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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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quinta-feira, 25 de março de 2010

Amanhã é um bom dia para derrubar o governo

Tudo indica que o PSD vai hoje viabilizar o projecto de resolução do PS de apoio ao PEC. Mais uma vez o PSD dá uma mãozinha ao governo de José Sócrates. Apenas o suficiente para o manter à tona, até sentir que tem condições para desferir a estocada final. Entretanto, os partidos de Esquerda, BE e PCP, saltam, gritam, barafustam, mas na realidade nada fazem para desmascarar o efectivo Bloco Central de Interesses que sustenta o governo de José Sócrates. E que aprecia sobremaneira o PEC. O Bloco Central de Interesses toma-nos por parvos. Quer que acreditemos que os candidatos a líderes do PSD estão sinceramente escandalizados com o facto do PS ter agendado a votação do seu projecto de resolução de apoio ao PEC para o dia anterior à eleição do próximo líder do PSD. O Bloco Central de Interesses toma-nos por parvos. Cria uma aparente dissonância entre os partidos, PS e PSD, que o sustentam, de modo a que seja esta a dominar a agenda mediática, deste modo mascarando as opções ideológicas plasmadas no PEC, e que no essencial merecem total concordância tanto de PS como de PSD. É evidente que o PS está a fazer um favor ao PSD, ao permitir ao seu próximo líder não ter de escolher já entre derrubar ou apoiar o governo. Porque não duvidem que o PEC é a trave central deste governo, liderado nominalmente por José Sócrates e efectivamente por Teixeira dos Santos. Uma rejeição do projecto de resolução do PS de apoio ao PEC levaria à demissão de Teixeira dos Santos, e estou certo que por arrastamento à de todo o governo. O Bloco Central de Interesses toma-nos por parvos. E os partidos de Esquerda, PCP e BE, nada fazem. Esperam por quê? O PEC apresenta-se como uma excelente oportunidade para mover a fronteira da discussão político-ideológica para a Esquerda, dividindo as águas entre quem apoia e quem contesta as políticas e motivações ideológicas plasmadas no PEC. Por tudo isto, a situação política exige a apresentação de uma moção de censura ao governo. Já amanhã. É preciso amarrar já o próximo líder do PSD ao governo de José Sócrates, desmascarando o Bloco Central de Interesses que nos governa, e demonstrando que a alternativa ao actual governo encontra-se à Esquerda. Há obviamente a possibilidade da moção de censura passar. Haveria então novo governo, se uma maioria parlamentar estável pudesse ser encontrada, ou, mais provavelmente, novas eleições para a Assembleia da República (pode ser dissolvida a partir de 26 de Abril). No segundo caso, os partidos de Esquerda teriam perante si um PS amarrado ao PEC, e portanto via aberta, de facto, para crescer eleitoralmente, congregando o voto de todos aqueles que se identificam com um mínimo dos princípios que norteiam a Esquerda.

Uma moção de censura ao governo, amanhã, já!

Este texto foi roubado ao VIAS DE FACTO. O seu autor é Pedro Viana

terça-feira, 23 de março de 2010

Pobreza, desigualdade e sofrimento económico (1)

I

Pobreza

E se nós, sociedade, exigíssemos dos economistas - que também são técnicos - o que exigimos dos médicos? O médico não se limita a explicar a doença - deixa essa explicação ao biólogo - mas procura, prioritariamente, curá-la. Se tratássemos os economistas como médicos e não como biólogos, então uma das suas prioridades seria, certamente, combater a pobreza em vez de nos explicar porque é que temos que nos conformar com ela.

A pobreza é uma daquelas coisas que todos sabemos o que é mas não conseguimos definir facilmente. Mesmo que nos atenhamos ao aspecto puramente material, as perplexidades levantam-se logo aí. Quando falamos de pobreza ou de riqueza material estamos a falar de rendimento ou de património? Todos conhecemos pessoas com "muito de seu" e rendimentos modestos; e também pessoas com rendimentos elevados mas com pouco ou nenhum património. Na falta duma correlação positiva evidente, podemos arranjar uma fórmula, que será sempre arbitrária, para converter uma coisa na outra. Por exemplo: p x x% = r, representando p o património, r o rendimento e x o factor de conversão. O problema é que o valor de x não é fixo nem decorre da natureza das coisas. Pode ser convencionado para certos efeitos, nomeadamente fiscais, mas é inútil quando se trata de distinguir conceptualmente entre riqueza e pobreza.

Uma solução elegante para a dificuldade de fazer esta distinção seria declarar que a pobreza não existe, do mesmo modo que para os físicos não existe o frio: o que há é mais ou menos riqueza, mais ou menos calor. Isto pode resolver o problema abstracto, mas não resolve o concreto: o frio não existe em absoluto, mas pode-se morrer de calor insuficiente; a pobreza não existe em absoluto, mas pode-se morrer de riqueza a menos.

Em termos materiais absolutos, podemos considerar "pobre" quem não dispõe de meios suficientes (considerando tanto o rendimento como o património) para subsistir. Não é neste sentido que vou utilizar as expressões "pobre" ou "pobreza". Para quem está nestas condições, a falta de meios materiais é a condicionante absoluta, o facto bruto que define a sua pobreza. Todos os outros critérios são, neste caso, dispensáveis - mas não são dispensáveis para justificar o facto de muitas pessoas serem consideradas como pobres, do ponto de vista dum certo consenso social, apesar de viverem materialmente um pouco acima deste limiar. E muito menos explica que certas pessoas sejam consideradas pobres enquanto outras, eventualmente com rendimentos inferiores, não o são (pensem nos casos que conhecem pessoalmente e entenderão ao que me refiro).

A definição de pobreza material que proponho neste post, e exclusivamente para efeitos deste post, é puramente convencional. Convencionemos assim que a pobreza, na sua vertente material, é a condição de quem vive suficientemente acima do limiar de subsistência para gozar de algumas das condições de conforto (mas não de todas) que constituem a norma no seu contexto social. Esta definição convencional tem, sobre a definição referida no parágrafo anterior, a vantagem de incluir pessoas que são "pobres" segundo a percepção social embora não vivam abaixo do limiar de subsistência. Apesar disto, ainda não é suficiente, uma vez que há outras pessoas nas mesmas condições materiais, ou até piores, que não são socialmente percebidas, nem se percebem a si próprias, como pobres.

Excepto no que respeita as pessoas que expressamente excluí desta discussão, a pobreza não é só uma questão de meios materiais, mas também uma questão de estatuto social. Ser pobre, nesta vertente, é não ter estatuto, ou seja: não ter prestígio, nem reconhecimento social, nem poder - a começar pelo poder sobre si próprio a que chamamos liberdade.

Segundo Karl Polanyi, é mais "natural" no ser humano a procura de estatuto e poder do que a procura de riqueza. Isto pode parecer contra-intuitivo numa sociedade como a nossa, que é peculiar no sentido em que é pela riqueza que se chega ao estatuto; mas este tipo de organização politico-económica está longe de ser universal, para já não falar em "natural", em termos históricos ou antropológicos. Mesmo na nossa sociedade, quem procura a riqueza pelo acesso ao consumo que ela permite acaba, se tiver êxito, por chegar a um ponto em que já não sente grande necessidade de ter mais; ao passo que aqueles que procuram a riqueza pelo poder que confere nunca ficam, por mais longe que cheguem, satisfeitos.

Esta perspectiva ajuda a compreender uma das muitas correlações que Richard Williamson e Kate Picket encontram entre a desigualdade e diversas outras disfunções sociais, correlações estas das quais dão conta neste livro. Não é uma correlação a que os autores dêem particular importância, mas chamou-me a atenção porque me ajuda a compreender certos comportamentos que observo à minha volta.

A correlação que refiro é esta: quanto mais desigual é uma sociedade, mais consumista. E isto, note-se, não só no que respeita o topo ou o meio da escala social, mas também no que respeita a base. Talvez até sobretudo no que respeita a base.


Ouvimos muitas vezes criticar os "jovens dos bairros" porque exibem telemóveis topo de gama "apesar" de viverem do RSI. Claro que não é agradável para mim, contribuinte, pagar estes telemóveis quando me contento para meu uso com um muito mais barato. Mas eu estou seguro do meu estatuto social: não preciso, para me afirmar, dum telemóvel caro. Estes jovens estão no fundo da escala, sabem que estão, e ressentem-se disto. Se não se compensam pelo real, compensam-se pelo simbólico - ou pela violência, quantas vezes ela própria simbólica.

Há umas semanas fui acompanhado no metro por um grupo de adolescentes em que tudo gritava "bairro social". Começaram por deitar bombas de mau cheiro, depois percorreram a composição duma ponta à outra, ruidosamente, procurando obviamente chamar a atenção de toda a gente. As raparigas do grupo estavam claramente divididas entre o impulso de se distanciarem dos rapazes e o de entrarem no jogo com eles. Por fim, à saída, um dos rapazes deitou outra bombinha mesmo à minha frente; e por um brevíssimo instante olhou-me nos olhos.

E neste olhar havia uma mensagem. Ter estatuto é consumir e ter poder. O telemóvel exibe o consumo; o mau comportamento em público, a capacidade de incomodar os outros sem que os outros possam retaliar, é uma exibição de força. O que aquele olhar queria dizer era "nós não somos escumalha; também temos poder sobre vocês."

Mensagem falhada, pelo menos no que toca a primeira parte: "escumalha" é precisamente a palavra que estava, tenho a certeza, na cabeça de muitos dos que assistiram à cena.

A pobreza pode não ser só isto; mas isto é certamente pobreza.

segunda-feira, 22 de março de 2010

"DIE LINKE": novo programa

A presidência conjunta de Oskar Lafontaine e Lothar Bisky apresentou anteontem em Berlim o novo programa do partido "DIE LINKE" (em português, A Esquerda). Passo a traduzir o preâmbulo, para que não se pense que a Alemanha é um gigante monolítico, onde todos se reconhecem nas políticas neoliberais de Angela Merkel, onde as esquerdas europeias não têm aliados e ao qual, por conseguinte, não vale a pena tentar resistir:

DIE LINKE representa alternativas para um futuro melhor. Não somos e não seremos como aqueles partidos que se submetem com devoção aos desejos do poder económico e são, precisamente por isto, quase indistinguíveis uns dos outros. Prosseguimos um objectivo concreto: lutamos por uma sociedade em que nenhuma criança tenha que crescer na pobreza, em que todas as pessoas vivam na paz, na dignidade e, socialmente, em segurança e possam dar forma democraticamente às relações sociais. Para aqui chegar precisamos de outro sistema social e económico: o socialismo democrático.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Não há alternativa, dizem eles

Não há alternativa: foi esta a ideia-chave que levou Margaret Thatcher de vitória em vitória até à derrota final.

Não há alternativa. Conformem-se. Aceitem trabalhar cada vez mais, em empregos cada vez mais precários, em troca de salários cada vez mais baixos. Não há alternativa. Pensar o contrário é irresponsável.

E a frase tem sido incessantemente repetida, incessantemente martelada, por tudo o que é responsável político, dirigente patronal ou economista mediático. Não há alternativa. Conformem-se. Habituem-se.

E chega a parecer verdade. Se o diz toda a direita portuguesa; se o diz toda a direita europeia; se o diz Teixeira dos Santos, dia sim, dia não, ou todos os dias; se o dizem, insistentemente, os economistas com lugar cativo nas televisões; se o diz Durão Barroso; se o diz a OCDE nos seus elogios às políticas de "austeridade" em Portugal; se o diz Angela Merkel quando lhe falam na responsabilidade alemã pela crise actual na Europa; se o diz o Banco Central Europeu; se o consenso aparente é tão completo - então se calhar é verdade. Se calhar, o melhor que temos a fazer é conformar-nos: habituarmo-nos à ideia de sermos cada vez mais pobres num mundo cada vez mais rico. É que não há alternativa: estamos condenados, não há salvação possível.

Mas é mentira. Não devíamos precisar que nos dissessem isto. Deveria bastar-nos a memória dos povos, que sabem muito bem que a principal arma dos tiranos é apresentar a sua ordem artificial como se fosse a ordem natural das coisas. O "não há alternativa" de Teixeira dos Santos ecoa o "é mesmo assim" com que os oprimidos se têm conformado e confortado ao longo dos séculos.

Há sempre alternativa. Há sempre escolhas, e as escolhas são sempre políticas. Três delas estão definidas neste relatório e noticiadas aqui, aqui, aqui e aqui.

"Não há alternativa" é uma das frases predilectas dos sacanas quando pensam que estão a falar para um país de bananas. É tempo de lhes tirar esta ideia da cabeça.

domingo, 14 de março de 2010

As palavras são tramadas

Já repararam que falar em "aluno problemático" em vez de aluno delinquente, ou violento, ou indisciplinado, é um truque semântico que transfere o "problema" - logo, a responsabilidade; logo, a culpa - para a escola e para o professor?

sexta-feira, 12 de março de 2010

A culpa é deles, por serem frágeis

Ainda há pouco tempo escrevi que o sistema educativo não está pensado para proteger os Leandros, mas sim para proteger os bullies. Também não foi pensado, pelos vistos, para proteger os Luíses.

Um rapaz de doze anos, um homem de cinquenta e um, foram torturados até à morte em duas escolas portuguesas. Mas isto que interessa? A culpa é deles. Eles que não fossem frágeis. É o que pensa um tal Leitão, que por acaso ou por desígnio é Director Regional da Educação de Lisboa.

Sem mais comentários

Está aqui. As participações foram feitas, como prevê a lei. A via burocrática não serviu de nada.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Irresponsabilidades

Hoje, mais uma vez, o ministro Teixeira dos Santos ousou utilizar a palavra "responsabilidade" perante o Parlamento e em referência a um partido da oposição. Sem que ninguém se escandalizasse. Sem que ninguém o chamasse à ordem.

Se Teixeira dos Santos falou em nome do Partido Socialista, enganou-se: os partidos da oposição não respondem perante o partido do governo, mas sim perante os eleitores. Como o partido do governo, de resto.

Se falou em nome do governo, também se enganou: não é o Parlamento que é responsável perante o governo, mas sim o governo perante o Parlamento.

É espantoso que um órgão de soberania declare expressamente, poucos dias depois de tomar posse, que se reserva o direito de violar a seu bel-prazer os termos do mandato que o Soberano lhe conferiu. É espantoso ouvi-lo declarar que não presta contas a quem as deve porque tem que as prestar a quem as não deve: à Comissão Europeia, ao FMI, ao BCE, aos mercados, às agências de notação financeira, ao diabo a quatro. É espantoso que peça responsabilidade à oposição no preciso momento em que ele próprio se declara irresponsável. É espantoso que um governo não entenda que ao descartar a sua responsabilidade perante os eleitores está a abdicar da legitimidade que estes lhe conferiram.

É espantoso. É lamentável. É vergonhoso. E é, isto sim, irresponsabilidade a sério.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Desta vez não vai ser tão pacífico

O pacote de austeridade do FMI foi imposto há trinta anos sem demasiada dificuldade: houve greves, houve manifestações, mas o País não ficou propriamente a ferro e fogo. Com o PEC agora em discussão as coisas não vão ser tão fáceis.

O tempo era outro. A crise de então não tinha autores facilmente identificáveis. Era possível aos políticos convencer muita gente que ela estava inscrita na natureza das coisas; que era, por assim dizer, uma catástrofe natural; que as medidas heróicas que tomavam para a combater, e os sacrifícios que pediam, eram uma exigência elementar de patriotismo.

Tal como, supostamente, não tinha autores, também não tinha beneficiários. Era possível convencer as pessoas que o que lhes saía do bolso não ia parar ao bolso de mafiosos. Hoje esta treta já não é possível.

Os economistas mediáticos que apoiavam o discurso dos políticos tinham autoridade e prestígio, hoje não têm: ou são velhos teimosos, incapazes de se livrarem dos seus preconceitos ideológicos, ou são jovens formados em universidades em que os programas são sujeitos a censura prévia, pagos para acreditar no que o patrão ordena e incapazes, por ignorância, de acreditar noutra coisa. As pessoas perceberam que há outros economistas a pensar doutra maneira. O mundo mudou em 2008: meter Keynes outra vez na gaveta é tão possível como pôr a pasta de dentes outra vez na bisnaga.

As pessoas podiam ser convencidas que não havia alternativa racional; agora, quando o ministro Teixeira dos Santos vem com essa treta requentada, enfrenta uma opinião pública mais esclarecida que sabe que não só há alternativa, como essa alternativa é mais racional e eficaz do que as políticas que ele se propõe seguir.

Os eleitores acreditavam que o governo era responsável: que respondia perante o Parlamento, que por sua vez respondia perante o eleitorado. Hoje, é o próprio governo que declara sem pudor que, em vez de responder perante o povo, responde perante a União Europeia, perante os mercados, perante as agências de rating e - pior que isso tudo - perante os próprios autores e beneficiários da crise, a quem volta a ser permitido que determinem as regras do jogo. Isto significa pura e simplesmente que governo perdeu a sua legitimidade, ou melhor: que a deitou fora.

E pedem-nos que não fiquemos crispados?! Que nos rendamos sem luta?! Que ofereçamos a outra face?! Devem estar a sonhar, ou então perderam de vez o contacto com a realidade.

A classe média estava ressentida; hoje está furiosa. Se o que preocupa o governo é a credibilidade do País perante os mercados, é bom que entre com esta fúria nos seus cálculos.

terça-feira, 9 de março de 2010

Pedem que não haja crispação.

O ministro Teixeira dos Santos pede aos partidos da oposição que "sejam responsáveis". O líder das associações patronais pede aos sindicatos que evitem a crispação.

Hipócritas.

Quando Jesus filho de José nos pediu que déssemos a outra face, ao menos não tinha sido ele a dar a bofetada.

domingo, 7 de março de 2010

O que pode fazer um professor isolado para proteger um Leandro?

O sistema escolar público português não está pensado para proteger os Leandros: está pensado para proteger os bullies. Ao Governo, não interessa que se fale muito em violência nas escolas, e muito menos em violência generalizada. Aos bonzos da pedagogia não interessa que se distinga entre agressores e vítimas. O Estatuto do Aluno parte do princípio que todos os alunos são bonzinhos e que, a haver excepções, a culpa é dos professores. Às direcções das escolas não interessa que os seus estabelecimentos sejam vistos como problemáticos e desçam nos rankings. Um professor que tente contribuir isoladamente para que a violência na sua escola diminua sabe à partida que não contará com o apoio da hierarquia ou da tutela, mas sim com a sua oposição surda.

Podemos censurar um professor que, ao assistir a uma cena de violência, passe adiante e se limite a participar a ocorrência a "quem de direito"? Não podemos. Ninguém é obrigado a ser herói. Para intervir eficazmente e em tempo útil, o professor teria que ter, em grau mais alto ao que é exigível a um ser humano normal, um certo número de virtudes, a primeira das quais é a coragem.

Coragem para "fazer ondas" sabendo que quem "faz ondas" nunca é bem-visto e que a sua acção o vai prejudicar, em termos de avaliação do desempenho, no que toca o parâmetro "relações interpessoais". Coragem física para intervir pela força, se vir que isto é absolutamente necessário, sabendo que alguém nas redondezas pode estar armado. Coragem moral para se defender no processo disciplinar a que será inevitavelmente sujeito por ter usado a força.

Outra virtude de que necessita em alto grau é uma perspicácia acima do vulgar. A perspicácia pode ser aprendida e treinada, mas mesmo assim será inevitavelmente prejudicada se a atenção dos professor estiver dispersa por uma infinidade de responsabilidades e tarefas das quais não consegue abstrair para ver o que se passa à sua volta.

Relacionada com a perspicácia está a empatia. A probabilidade de uma vítima de bullying contar o que se passa a um adulto é sempre baixa, segundo as estatísticas; mas aumenta um pouco se o adulto em questão for visto por ela como capaz de empatia. A empatia nasce com a pessoa e não pode ser aprendida; mas pode ser desaprendida pela acção do seu maior inimigo, que é o stress.

Junta com a empatia vem a discrição. O aluno que faz confidências a um professor tem que ter a certeza que qualquer atitude que este venha a tomar será previamente negociada entre os dois - caso contrário, não as fará. Para que o professor se inteire do problema com todas as suas ramificações - e estes problemas têm sempre ramificações - não bastam cinco minutos de conversa de corredor: são precisas várias conversas sem limites de tempo previamente estabelecidos e em condições razoáveis de privacidade. Destas conversas não haverá registo que possa integrar um portefólio - e com isto chegamos a outra virtude, que é o desprendimento. E mais uma vez coragem, para enfrentar as acusações de qualquer pessoa mal intencionada que note que um dado professor e um dado aluno se encontram repetidamente a dois.

Discernimento, também, para optar entre ajudar ele próprio o aluno ou enviá-lo a alguém mais qualificado. Mas quem é esse alguém? O psicólogo da escola, se o houver? Mas o problema do aluno não é psicológico, é material. Não está na cabeça dele, está lá fora, no mundo real. E por outro lado foi àquele professor, e não a qualquer outra pessoa, que o aluno resolvei dirigir-se, não se sabe ao fim de quantas hesitações: qualquer gesto que parecesse um "passar da batata quente" poderia ser visto pelo aluno como uma traição e provocar nele um silêncio ainda mais cerrado.

Será então impossível a um professor combater o bullying apesar do sistema, ou mesmo contra ele? Impossível, não é: é apenas extremamente difícil, e tem um preço. Para o fazer, o professor não precisa de ser nenhum herói nem nenhum santo; mas tem que ser uma pessoa dotada de qualidades invulgares.

E não há organização nenhuma que possa funcionar apenas com pessoas invulgares.

Tudo de pernas para o ar

Temos que conquistar a confiança dos mercados, dizem eles. Esperem aí: não era para ser ao contrário?

sábado, 6 de março de 2010

O que sabiam de economia os faraós


Quando alguém duvida da utilidade dalguma grande obra em projecto, é provável que a designe por obra faraónica. É um cliché, pois claro; e um cliché que já deve cansar a maioria das pessoas.

Não a mim. Os clichés não me incomodam. Pelo contrário, sou um apreciador e coleccionador de clichés, e uma das coisas que me dão prazer é decompô-los, observá-los, averiguar de onde vêm - e principalmente imaginar aonde levam e que implicações têm, se tomados à letra.

Claro que não é possível levar completamente à letra a expressão "obra faraónica". O adjectivo tem implícita uma metáfora: a obra a que se refere não é literalmente uma obra dos faraós, mas sim semelhante às dos faraós. Implícita está a ideia duma obra economicamente irracional; e implícita por extensão está a ideia que os faraós não sabiam nada de economia.

Concedo que não soubessem nada de finanças, como Jesus Cristo no poema de Fernando Pessoa. Esta ignorância tinha para eles uma desvantagem e uma vantagem. A desvantagem é que estavam privados dum instrumento conceptual de indubitável utilidade para compreender a realidade económica; a vantagem é que não corriam o risco de confundir a separação metodológica entre o âmbito das finanças e o da economia com uma separação real. Nunca lhes ocorreria, por exemplo, supor que um problema económico pode ser resolvido por meios exclusivamente financeiros.

Mas sabiam de economia, pelo menos na definição que dela dão os dicionários. Dispunham de um sistema de produção e consumo de bens e serviços, de circulação da riqueza e de redistribuição de rendimentos. E compreendiam este sistema; ou, se não eles, os seus escribas. Sabiam comparar custos e benefícios; apenas não tinham a mesma noção que nós do que constitui um custo e do que constitui um benefício.

O que levaria uma sociedade a incorrer no custo gigantesco de construir as pirâmides de Gizé? A vontade dos faraós, com certeza: há notícia de poucas sociedades em que o poder duma só pessoa estivesse tão perto de ser absoluto, e um poder quase absoluto conta para alguma coisa.

Isto levanta duas questões: se a vontade do faraó é suficiente, e se é racional.
A resposta à primeira questão parece-me evidente: a vontade do faraó não chega, é necessário o concurso doutras vontades. Nenhum governante que tenha amor à vida governa muito tempo, por mais perto do absoluto que esteja, sem o consenso doas governados. Não se entenda aqui por consenso a unanimidade, nem sequer o apoio activo de uma maioria: entenda-se antes a confluência de quatro condições: o apoio activo, organizado e determinado duma minoria, ainda que muito pequena; o poder pessoal de cada elemento desta minoria, consubstanciado, quer na riqueza, quer na força física, quer no conhecimento, quer no armamento, quer na capacidade estratégica, quer no prestígio de que goza ou no temor que inspira; o apoio passivo doutra minoria, necessariamente mais larga que a primeira; o consentimento ou a indiferença da maioria; e a ausência duma oposição organizada, determinada e poderosa.

O cálculo do faraó é racional. Perante o benefício esperado - nada menos que a imortalidade - o custo, por maior que seja, é sempre aceitável. Mas as pessoas que consentiram e colaboraram na construção das pirâmides também devem ter feito o cálculo dos seus próprios custos e dos seus próprios benefícios. No que toca os custos, sabemos quais foram: tempo, esforço e impostos. Sobre os benefícios esperados, pouco mais podemos fazer que especular.

Contrariamente ao que Hollywood nos ensinou, as pirâmides não foram construídas, ou não o foram predominantemente, por mão-de-obra escrava. Temos indícios, pelos cuidados postos nos funerais dos trabalhadores, que estes tinham um estatuto que não era o mais baixo da sociedade. Seria este estatuto um dos benefícios que contavam obter? Sabemos que as obras decorriam com maior intensidade durante os períodos em que as cheias do Nilo forçavam os agricultores à inactividade: talvez a perspectiva de serem alimentados três meses por ano pelos celeiros do faraó e não pelos seus próprios constituísse outro destes benefícios; ou talvez esperassem que a imortalidade do faraó redundasse a favor de todos, contribuindo magicamente para a regularidade das cheias e dos dias. Crenças como esta são hoje consideradas irracionais; mas, uma vez que existam, a decisão tomada com base nelas é perfeitamente racional: custos limitados, benefícios ilimitados e, graças ao aval dos deuses, risco zero.


O investimento feito nas pirâmides talvez tenha sido um dos mais racionais da história humana. E contudo os benefícios esperados não se realizaram: a avaliar pelo estado das múmias, os faraós mortos continuam, tanto quanto sabemos, mortos. E se as pirâmides não tivessem sido construídas o Sol, sabêmo-lo hoje, teria muito provavelmente continuado a nascer todas as manhãs; o Nilo teria continuado a ter cheias todos os anos.

O que os faraós nunca teriam podido imaginar é que os seus túmulos viessem a produzir, quatro mil e quatrocentos anos depois de construídos, uma parte considerável do rendimento do Egipto. Egipto este em que existem universidades, bancos, bolsas de valores e economistas que sabem imenso de finanças.

Imaginem: da decisão impecavelmente racional dos faraós não resultou nenhum dos benefícios esperados. Os benefícios reais só se começaram a realizar numa época em que a mesmíssima decisão teria sido considerada, e com razão, delirante. Go figure.

Se esta dupla contradição não constitui uma das grandes ironias da História, então o meu sentido da ironia tem deficiências graves. E se a sua explicação não representa um desafio irresistível para os economistas da Universidade do Cairo (pelo menos para esses), então os economistas de hoje sabem muito menos de economia do que sabiam os faraós e os seus escribas.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Na escola do Leandro

Abri há minutos o ProfBlog e deparei com este texto indignado do Ramiro. Li a acusação que ele fez a parte dos blogues de professores por não se terem interessado suficientemente pelo assunto; e, apesar de o meu blogue não ser exactamente um blogue de professores, senti-me atingido pela acusação.

Tens razão, Ramiro: foi imperdoável não termos reagido todos no tempo certo nem com a veemência necessária. No que me diz respeito, penitencio-me; e quanto a ti, presto-te a homenagem que mereces pela tua indignação e pelo teu desassombro.

O Leandro foi vítima vezes demais. Foi vítima, não sabemos quantas vezes, da violência e da crueldade de alguns colegas; foi vítima da inércia da direcção, dos professores e dos funcionários da escola; talvez tenha sido vítima da mentalidade do "só lhe faz bem, faz dele um homem"; e para cúmulo foi vítima, mesmo depois de morto, do supremo insulto da indiferença.

Não sei se esta indiferença se deve, da parte da escola, à insensibilidade dos seus responsáveis ao ao medo de perder pontos na avaliação e nos rankings. Se se tratar da segunda hipótese, ainda é pior que a primeira.

Se a coragem é a primeira das virtudes, é porque sem ela as outras virtudes não passam de bons sentimentos: fazem com que quem os experimenta se sinta bem, mas não contribuem em nada para promover o bem ou evitar o mal.

Aos responsáveis da escola do Leandro, aos seus professores e funcionários, deixo aqui um pedido: não se fiquem pelos bons sentimentos, que não interessam a ninguém. Cuidem antes de fazer todo o possível para que o Leandro não venha a ser de novo uma vítima, desta vez da impunidade dos seus torcionários.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Ainda o Trilema de Rodrik, desta vez a propósito da União Europeia

A "TIME Magazine" de hoje afirma, com chamada de capa, que a União europeia precisa de decidir se quer ou não ser uma potência global.

Pelos vistos, não quer. Para ser uma potência global, precisaria de ser uma entidade soberana, e isto, ao que parece, está fora de causa.

Isto é, no mínimo, curioso: quando se falava em delegação de soberania por parte dos Estados Membros, partia-se naturalmente do princípio que esta soberania seria delegada na União. Não foi isto que aconteceu: os Estados perderam soberania, mas esta, em vez de se transferir para outra instância, dissipou-se pelo caminho. Tal como as coisas estão, nem a União Europeia é soberana, nem os Estados que a constituem o são.

Outra coisa que a União Europeia não é, é uma democracia. O Parlamento Europeu não tem os poderes próprios dum parlamento numa democracia. E a vontade dos eleitores expressa em eleições nacionais está sempre sujeita ao veto de instituições como o BCE, sobre as quais o poder político não tem qualquer autoridade.

O que a UE não pode fazer é parar no meio do salto. Ou se assume como entidade soberana, ou devolve aos Estados a soberania perdida. Ou respeita a vontade política dos europeus em geral, ou permite a cada Estado que respeite a vontade política dos seus cidadãos em particular.

Ou seja: é possível conciliar quaisquer dois termos do trilema, mas também é possível escolher apenas um. Ou nenhum, se as coisas correrem mesmo mal. Resta saber se a utopia do mercado livre merece que lhe seja sacrificada não só a democracia, como também a soberania, seja na União Europeia, seja em qualquer um dos Estados que a constituem.