Segundo a revista Visão desta semana, o Produto Interno Bruto do planeta duplicou na década que agora, jornalisticamente, termina. Esta duplicação teria permitido qualquer um dos seguintes resultados:
1ª hipótese: duplicar em termos médios o rendimento dos habitantes do planeta, o que poderia ter sido feito:
a) na mesma percentagem para todos, mantendo o nível de desigualdade;
b) em percentagem maior para os mais pobres, diminuindo a desigualdade;
c) ou em percentagem maior para os mais ricos, aumentando a desigualdade.
2ª hipótese: diminuir para metade, também em termos médios, o tempo de trabalho dos habitantes do planeta
a) diminuindo os horários semanais,
b) alargando os períodos de férias,
c) baixando a idade de reforma
d) e/ou aumentando o desemprego.
O que aconteceu na realidade não tem a ver com nenhuma inevitabilidade histórica ou demográfica nem com o funcionamento "normal" do mercado: foi um facto puramente político, isto é, teve tudo a ver com relações de força.
A história do "primeiro produzir, depois distribuir" é, como a última década provou, uma treta. Na próxima década o PIB do planeta pode duplicar de novo, ou triplicar, ou até decuplicar: se as relações de força não se alterarem, nada disto resultará em qualquer diminuição nas desigualdades ou em aumento dos salários, alargamento dos tempos livres ou melhoria da segurança no emprego.
Pelo contrário: os economistas do regime, as estrelas do empresariado e e os comentadores encartados têm saturado os media com os mesmos avisos que já faziam há dez anos, e há vinte: é preciso moderar, ou até diminuir, os salários; é preciso e inevitável aumentar a idade de reforma e o tempo de trabalho semanal; é preciso e inevitável "flexibilizar" - ou seja, precarizar ainda mais - o emprego; é preciso e inevitável diminuir as prestações sociais e dificultar-lhes o acesso; é preciso e inevitável competir sem quaisquer barreiras com os países onde se fuzilam sindicalistas, como se esta competição alguma vez pudesse ser igual ou justa.
É preciso que na próxima década as relações de forças se alterem: é espantoso ver como as "inevitabilidades" se dissipam sempre que isto acontece. E não vão ser os partidos ditos socialistas, trabalhistas ou social-democratas que o farão a partir de cima: temos que ser nós, a partir de baixo. We, the People, como se escreve na Declaração de Independência Norte-Americana. O Povo Soberano: trabalhadores, consumidores, contribuintes, eleitores.
E para começar, podemos apoiar a greve dos funcionários dos hipermercados no próximo dia 24. O que está em causa nesta greve é muito simples: os patrões querem testar a eficácia do celerado Código de Trabalho que um sempre obediente Parlamento lhes ofereceu; os trabalhadores querem ter a liberdade de gerir as suas próprias vidas.
É possível que esta greve não tenha grande adesão: a relação de força não é favorável aos grevistas e muita gente, sem dúvida, irá trabalhar contrariada.
Mas contra os consumidores não têm os empresários qualquer poder de retaliação. Boicotemos os hipermercados e as cadeias de supermercados no dia 24. Se não nos for possível fazer as nossas compras noutro dia, façamo-las no comércio tradicional.
O pequeno comércio pode ajudar nesta luta. Para os patrões, será vantajoso manter os estabelecimentos abertos tanto tempo quanto possível. Para os empregados, trabalhar 12 ou 14 horas neste dia poderá ser tão vantajoso como não as trabalhar para os seus colegas das grandes superfícies; para os consumidores, serão desvantajosos os preços, mas vantajosa a variedade dos produtos disponíveis (numa mercearia fina da Baixa podemos comprar coisas que não há em nenhum hipermercado).
Não é preciso ser de esquerda, e muito menos de extrema-esquerda, para cumprir este dever cívico: basta saber um pouco de aritmética elementar, ter um mínimo de vocação para a liberdade e conservar um resquício de humanidade no coração. E não estar disposto a ser, daqui a dez anos, mais pobre num mundo mais rico.
Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
...............................................................................................................................................
The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
....................................................................................................................................................
11 comentários:
No que tenho lido sobre o assunto surge por vezes a ideia de que o PIB tal como é calculado, mede com mais rigor a "velocidade" do dinheiro do que propriamente a criação de riqueza.
Nesse sentido, a duplicação do PIB poderá traduzir a multiplicação de transacções em que nenhuma riqueza real é criada, mas em que créditos fajutos eram transaccionados como batatas quentes, por exemplo.
Tem razão, L. Rodrigues: o PIB não mede com rigor a criação de riqueza. Se eu tiver uma capoeira e o meu vizinho uma laranjeira, e se trocarmos directamente ovos por laranjas, houve criação de riqueza que não conta para o PIB. Mas se eu lhe vender os ovos e ele me vender as laranjas pela mesma quantia, já conta. E a troca de dinheiro nem precisa de ser física: desde que fique registada pode ser meramente nocional.
É claro que simplifiquei fazendo corresponder o aumento do PIB a um mesmo aumento nos rendimentos (e simplifiquei ainda mais fazendo-o corresponder a uma diminuição do tempo de trabalho sem especificar que o ócio é em si mesmo um valor e uma forma de riqueza que não pode, pela sua própria natureza, contar para o PIB).
Não simplifiquei por ignorar as limitações do PIB como instrumento de medida, mas por lhe reconhecer mesmo assim utilidade.
Nota: nada me impede de vender uma dúzia de ovos ao meu vizinho por um milhão de euros e de ele me vender um quilo de laranjas pela mesma quantia. Se o fizermos, o PIB aumentará em dois milhões de euros; eu e o meu vizinho ficaremos mais pobres na medida dos impostos que incidam sobre a transacção, deduzido o valor de mercado dos ovos e das laranjas; e o Estado ficará mais rico na mesma medida, mas sem a mesma dedução.
"E não vão ser os partidos ditos socialistas, trabalhistas ou social-democratas que o farão a partir de cima: temos que ser nós, a partir de baixo. We, the People, como se escreve na Declaração de Independência Norte-Americana. O Povo Soberano: trabalhadores, consumidores, contribuintes, eleitores."
Esta é a parte central do seu texto:No entanto necessita duma melhor explanação ideológica...não acha?
Francisco Trindade
E somos mesmo "We the people" que o devemos de fazer. Como ?
Ganhando maior consciência de voto de cada vez que somos chamados às urnas.
Produzindo mais e melhor nos nossos postos de trabalho, mas não caindo na armadilha de o fazer para além do horário normal de trabalho, mostrando desta forma aos patrões que produzimos e bem, mas sem atropelos dos nossos próprios direitos laborais.
Não envredando pelo consumismo desmesurado que nos empurra para a necessidade de ganhar cada vez mais, e com isso fragilizando a nossa independencia e liberdade no posto de trabalho. Porque quando o patrão sabe que os créditos são muitos e o empregado anda com a corda no pescoço, é ai que ele o escraviza ainda mais.
Respeitando o ambiente, para que amanhã ainda exista planeta, e que o mesmo seja sustentável.
....
Muito mais haveria para dizer, mas bastariam estas 4 mudanças comportamentais, em todos nós, para que já amanhã os valores do PIB tivessem a directa correspondencia nos salários e/ou no ócio que o José Luiz aqui expôs, e muito bem.
Um abraço e um bom Natal.
Feliz Natal, José Luiz Sarmento!
Depois de uma primeira leitura rápida, vim hoje rever mais calmamente este texto que considero ser uma das análises mais interessantes sobre o mundo actual que se podem encontrar na blogosfera! Uma análise e, sem dúvida, um excelente contributo cívico!
Como dizia e bem, acompanhado magnificamente por alguns comentadores, temos que ser nós, no dia a dia a tomar a atitude certa, a mudar as coisas, a mudar o mundo!
Penso que o que foi dito no texto e nos comentários que me antecederam reflecte bem que, apesar de tudo, ainda há pessoas lúcidas e que pensam pela própria cabeça e que, mais importante ainda, não desistiram de passar a mensagem certa a um mundo que aparentemente parece cada vez mais indiferente!
Eu, em tempos, tentei realizar actividade política partidária relativamente activa e, por pensar nos termos em que penso, percebi, tal como algumas outras pessoas, que pertencia a um grupo exótico de pessoas consideradas como semi-cretinas e semi-inconvenientes!
Excepto quando precisavam de nós para elaborar textos ou realizar estudos!
É-se considerado semi-cretino quando se está na política por ideal e não se procuram lugares ou vantagens! Pior ainda quando se acha que os actuais poderes políticos não passam de meros serventuários dos poderes económicos!
Semi-cretino ou com aspirações políticas ocultas, o que dá o mesmo efeito inquietante nos vários patamares de poder partidário!
Apesar disso, não desisti ainda, mas pelo que conheço do mundo partidário em geral, sinto que somos poucos , os que nos mobilizamos por convicção, sem interesse, apenas porque temos um ideal!
É preciso pois que, para além da consciência cívica e da actuação quotidiana coerente com essa consciência, que os mais lúcidos e sãos da nossa sociedade, integrem movimentos cívicos, associações e partidos políticos e os façam mudar por dentro, não os deixando maioritariamente na mão de oportunistas que não conseguem ver mais do que o seu interesse!
Esse é o desafio adicional que deixo aqui, desejando um Bom Natal e um excelente 2010!
Um abraço
A história repete-se, ou será um ciclo, nem sei qual a melhor expressão empregar para salientar a hierarquia social histórica, ou será a história regride? O que me parece ser verdade é que os financeiramente mais fortes, ditam as regras do jogo misturando o eticamente aceitável com a lei. Em zapping televisivo, num daqueles programas fazedores de opinião pública, ouvi João Salgueiro ( na altura ainda Presidente da Associação Portuguesa de Bancos) dizer que se podia circular a cento e vinte nas auto-estradas, a lei permite, então porque é que se deveria circular apenas a cento e dezanove? Os políticos são o espelho de uma sociedade, fomos nós que os elegemos como defensores da causa pública, continuando assim a manifestar a nossa ignorância. Al Gore no “Ataque à razão” salienta a importância dos blogues na voz activa do “povo”. Depois deste mote, voltemos à história: lembram-se quando apareceu a moda do e-mail? Poucos tinham correio electrónico e usavam nomes engraçados como endereço, depois toda a gente passou a ter, e agora uns quantos já não acham piada às cinquenta mensagens que chegam por dia, ou até mesmo a nível profissional se vai perguntando se “já recebeste aqueles e-mails que por ai circulam e têm isso?” O caminho pode ser este, através desta nova via de comunicação possamos nós ir informando, debatendo ideias, colaborando dessa forma para uma consciência colectiva mais informada acerca de si mesma.
Um tema excelente que me permito dar à estampa, com a devida vénia, no meu blogue http://limonete.blogspot.com/
Enviar um comentário