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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
....................................................................................................................................................

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Entrevista de Naomi Klein a Keith Olberman

"Guns beat Green: The Market Has Spoken"

"In other words, solving real problems is hard, but turning a profit from those problems is easy."

Esta frase vem quase no fim do artigo publicado ontem em The Nation por Naomi Klein. O título é o mesmo deste post. Para quem acha que os mecanismos do mercado vão resolver os problemas ambientais recomenda-se a leitura.

Espero que Maria de Lurdes Rodrigues não leia isto

Nas escolas da Europa

Nas escolas da Europa adoptam-se manuais escolares feitos de forma a que seja possível estudar por eles.
Nas escolas da Europa os manuais são fornecidos aos alunos no início do ano lectivo: se no fim do ano estiverem escritos ou danificados, há que os pagar.
Nas escolas da Europa fornecem-se os cadernos, os lápis, as borrachas, as esferográficas, os compassos; aos alunos é exigido que façam uma gestão cuidadosa do material escolar.
Nas escolas da Europa há aquecimento central.
Nas escolas da Europa o chão está sempre limpo.
Nas escolas da Europa os alunos podem (em algumas é obrigatório) andar descalços de Verão e de Inverno.
Nas escolas da Europa lêem-se os clássicos.
Nas escolas da Europa ensina-se gramática.
Nas escolas da Europa fazem-se ditados.
Nas escolas da Europa as calculadoras só são permitidas quando o objecto de estudo é o seu uso.
Nas escolas da Europa decoram-se poemas.
Nas escolas da Europa fazem-se traduções e retroversões.
Nas escolas da Europa os professores são respeitados.
Nas escolas da Europa os professores são avaliados: os que ensinam bem são bons e os que ensinam mal são maus.
Nas escolas da Europa os pais pagam multas quando os alunos faltam; em alguns países, se a infracção se repete, podem ser presos.
Nas escolas da Europa combate-se o bullying.
Nas escolas da Europa os pais respondem perante a lei pelos actos de indisciplina ou violência dos filhos.
Nas escolas da Europa há currículos diferentes para projectos de vida diferentes.
Nas escolas portuguesas redigem-se actas, elaboram-se grelhas e preenchem-se formulários. Quando as coisas correm mal redigem-se mais actas, elaboram-se mais grelhas e preenchem-se mais formulários. Os professores agora também são avaliados: se redigirem muitas actas, elaborarem muitas grelhas e preencherem muitos formulários, serão bons; se não, serão medíocres. E se para cúmulo tiverem a prepóstera veleidade de ensinar, serão considerados maus.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

É proibir, não, é permitir, não, é obrigar, não, afinal vamos lá ver se nos entendemos...

No Arte da Fuga encontrei esta pérola, assinada por um senhor que eu não conhecia chamado Adolfo Mesquita Nunes. Deixo a azul, como no original, o texto de AMN; o que está em itálico é meu.

Tenho para mim, e foi esse o sentido da minha intervenção no Grupo de Missão [do PP], que a decisão de ter um filho se inscreve num irredutível espaço de intimidade dos pais, devendo eles ser livres de escolher ou não ter um filho. Nesta medida, o Estado não é nem pode ser tido nem achado. A ele não lhe cabe aplaudir ou condenar qualquer uma destas decisões.

«Nesta medida», porquê? O Estado só intervém para limitar opções? Não é ao menos concebível que intervenha para alargar opções que se encontravam limitadas por terceiros ou pelas circunstâncias?

Por isso, não cabe ao Estado fomentar a natalidade (ou sustê-la). Cabe ao Estado, isso sim, avaliar as suas políticas no sentido de surpreender efeitos extravagantes que, de alguma forma, estejam a limitar esse espaço de liberdade dos pais.

Por isso? Que «isso» é esse? O facto de os pais deverem ser livres? Ou a proibição de o Estado se meter no assunto, quer para limitar essa liberdade, quer, presumivelmente, para a assegurar? E já agora, o que é isso de «surpreender efeitos extravagantes»?

Ora, uma rápida análise de um conjunto de políticas públicas que vão da educação às relações laborais passando pelo enquadramento fiscal permite, desde logo, concluir que o Estado tem vindo a dificultar, de forma muitas vezes sistemática e até inadvertida, a natalidade.

Factos, caro senhor, factos. Quais são exactamente as políticas educativas do Estado que dificultam a natalidade?

Que as relações laborais dificultam a natalidade, todos sabemos; mas em que práticas concretas, dificultadoras da natalidade, se concretizam essas relações? E quem são os autores destas práticas: em maior grau o Estado, ou em maior grau as empresas?


Qual é o peso do enquadramento fiscal na política de natalidade? Determinante? Negligenciável? Entre um e outro destes extremos? E neste caso, em que posição?

Mas o que mais me intriga neste parágrafo é isto: como é que uma política pode ser ao mesmo tempo sistemática e inadvertida?

Esse deve ser, por isso, o esforço do Estado no que à natalidade diz respeito, impedindo que gerar um filho seja convertido em privilégio, em vez de andar a distribuir subsídios por cada filho que nasça.

Santa paciência. Por onde é que vou pegar nesta confusão? Talvez começando por procurar o referente daquele «esse». «Esse» esforço? Qual esforço? De que esforço está o senhor a falar?

Depois diz que o Estado deve impedir que ter um filho seja um privilégio. Como? Não distribuindo subsídios. Está-se mesmo a ver, não está? Sem subsídio, ter filhos é um direito: só os tem quem quer. Com subsídio, transforma-se num privilégio: fica o país cheio de infelizes que querem ter filhos e não podem por causa do malvado do subsídio.


Não se trata de criar nos pais um qualquer direito social à natalidade, como que estando o Estado obrigado a promover todas as condições para que os pais possam ter filhos. Na realidade, tratando-se de uma decisão com tantas variáveis, que é motivada por tão diversos fundamentos, nunca poderia o Estado estar verdadeiramente apto a fazê-lo.

Nunca poderia o Estado estar verdadeiramente apto a fazer o quê, exactamente? A promover todas as condições para que os pais possam ter filhos? O homem aqui parece quase racional. Mas se o Estado não está apto a promover todas, que tal promover algumas?

Mas ainda que estivesse, e não está, os pais não são titulares de um direito social à família. São, isso sim, detentores de uma essencial liberdade de constituir família, segundo o suporte que entenderem, sendo de todo em todo intoleráveis ou ilegítimas todas as políticas que resultem numa limitação dessa liberdade.

São de todo intoleráveis as políticas que resultam numa limitação da liberdade de constituir família. Muito bem. Mas pelos vistos já são toleráveis as práticas de terceiros que limitem essa liberdade: só assim se compreende que constituir família não seja um «direito social».

Tudo isto é muito triste e muito pobre. No palco em que AMN vê o seu Teatro do Mundo só cabem dois actores: o indivíduo desejoso de liberdade e o Estado desejoso de lha tirar. Tudo o resto está ausente: não há colectivos fora do Estado. Não há empresas, nem igrejas, nem seitas, nem quadrilhas de ladrões, nem instituições de beneficiência, nem partidos políticos, nem clubes de futebol.

Nada. Não há nada. Nem sequer há indivíduos com poder sobre os outros. Neste universo paralelo só o Estado ameaça a liberdade. Vistas assim as coisas, é claro que a lei nunca liberta: quanto menos Estado, melhor.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

O Caminho para a Servidão

À medida que avança, o projecto vai ganhando contornos nítidos. No topo, os Senhores: uma aristocracia de empresários e políticos. Imediatamente abaixo virão os escudeiros: a aristocracia menor dos gestores e dos jornalistas.

Tudo o resto está destinado a ser plebe.

O problema, para os candidatos a Senhores, é que nesta massa imensa se incluem pessoas capazes, por formação cultural e conhecimento técnico, de lhes fazer frente e perturbar a ordem neo-feudal que pretendem construir. Não admira, portanto, que o esforço principal desta guerra se dirija de momento contra as «corporações»: trata-se de proletarizar primeiro, e de submeter a seguir, os juízes, os médicos, os professores, os técnicos - em suma, destruir a classe média e desarmar a sociedade civil.

Veja o leitor por si mesmo, atendendo ao que está a acontecer na sua profissão, se não é isto que se está a passar. E não só em Portugal: a nova Idade Média vai caindo sobre o mundo inteiro como um crepúsculo da democracia.

Como poderemos defender-nos? No ancien régime houve corporações que usaram como arma os conhecimentos técnicos de que dispunham e de que os Senhores necessitavam. Fizeram segredo dos seus saberes e organizaram-se em associações clandestinas, as quais com o tempo tempo vieram a dar origem às maçonarias. Receio bem que de futuro venha a ser esta a nossa única opção, se não conseguirmos agora derrotar a oligarquia.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

O que todos devíamos saber de cor

Não mais, musa, não mais, que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho,
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.

Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, Canto X

«Perdi os professores, mas tenho a população»

(Maria de Lurdes Rodrigues)

Primeiro: em democracia não há população, há cidadãos.
Segundo: também já está a perder os cidadãos.

domingo, 25 de novembro de 2007

Ser «anti-eduquês» e ser de esquerda

Perguntaram-me há tempos como podia eu subscrever as teses educativas «reaccionárias» de Nuno Crato, Maria Filomena Mónica, Carlos Fiolhais e outros, ao mesmo tempo que critico insistentemente neste blogue a direita neoliberal.

Esta crítica pôs-me a pensar. Estaria eu a ser reaccionário em matéria educativa quando em matéria moral e política sou aquilo que se pode designar por libertário de esquerda? Tanto tempo demorei a pensar nisto que acabei por perder o rasto do meu crítico e agora não lhe posso responder directamente.

Como ponto prévio direi que não sei, nem me interessa, se as pessoas acima mencionadas são «reaccionárias» ou «progressistas». De todos eles, só conheço pessoalmente o Nuno Crato, e mesmo assim superficialmente. De Maria Filomena Mónica, creio ter lido numa entrevista qualquer que não se considera de direita - e o que uma pessoa pensa de si mesma deve, parece-me, ser levado a sério. Carlos Fiolhais defende a racionalidade contra a superstição - e isto, para mim, é uma posição progressista independentemente de quaisquer opções partidárias, que no caso dele não sei quais são.

Mas isto, repito, não vem ao caso. O que vem ao caso é saber quem define e executa as políticas educativas, e no interesse de quem.

Não ignoro que uma certa esquerda tontinha e politicamente correcta tem graves responsabilidades no delírio educativo que rege as políticas do nosso Ministério da Educação; mas daqui a considerar que estas políticas são de esquerda vai um passo que não estou disposto a dar. A esquerda tontinha parece dominar as políticas educativas porque se deixou acantonar nelas, mas quem a pôs de quarentena nas escolas foi a oligarquia, que não é nem ingénua, nem de esquerda. Se as esquerda tontinha não quer exigência no ensino público (porque cria «desigualdades»), a direita oligárquica também não a quer porque cria mecanismos de mobilidade social ascendente; e quem já está no topo não quer competição.

A esquerda quer uma escola que transmita »atitudes» e «valores»; e a direita reaccionária, encantada, concorda entusiasticamente: o que é preciso é que a escola não transmita à plebe ideias perigosas sobre o seu lugar no esquema das coisas, nem conhecimentos que possam ser convertidos em liberdade ou poder.

A sociedade ideal, para mim, seria aquela em que competisse às instituições conservar e às pessoas inovar (o inferno é, muito provavelmente, o inverso). À escola, instituição vocacionada para fazer a ponte entre o passado e o futuro, competiria ser conservadora sem ser totalitária. Mas o que acontece é o contrário: a escola que o poder político nos impõe é totalitária - no sentido em que se arroga o direito de intervir na globalidade da pessoa - mas não procura conservar o património cultural, científico, artístico, literário e simbólico sem o qual nenhuma sociedade pode evoluir ou sequer sobreviver.

De todas as instituições públicas portuguesas, a escola é provavelmente aquela em que se encontrou o modus vivendi mais confortável entre a esquerda inócua e a direita eficaz. Desta promiscuidade resultam, para quem está de fora, três equívocos sobre a actual Ministra: a de que Maria de Lurdes Rodrigues está contra o «eduquês» quando na realidade tem o «eduquês» na massa do sangue; que está com o progresso e com a inovação, quando na realidade está com a encenação vazia destes valores; e que está com a «população» contra os professores, quando na realidade está com a oligarquia contra o ensino.

Que sobre estes equívocos assente ainda hoje uma imagem democrática das escolas é a mais amarga das ironias.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Propriedade pública, propriedade privada e domínio feudal no Portugal do Séc. XXI: a REN, a Lusoponte e a Estradas de Portugal

Estaremos a assistir a um processo de refeudalização na política e na economia em Portugal? A esta pergunta de Manuel Alegre tenho várias vezes respondido "sim", tanto neste blogue como no extinto Leviathan.

Num tempo em que muito do debate político se centra na contraposição entre propriedade privada e propriedade pública - como se ainda estivéssemos no tempo e nas circunstâncias de Adam Smith - esta questão tende a ficar fora do campo de observação. É pena, porque do ponto de vista da cidadania, da liberdade e da prosperidade individual o que condiciona as nossas vidas é cada vez menos a questão da propriedade, seja ela estatal ou privada, e cada vez mais a questão do domínio, por parte de entidades privadas ou públicas subtraídas à soberania do Estado, sobre as vidas individuais e sobre o espaço público.

Quando a REN invade, em contravenção aos tribunais e sob a protecção duma força militarizada do Estado, a propriedade dum cidadão, pouco interessa saber se os seus capitais são privados ou estatais: o comportamento da empresa seria o mesmo em ambos os casos. Quando a EP se transforma numa SA, pouco interessa saber se com isto se prepara ou não a sua privatização: mesmo que o capital continue a ser público, o facto é que a empresa já se subtraiu à jurisdição pública.

A Lusoponte não é proprietária do troço inferior do Tejo, mas não precisa de o ser para condicionar o direito dos cidadãos (cada vez menos cidadãos e cada vez mais súbditos) a atravessar o rio. Nem precisa de ser proprietária das pontes: o seu domínio exerce-se em relação a todos os atravessamentos construídos ou a construir, sejam eles propriedade sua, de outros privados, ou do Estado. Não precisa da propriedade, basta-lhe ter o domínio; e este foi-lhe outorgado pelo Governo, em representação do povo soberano, com a mesma largueza com que um monarca medieval distribuía condados.

Este fenómeno não é exclusivamente português. Se olharmos para os EUA, para a Halliburton, para a Blackwater, para a guerra privada, para as indústrias da segurança, teremos a sensação de estar perante uma ordem cada vez menos capitalista e cada vez mais feudal.

Na Europa, a apropriação do espaço político por uma oligarquia hermética, centrada cada vez mais na administração dos seus feudos e cada vez menos no interesse público, produz a mesma sensação. No Médio Oriente, no Norte de África, as sociedades só não se refeudalizam porque nunca deixaram de ser feudais. Na Rússia, a mesma coisa. Assim como no Paquistão, no Afeganistão, na América Latina com os seus regimes de compadres e coronéis.

Olho para os nossos media e para os blogues da direita; vejo-os a repetir ad nauseam o elogio da propriedade privada e a demonização da propriedade pública, sem se aperceberem que o que está em causa é a propriedade tout court; e fico com a sensação de que estamos todos a discutir o sexo dos anjos com o inimigo às portas da cidade.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Navegações

Navegando ao acaso, deparei-me com quatro blogues interessantes: o Cyberdemocracia de J. Francisco Saraiva de Sousa, o Kontrastes de João Ferreira Dias, o Ma-schamba de José Pimentel Teixeira e o Navegador Solitário de «agry».
Estão os quatro na minha lista de hiperligações.

O Eclipse da Democracia

Escreve J. Francisco Saraiva de Sousa no seu blogue:

Desde a queda do Muro de Berlim, as democracias ocidentais estão a converter-se em oligarquias, dominadas por novas classes políticas que, através de partidos de poder pouco transparentes e profundamente corruptos, açambarcam o poder político, de modo a garantir a salvaguarda dos seus «direitos adquiridos» e dos seus interesses privados, em detrimento dos interesses gerais do povo. Elas governam burocraticamente, abusando de uma linguagem técnica, recheada de estatísticas abusivas e falsas. Manipulam indecentemente o eleitorado e a «opinião pública» e comportam-se como «ordens feudais». O sistema político refeudalizado fecha-se em si mesmo, ignorando e desprezando o seu exterior, como se este fosse uma massa amorfa que pode ser facilmente moldada e manipulada, com a ajuda dos meios de comunicação social.

(Ler texto completo aqui)

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Encadeado

O Igor d'O Reino dos Fins fez-me esta proposta:

1. Pegue no livro mais próximo, com mais de 161 páginas – implica aleatoriedade, não tente escolher o livro;
2. Abra o livro na página 161;
3. Na referida página procurar a 5.ª frase completa;
4. Transcreva na íntegra para o seu blogue a frase encontrada;
5. Aumentar, de forma exponencial, a improdutividade, fazendo passar o desafio a mais 5 bloggers à escolha.

Faço um pouco de batota: transcrevo não só a quinta frase, mas também a sexta. O livro é Smoke and Mirrors de Neil Gaiman. A(s) frase(s) seria(m):

We just have to tell our bodies to go and recheck the RNA and the DNA - reread the program if you will. And then reboot.


Passo o desafio a:

Catarina do Já Tocou?
Helena do 2 Dedos de Conversa
Lutz do Quase em Português
Nuno Castro d'O Blogue Qualquer
ON do Prozacland

(Já agora: se em vez do livro mais à mão me tivesse sido pedido o meu livro favorito, a frase seria "Pinch him!" e o livro Alice's Adventures in Wonderland de Lewis Carroll).

sábado, 17 de novembro de 2007

The Science of Discworld: uma trilogia

As relações entre a Ciência e a Magia, ou entre a Ciência e a fantasia, sempre me fascinaram. Não é só a famosa boutade de Arthur C. Clarke segundo a qual toda a tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia: é também, por exemplo, o programa de escrita de Isaac Asimov que lhe exigia um conhecimento científico suficiente para que em cada história se admitisse uma e só uma violação das leis da natureza tais como são conhecidas à data. Enquanto se pensou que Mercúrio tinha sempre a mesma face voltada para o Sol era perfeitamente admissível escrever uma história que partisse desse princípio, mas não depois de se ter descoberto que assim não era; e era possível basear uma história na possibilidade de uma nave espacial se deslocar a uma velocidade múltipla da da luz desde que na mesma história não entrassem transmissores de matéria.

Pelo critério de Asimov, a série Star Trek não seria admissível: haveria que escolher entre a warp drive da nave Entreprise e o beam me up, Scotty, do capitão Kirk, mas no mundo de Asimov era proibido utilizar ambas as coisas.

Claro que a Space Opera sempre se esteve nas tintas para estas restrições. Esta liberdade permitia aos seus autores exibir uma ignorância científica muitas vezes cómica.

Até que Terry Pratchett entra em cena. Em vez de admitir uma impossibilidade cientifica em cada história, como Asimov (ou nenhuma, como Arthur C. Clarke), Pratchett compraz-se em inventar um mundo em que nenhuma lei da natureza, tal como as conhecemos, se aplica, mas que apesar disto seja tão coerente quanto a imaginação prodigiosa do autor, aliada a uma considerável cultura científica, o permita.

Pratchett estipula um mundo em forma de disco, assente sobre quatro gigantescos elefantes que por sua vez estão de pé sobre a carapaça duma tartaruga de dimensões planetárias.

Como explicar que neste mundo haja anos e dias, Verão e Inverno, aurora, meio-dia, crepúsculo e noite, diferenças climáticas entre os vários continentes? Pratchett entrega-se a estas explicações com visível prazer: a velocidade da luz, por exemplo, é aqui mais ou menos a mesma que o som; a partícula básica constituinte do Universo não é o átomo, mas o «thaum» (palavra da família de «taumaturgia»: a unidade de magia mais pequena possível). No Departamento de Taumaturgia Aplicada da Universidade de Ankh-Morpork há um grupo de jovens investigadores dedica-se provocar a fissão do thaum e cria por acidente um universo auto-contido (numa esfera de vidro com o tamanho exterior aproximado duma bola de futebol e dimensões interiores muito maiores) em que as pessoas e as coisas ocupam, sem cair, a superfície de mundos esféricos.

Para além desta série de romances, Terry Pratchett foi co-autor, com Ian Stewart e Jack Cohen (um é biólogo e o outro, salvo erro é um químico), duma trilogia de divulgação científica: The Science of Discworld, The Science of Discworld II: The Globe e The Science of Discworld III: Darwin's Watch.

Vale a pena ler.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Monstros, burocratas, pensadores e dandies

Hannah Arendt escreveu algures que não há monstros, há burocratas. A frase, assim lapidar e concisa, e fora de contexto, poderia ser vista como uma mera boutade, não a tivesse a autora desenvolvido, matizado e qualificado em quase tudo o que escreveu.

Como, não há monstros? E então Hitler? E então Estaline? E então Cheney e Rumsfeld? Mas Hannah Arendt tem razão. Pudéssemos nós entrar na alma destes homens, talvez deparássemos nela com o Mal. Ou talvez deparássemos apenas com um enorme vazio. Mas não podemos: nem na deles, nem da dum qualquer serial killer que visto de dentro talvez fosse mais monstruoso, ou menos, do que qualquer tirano - mas que nós só podemos ver de fora.

Não sei o que faria o lojista da esquina, que há décadas remói a sua zanga com o mundo, se as peripécias da História lhe tivessem dado o poder sobre milhões de seres humanos - mas não deram.

Aonde eu quero chegar com isto é que talvez haja monstros, mas se os há, pouco interessa, porque o que de monstruoso acontece talvez acontecesse sem eles. Os tiranos que conhecemos não teriam passado de homenzinhos amargos e insignificantes sem as burocracias que os rodearam. Eichmann nunca compreendeu o que tinha feito de mal: sempre se limitara a fazer o seu trabalho, das nove às cinco; a guerra não lhe dizia nada; irritava-se quando lhe tiravam os guardas dos campos de concentração para os enviarem para a frente de combate.

Sim, mas... só burocratas? As redes de que dependem os tiranos são feitas só de burocratas? Em sentido restrito, no sentido de gente cinzenta e conformista, é claro que não. Todos os tiranos tiveram os seus intelectuais e os seus propagandistas - gente por vezes bem original e vistosa: os filósofos do romantismo tardio alemão, os teóricos do marxismo, os poetas do modernismo que se extasiaram com Mussolini. Goebbels e Leni Riefenstahl.

Mais próximos de nós, também Thatcher, Pinochet, Cheney e Rumsfeld se apoiaram em Hayek, em Fukuyama, no laureado Milton Friedman... Por trás de cada monstro (que, repito, talvez não seja um monstro) há quase sempre um pensador.

Mas só isto não basta. Os pensadores são poucos. Os divulgadores ajudam a fazer número, mas ainda assim não são suficientes. Mesmo os burocratas, numerosos como são, não chegam para perfazer uma maioria. É aqui que entram os dandies: a multidão daqueles para quem o que conta, sobretudo, é serem do seu tempo. Estarem à moda. Estarem com o que "está a dar".

Houve os dandies do comunismo, houve os dandies do fascismo: hoje há os dandies do neoliberalismo. Estão com o que está. Desdenham o passado e acreditam que o futuro é propriedade sua. Revêem-se na modernidade, como já na modernidade se reviam, há cem anos, os seus antecessores. Não sabem nada. Abundam nos quadros das empresas e dos partidos. Alguns dizem-se socialistas. Alguns são Primeiros-Ministros.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

António Marinho e Pinto, As Faces da Justiça

Deixo aqui, um pouco ao calha, um excerto do livro:


Pessoalmente, sempre tive muitas reservas em relação ao termo "terrorista", quer como pessoa, quer como advogado, quer sobretudo como jornalista. Se há coisa que muda com o tempo e/ou com as conveniências políticas é esse qualificativo. Nefandos "terroristas" de há alguns anos são hoje respeitáveis chefes de estado ou honradas figuras da cena internacional [...].

Por outro lado, heróicos combatentes e honrosos aliados de há algum tempo atrás são hoje hediondos terroristas (veja-se o caso mais paradigmático de todos que é Osama Bin Laden).


No entanto, é em relação aos "terroristas" que a questão dos direitos humanos se põe de forma crua e dura. Então um "terrorista" que põe uma bomba e mata dezenas ou centenas ou milhares de pessoas tem o direito de exigir que lhe reconheçam direitos que ele tão ignobilmente desprezou? Terá ele direito às prerrogativas pessoais de qualquer arguido - ao silêncio, a um defensor, a tratamentos que não o degradem na sua condição de pessoa humana e que respeitem a sua integridade física e moral, etc., etc.? Terá ele direito a um advogado pago pelo Estado que ele tão covardemente atacou? Pago, afinal, pelos dinheiros dos contribuintes, incluindo os impostos das vítimas que ele causou ou dos seus familiares?


Às vezes até me arrepio (porque me lembro: e se fosse comigo?), mas a resposta só pode ser uma: sim. Aqui reside a grandeza moral [...] dos Estados sobre os bandos, das democracias sobre as tiranias, da legalidade sobre o arbítrio, do direito sobre a força, da justiça sobre a vingança. Quando eu algum dia deixar de pensar assim então deixarei de ser advogado. Poderei ser tudo na vida, menos um advogado.


É óbvio que me podem perguntar: "Mas se fosse um familiar teu a morrer, já não pensavas assim!" E eu respondo: claro, porque aí eu não queria justiça mas vingança. É que a justiça, enquanto postulado fundamental da ideia de direito, jamais será realizada pelas vítimas. Já há muitos séculos que os estados minimamente civilizados chamaram a si o exclusivo da administração da justiça, com proibição da chamada "justiça privada", que mais não é que vingança.


Leio isto e sinto um calor no coração. Um orgulho imenso de ser europeu. De no meu país não haver pena de morte, e muito menos execuções em que que estão presentes as famílias das vítimas. De viver num mundo em que o Estado não se arroga o poder nem o direito de exercer a vingança, mas apenas, modesta e civilizadamente, de proteger os cidadãos.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Desigualdade política

Esta mensagem corresponde a um comentário que fiz ao texto As desigualdades fazem mal ao desenvolvimento publicado por João Rodrigues no blogue Ladrões de Bicicletas. O meu comentário surge na sequência de outros e em resposta a uma pergunta que me foi dirigida pelo leitor Pedro Sá. Para aceder ao texto de João Rodrigues e respectivos comentários utilize a hiperligação contida nesta nota; para aceder à página inicial do Ladrões de Bicicletas, utilize a hiperligação aqui à direita.

Por desigualdade política entendo a desigualdade no acesso ao poder e a desigualdade na sujeição ao poder.

Verifica-se uma desigualdade no acesso ao poder quando para certas pessoas é mais fácil - por razões de etnia, fortuna, sexo, religião ou outras - exercer funções de soberania ou ser ouvidas por quem as exerce.

Verifica-se uma desigualdade na sujeição ao poder quando para certas pessoas é mais fácil do que para as restantes ficarem impunes pelo mal causado a terceiros ou obterem a punição de terceiros pelo mal de que foram vítimas.

Se só houvesse desigualdades económicas, por maiores que fossem, e não houvesse desigualdades políticas a funcionar em sinergia com aquelas, não teria cabimento falar em classes sociais. Mas isto é uma pura condição abstracta que não se pode verificar na realidade.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Choque cultural

Na noite de S. Martinho fui jantar a casa duma amiga, que por sua vez tem hospedada uma amiga sua, em férias, austríaca.
A sobremesa foi feita pela amiga: requeijão com compota de malaguetas.
Gostei.
E vocês, leitores, antes de começarem a fazer ruídos enojados como os do Calvin diante dum prato de espinafres, reflictam que tudo na vida se deve experimentar.

Mais dois livros

No War, com textos de Naomi Klein (autora do já aqui referido The Shock Doctrine), Bryan Mealer, Susan Watkins e Walter Laqueur, é um pequeno volume na melhor tradição do jornalismo investigativo norte-americano.

A Brief History of Neoliberalism de David Harvey é o que o título indica. Pensado para o leitor não especializado, relata concisamente o desenvolvimento daquilo que foi, nos últimos anos do século XX, um movimento económico e sobretudo político que hoje afecta, em tudo o que é importante, as vidas de todos nós.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Uma perspectiva de esquerda do neoliberalismo

(Clicar no título para aceder à página da Amazon.co.uk; clicar na foto para ampliar)

Conteúdo


PART I: THEORETICAL PERSPECTIVES


1. The Neoliberal (Counter-)Revolution

Gerard Dumenil and Dominique Levy

2. From Keynesianism to Neoliberalism: Shifting Paradigms in Economics

Thomas I. Palley

3. Mainstream Economics in the Neoliberal Era

Costas Lapavitsas

4. The Economic Mythology of Neoliberalism

Anwar Shaikh

5. The Neoliberal Theory of Society

Simon Clarke

6. Neoliberalism and Politics, and the Politics of Neoliberalism

Ronaldo Munck

7. Neoliberalism, Globalisation and International Relations

Alejandro Colas

PART II: SURVEYING THE LANDSCAPE


8. Neoliberalism and Primitive Accumulation in Less Developed Countries

Terence J. Byres

9. Neoliberal Globalisation: Imperialism without Empires?

Rugo Radice

10. Neoliberalism in International Trade: Sound Economics or a Question of Faith?

Sonali Deranyiagala

11. 'A Haven of Familiar Monetary Practice ': The Neoliberal Dream in International Money and Finance

Jan Toporowski

12. From Washington to Post- Washington Consensus: Neoliberal Agendas for Economic Development

Alfredo Saad-Filho

13. Foreign Aid, Neoliberalism and US Imperialism

Henry Veltmeyer and James Petras

14. Sticks and Carrots for Farmers in Developing Countries: Agrarian Neoliberalism in Theory and Practice

Carlos Oya

15. Poverty and Distribution: Back on the Neoliberal Agenda?

Deborah Johnston

16. The Welfare State and Neoliberalism

Susanne MacGregor

17. Neoliberalism, the New Right and Sexual Politics

Lesley Hoggart

18. Neoliberal Agendas for Higher Education

Les Levidow

19. Neoliberalism and Civil Society: Project and Possibilities

Subir Sinha

20. Neoliberalism and Democracy: Market Power versus Democratic Power

Arthur MacEwan

21. Neoliberalism and the Third Way

Philip Arestis and Malcolm Sawyer

PART III: NEOLIBERAL EXPERIENCES


22. The Birth of Neoliberalism in the United States: A Reorganisation of Capitalism

Al Campbell

23. The Neoliberal Experience of the United Kingdom

Philip Arestis and Malcolm Sawyer

24. European Integration as a Vehicle of Neoliberal Hegemony

John Milios

25. Neoliberalism: The Eastern European Frontier

Jan Toporowski

26. The Political Economy of Neoliberalism in Latin América

Alfredo Saad-Filho

27. Neoliberalism in Sub-Saharan Africa: From Structural Adjustment to NEPAD

Patrick Bond

28. Neoliberalism and South Asia: The Case of a Narrowing Discourse

Matthew McCartney

29. Assessing Neoliberalism in Japan

Makoto Itoh

30. Neoliberal Restructuring of Capital Relations in East and South-East Ásia

Dae-oup Chang

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Afinal há economia para lá da vulgata neoliberal

Julgava eu, na minha iliteracia, que a vulgata neo-liberal era o state of the art em Economia: um consenso que unia não só os políticos modernaços, os yuppies, os jornalistas económicos, os empresários espertalhões, os governadores dos bancos centrais, o FMI, a OMC e os bloggers d'O Insurgente - mas também, com algumas excepções, os economistas académicos mais credenciados das universidades mais reputadas.

Ora isto sempre me fez espécie. Como podem vozes tão autorizadas (umas menos autorizadas que outras, é certo) falar nas virtudes da desigualdade económica sem nunca mencionar ao menos um critério para aferir o grau óptimo dessa desigualdade? Como ousam deixar implícito que toda a desigualdade é boa, e quanto mais, melhor? Como podem deixar por examinar a correlação, se a há, entre desigualdade económica e desigualdade política? Como podem ignorar as diferenças entre criação de riqueza (se é que isto existe), produção de riqueza, aquisição de riqueza e conservação da riqueza?

Porque é que se vestem de políticos (ou até de filósofos morais) quando falam de economia, e de economistas quando falam de política?

Porque é que apresentam as leis do mercado como leis naturais e ao mesmo tempo como leis morais? A gravidade é uma lei natural, que funciona em qualquer caso e não precisa de ser respeitada; a proibição do homicídio é uma lei moral, que só funciona se for respeitada; a mim parece-me, na minha iliteracia económica, que entre as duas coisas há uma diferença decisiva; mas os neoliberais dizem-me que tenho que respeitar, como se fossem morais, as leis naturais do mercado.

Exigir duma pessoa, ou duma sociedade, que defenda e respeite leis naturais é uma posição que me cheira a pensamento mágico. Mas isto é, certamente, a minha iliteracia a falar.

Pois bem, afinal parece que há economistas fora da classe sacerdotal que referi acima. Gente que faz as mesmas perguntas que os não iniciados, como as que têm a ver com a existência ou inexistência dum grau óptimo de desigualdade económica, com a melhor maneira de lidar politicamente com as plutocracias, com a questão de saber se o bem comum coincide ou não inteiramente com a prosperidade económica. Alguns deles - e estou a falar aqui de world class players - estão no Financial Times Economists' Forum, onde discutem, em linguagem que se entende, muitas das questões que os iletrados como eu não encontram sequer mencionadas na vulgata.

(Via Ladrões de Bicicletas)

sábado, 3 de novembro de 2007

Encontrado em "The Onion"

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Futuras leituras

(Clicar no título do post para ter acesso à página da Amazon.co.uk em que ele é apresentado; clicar na imagem para a ampliar)


THE TERROR OF NEOLIBERALISM

Encomendei hoje este livro. Enquanto espero que chegue deixo aqui a sinopse publicada pela distribuidora.

This book argues that neoliberalism is not simply an economic theory but also a set of values, ideologies, and practices that works more like a cultural field that is not only refiguring political and economic power, but eliminating the very categories of the social and political as essential elements of democratic life. Neoliberalism has become the most dangerous ideology of our time. Collapsing the link between corporate power and the state, neoliberalism is putting into place the conditions for a new kind of authoritarianism in which large sections of the population are increasingly denied the symbolic and economic capital necessary for engaged citizenship. Moreover, as corporate power gains a stranglehold on the media, the educational conditions necessary for a democracy are undermined as politics is reduced to a spectacle, essentially both depoliticizing politics and privatizing culture. This series addresses the relationship among culture, power, politics, and democratic struggles. Focusing on how culture offers opportunities that may expand and deepen the prospects for an inclusive democracy, it draws from struggles over the media, youth, political economy, workers, race, feminism, and more, highlighting how each offers a site of both resistance and transformation.

Actualização do post (12/11/07): Já recebi o livro e já lhe comecei a dar uma vista de olhos. Não tem o rigor do compêndio crítico de Saad-Filho e Deborah Johnson, que refiro num post mais recente, nem a moderação de A Brief History of Neoliberalism de David Harvey. A intenção de Giroux é panfletária e o tom é por vezes apaixonado, mas não deixa de ser uma leitura necessária para quem quer escapar à armadilha do pensamento único neoliberal.