Se esta pergunta me fosse feita por um gestor ou por um economista, eu responder-lhe-ia que estava feita ao contrário: não é a economia que pede contas à cultura, é a cultura que as pede à economia.
No entanto, a pergunta, feita num contexto que não seja estreitamente utilitário, faz sentido e merece resposta. Para que serve a cultura?
Uma resposta possível, implícita no que escrevi acima, é que não serve nem tem que servir para nada. A cultura é um fim em si mesma. A vida que não é examinada não é digna de ser vivida, dizia Sócrates: vivemos para filosofar, não filosofamos para viver. A vida sem cultura, depreende-se, pode ser vida, mas não é vida humana.
Outra resposta é que só a cultura permite a liberdade. Não a garante: apenas a permite. O homem ignorante, o homem primário, erige à sua volta uma prisão feita de convencionalismos, frases feitas, mitos urbanos, slogans e superstições. Não ousa dar um passo fora dela; por vezes nem se apercebe da existência de um mundo exterior. Não sofre com o seu cativeiro.
Mas se tem poder suficiente para obrigar outros a partilhá-lo, esses sofrem. A normalidade, que é a utopia dos medíocres, é a distopia de quem sabe que há mais mundo. Transmutada pelo jargão tecno-burocrático, a normalidade torna-se normalização: nem por isso é menos desumana.
A incultura de que falo não é só a dos iletrados. Pode ser a que resulta da hiper-especialização. O homem ou a mulher que detém um só saber tende a ver nele a explicação cabal do Mundo e do Homem: vemos isto hoje em muitos economistas, especialmente nos neoliberais, mas neste particular os economistas não são - longe disso - caso único.
Ou pode ser a incultura que resulta da mera erudição, que só sabe pensar o que já foi pensado.
O pensador, o cientista, o artista, o professor têm a seu cargo a liberdade de todos. A escola não serve para normalizar as pessoas (como a União Europeia faz à fruta): serve para as equipar com os recursos de pensamento e de percepção que lhes permitirão, se quiserem, fugir à norma. A política educativa não é subsidiária da política económica. É isto que nenhum burocrata da educação ou técnico da OCDE jamais entenderá.
Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
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4 comentários:
A forma como os estudos ligados às Humanidades têm sido relegados para um patamar secundário dos saberes é vergonhosa. O que "está a dar" é Informática, Economia, Gestão e afins... Curiosamente, os discursos (com o objectivo de divulgar as políticas educativas e não só) acabam por utilizar como uma espécie de "prova" dos argumentos apresentados, tiradas colhidas nas áreas das Humanidades. O resultado é que essas tiradas acabam por ser o que permanece de toda a retórica demagógica...
A escola devia servir para fornecer "ferramentas" às pessoas que permitam compreender e orientar as vidas à medida de cada um. Conforme muito bem refere, os indivíduos não são fruta.
Do meu ponto de vista, as áreas das Humanidades ajudam-nos a compreender as idiossincrasias do Homem. Esta é uma verdade digna de La Palisse mas infelizmente tenho que concordar consigo: dificilmente algum burocrata da educação ou técnico da OCDE entenderá a necessidade de cultivar a diversidade... Excelente post.
Muito bom. Não posso estar mais de acordo.
Subsescrevo!
Pim!Pam!Pum!
Também subscrevo inteiramente. Mas com uma pequena reserva ou, melhor dizendo, uma adenda: a cultura não protege, por si só, da barbárie. Lembremos a imagem do comandante nazi de um campo de extermínio que, depois de um dia a supervisionar uma fábrica de assassinato de seres humanos, escutava calmamente no remanso do lar uma sinfonia de Beethoven (talvez a 9.ª, para que a obscenidade fosse maior). O facto de homens de cultura serem capazes de perpetrar os mais inomináveis crimes contra a humanidade (diria: contra a sua própria humanidade) obriga-nos a pensar melhor a essência da cultura - para usar uma expressão que Heidegger não desdenharia, ele que foi, ao mesmo tempo, um dos maiores filósofos do século XX e alguém que pagou as quotas de militante do partido nazi até 1945.
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