tanto no mundo islâmico como em certas comunidades cristãs, para quem um regime teocrático é a solução natural e evidente para todos os males da Humanidade. A antiguidade da utopia teocrática, conjugada com a sua pujança actual, permitem pensar que ela nunca deixará de existir e de actuar sobre o mundo; e isto sugere, por sua vez, que a ideia dum Estado perfeitamente laico é também ela, apesar de indispensável num mundo decente, utópica.

Ou consideremos a utopia ambientalista. Tem influenciado políticas concretas, e ainda bem. Entrou, ou está a entrar, no senso comum; mais uma vez, ainda bem. Mas nunca existirá, como nunca existiu, uma realidade em que o ser humano tenha um impacto zero sobre o seu meio-ambiente. É uma das minhas utopias, mas não é a minha utopia no sentido de determinar todas as minhas ideias sobre todas as esferas da vida.

Para quem vê as coisas a partir do mundo desenvolvido, as duas utopias invisíveis mais importantes - no sentido em que são as que mais nos condicionam a vida - são provavelmente a utopia dos mercados livre e a utopia meritocrática. E isto é tanto mais espantoso quando é certo que as duas, sendo defendidas grosso modo pelas mesmas pessoas e pelos mesmos grupos de interesse, são reciprocamente incompatíveis.

Um estudo recente especula sobre quanto ganharia, numa sociedade meritocrática, uma educadora de infância. O primeiro problema com que o autor se defrontou foi o de saber em que consiste o mérito. Na impossibilidade de quantificar factores como a felicidade pessoal ou a qualidade das relações sociais, tomou o autor a opção metodológica de considerar apenas o mérito económico, medido em dólares. Procurou saber se havia alguma diferença entre o rendimento médio dum grupo aleatório de adultos que tiveram educação pré-escolar e o rendimento médio de um grupo que a não teve. Concluiu que essa diferença existia e era quantificável.

Mas este é apenas um dado bruto, que não significa nada se não forem descontados outros factores que podem contribuir para a diferença de rendimentos. Limitou então o inquérito sobre a educação pré escolar a grupos definidos por terem ou não cursos superiores. A diferença manteve-se: as pessoas que têm cursos superiores ganham mais do que as que não têm, mas em cada um dos grupos ganham mais as que tiveram educação pré-escolar. Depois, foi só fazer o mesmo em relação a homens e mulheres, populações rurais e urbanas, crentes e não-crentes, negros e brancos, latinos e asiáticos, etc. Verificou que, havendo ou não diferenças de rendimentos médios entre estes grupos, havia sempre, no interior deles, uma diferença relacionada com o factor em estudo.

Estava em condições, a partir de agora, de ver uma relação de causa e efeito naquilo que no início do estudo era uma mera correlação. A parte difícil do trabalho estava feita. Restava agora o mais fácil: multiplicar a diferença encontrada pelo número de americanos adultos que tiveram educação pré-escolar e dividir o resultado pelo número de educadoras infantis em actividade. O número final a que chegou foi 360.000 dólares por ano, que é o que uma educadora ganharia se recebesse tanto quanto dá a ganhar às crianças que educa.

Extrapolando da América para a Europa, e de dólares para euros, isto daria ordenados da ordem dos 25.000,00 € mensais. Ou cinco mil contos, para quem ainda se orienta melhor pela moeda antiga.

Claro que o objectivo do estudo nunca foi reivindicar salários desta ordem para as educadoras infantis americanas. O objectivo foi mostrar o que já toda a gente sabia empiricamente: que os EUA não são uma meritocracia. E creio que não irei longe demais na minha extrapolação se presumir que na Europa, e especificamente em Portugal, o mérito também não é o factor predominante na determinação dos rendimentos.

Mas neste caso qual é o factor determinante? As leis dos mercados, dirão muitos. A relação entre a oferta e a procura. O problema com esta explicação é que não há país nenhum em que o mercado de trabalho seja um mercado inteiramente livre. As relações de poder, dirão outros. O que não bate certo é que se imponha à sociedade, com argumentos de mercado, o delírio avaliativo que a utopia meritocrática parece trazer a seu reboque - delírio este que resulta directamente, segundo argumenta Marquand num livro de que tratarei em breve, do declínio da res publica face à intrusão dos mercados e à formalização do Estado.

A cada um segundo a capacidade negocial que lhe dá a lei da oferta e da procura, diz a utopia dos mercados. A cada um segundo o seu mérito, diz a utopia meritocrática. De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades, diz, na velha frase de Marx, a utopia socialista. Moralmente, pode ser que nenhuma destas formulações seja superior a qualquer das outras. Em termos de senso comum, as duas primeiras ocupam o terreno enquanto a terceira foi, até ver, expulsa dele. Mas em termos de exequibilidade, a terceira parece-me a mais plausível.

domingo, 22 de agosto de 2010

Quatro meses de ausência

Vários amigos, a quem agradeço desde já, se têm preocupado com a minha longa ausência deste blogue. Tranquilizo os que puseram a hipótese de ter sido por doença: não foi essa a razão. Também não foi falta de assunto, pelo contrário: foram tantas as vezes em que as ideias para artigos se atropelaram que acabaram por não se realizar.

Sobre as razões principais deste bloqueio, eu próprio tenho especulado sem grande êxito. Primeiro pareceu-me que tinha alguma coisa a ver com um certo desencanto, um certo sentimento de inutilidade; mas, para quem acredita, como eu, que na blogosfera as ideias, por se propagarem como vírus, não precisam de grandes audiências iniciais para atingirem grandes audiências finais; para quem, como eu, nunca se preocupou em atingir o maior número possível de leitores mas sim em tornar certas formulações o mais contagiosas possível - a questão da utilidade imediata não se põe com especial premência.

O afastamento da escola teve alguma influência no meu silêncio, sem dúvida: não é possível discorrer sempre no abstracto quando se vai perdendo a ligação ao concreto. A política nacional interessa-me cada vez menos, tanto pela sua irrelevância em relação às nossas vidas concretas como pela mediocridade aflitiva dos seus actores principais. A política internacional interessa-me mais do que nunca, até porque é a esse nível que as nossas circunstâncias individuais se decidem. Mas neste ponto tenho cada vez menos certezas e cada vez mais perplexidades. Porque é que a crise de 2008 causou um abalo tão pequeno na ortodoxia económica vigente? Não sei. Porque é que anda no ar uma expectativa de mudança - mudança esta que não tem nada a ver com a mudança para mais do mesmo que os tonibleres deste mundo nos continuam a prometer? E a propósito: Será Barack Obama mais um nessa longa sucessão de tonibleres, ou será - finalmente! - o artigo genuíno? E porque é que esta impressão que alguma coisa de muito grande está para acontecer é muito mais intensa e nítida nos EUA - garantem-me os meus amigos que lá estudam ou trabalham ou que vão lá frequentemente - do que na Europa, ou pelo menos em Portugal? E esta mudança, a acontecer, será razoavelmente pacífica, ou implicará um cataclismo global - que poderá não ser uma guerra mundial, mas não lhe ficará atrás em mortes, em violência e em sofrimento humano? A violência, por vezes mansa, dos modelos políticos concebidos para manter o triunfo artificial da economia clássica (que nos anos 20 do século passado já estava morta e, aparentemente, enterrada) esteve entre os factores que levaram à primeira e à segunda guerras mundiais; a que catástrofe, ou a que apoteose, levará a crescente deslegitimação dos sistemas políticos organizados para manter em movimento esse zombie que dá pelo nome de economia neoclássica?

Mas mais recentemente tenho-me dado conta de que não foi só o meu desencanto, nem o meu afastamento em relação à escola e à política nacional, nem sequer o meu estado de perplexidade e ignorância em relação à actualidade do mundo, que me levaram a ficar afastado tanto tempo. Foi também o balanço, em parte inconsciente, que estive a fazer sobre o que escrevi até agora neste blogue e sobre a orientação a dar-lhe no futuro. Porei de lado, ainda mais do que até aqui, os rigores e os protocolos próprios da produção académica: se fosse para me ater a eles, matriculava-me num programa de mestrado ou doutoramento em vez de manter um blogue; e os meus leitores, que para me lerem estão ligados à Internet, têm acesso fácil ao Google.

Uma descoberta interessante que fiz durante estes meses foi a de que havia muitas pessoas próximas de mim que frequentavam este blogue, algumas das quais não se coibiram de me verberar pela ausência.

Pois aqui estou de novo. Se não tiver outro assunto, há sempre os livros; e lá ler, tenho lido.

Um dos meus próximos posts será sobre um dos últimos: Decline of the Public, de David Marquand (do qual alguns capítulos são de especial interesse para quem pertence àquilo a que se chama em inglês the professional classes). Ou então uma reflexão inspirada numa frase que ouvi a uma rapariga da geração do meu filho: «Não há afirmação mais castradora do que 'isso é uma utopia'.»