A série de artigos que estou a escrever sobre política de alianças foi objecto da crítica de um leitor anónimo, crítica essa que poderei resumir assim: estou a propor uma união com a Igreja Católica, o que ofende os princípios laicos da República Portuguesa; e estou a querer "entregar o ouro ao bandido" cedendo aos pais em toda a linha.
A crítica é injusta: não proponho "união" nenhuma com a Igreja Católica, mas apenas uma aliança pontual, limitada às zonas de intersecção que julgo descortinar entre a agenda dela e a nossa: e não quero ceder aos pais em toda a linha, mas apenas procurar entre eles aqueles que são, por assim dizer, os nossos aliados naturais, e ceder-lhes naquilo que vá de encontro aos seus interesses legítimos. Para clarificar este ponto, procedi, já depois de recebida a crítica, a uma reformulação profunda do segundo artigo; e, para clarificar melhor o meu pensamento nesta matéria, interrompo a série sobre política de alianças para intercalar nela o presente artigo.
Quem está em guerra, como nós estamos, tem que saber escolher aliados; e, se puder, deve escolher os seus inimigos, para não ser escolhido por eles. Neste ponto, estamos em desvantagem: os nossos inimigos, não fomos nós que os escolhemos, foram eles que nos escolheram. Se os tivéssemos escolhido nós, teríamos à partida uma estratégia bem clara para os combater; como foram eles a escolher-nos, teremos que ir formulando essa estratégia à medida que o combate decorre.
Um primeiro grupo de inimigos, com o qual não é possível negociar, consiste naqueles pais que mandam os filhos à escola a contragosto, só porque a lei os obriga. A esses, não temos nada a oferecer nem temos nada a esperar deles. Só contribuirão para o bom funcionamento da Escola se forem obrigados a isso. A atitude destes pais reflecte-se quase sempre na dos filhos, que vão à escola, não para aprender, mas para a sabotar e destruir - e que entre a escola e o gang, há muito tempo escolheram o gang como instituição educativa de eleição. Os membros deste grupo não são apenas inimigos nossos, mas também inimigos naturais dos pais e dos alunos para quem a cultura, o conhecimento e o ensino são valores a ter em conta.
Como combater este grupo de inimigos, sabendo à partida que a autoridade pública, a quem competiria armar-nos, tem feito tudo por nos desarmar? Não podemos esperar do governo português que imite os seus congéneres de países mais civilizados, estabelecendo punições "a doer" para os alunos indisciplinados ou violentos e para os seus encarregados de educação, prevendo mesmo, em relação a estes, multas elevadas e até penas de prisão. Este apoio da tutela seria incompatível com o seu interesse político (os delinquentes também votam) e com o seu parti-pris ideológico (a escola tem que ser aquilo a que eles chamam "inclusiva").
Ora a verdadeira escola inclusiva é a que acolhe todos os que querem aprender, sem atender à sua condição sócio-económica, raça, nacionalidade, religião, estado de saúde, etc. Esta escola não deixa de ser inclusiva se expulsar os que entram nela para a destruir por dentro. Pergunta o Governo: e o que é que lhes acontece se forem expulsos? Vão para a rua? Eu, pela minha parte, não estou a ver que estragos eles possam fazer na rua que não façam já na escola.
Na ausência de qualquer apoio por parte da autoridade pública (que não só não os apoia, como lhes é hostil), têm os professores que encontrar, dentro da legalidade, formas de auto-defesa. Em primeiro lugar, cabe a cada professor e a cada Director de Turma adoptar uma política de tolerância zero: cada agressão física ou verbal, cada tentativa de boicote à aula, cada resposta insolente, deve ser sempre e imediatamente participada a quem de direito. Em segundo lugar, se as estruturas de gestão da escola ou as Direcções Regionais tentarem, como é infelizmente frequente, minimizar a questão, deve o professor pressioná-las o mais que puder, agitando os colegas, denunciando o aluno delinquente aos pais dos outros alunos, ou recorrendo, como último recurso, à desobediência civil: "marquem-me as faltas que quiserem, mas não dou nem mais uma aula com aquele aluno presente". Se o acto de indisciplina revestir contornos criminais - injúrias, ameaças, agressões - a queixa interna deve ser sempre e automaticamente acompanhada duma queixa às autoridades policiais, e isto mesmo que o aluno seja ainda inimputável.
Outro inimigo dos professores com o qual não é possível negociar é a nomenklatura tecno-burocrática que infesta o Ministério, constituída por gente que na sua maioria não sabe nem quer ensinar e por isso se refugiou nos gabinetes, a partir dos quais tem o desplante inaudito de ensinar a ensinar os professores que estão no terreno. Esta gente costuma ter uma ideia muito elevada (e muitíssimo exagerada) das suas habilitações teóricas e das suas capacidades intelectuais. Para a combater, devemos exigir o desmantelamento, pelo menos parcial, do Ministério da Educação (nos países onde não há Ministério da Educação, o sistema de ensino costuma funcionar melhor do que naqueles em que o há); enquanto isto não é possível, sugiro aos professores o seguinte exercício, que além de eficaz é divertido: tudo o que o Ministério da Educação ou as suas dependências envie às escolas deve ser devolvido à origem, depois de corrigidos a vermelho todos os erros gramaticais, imprecisões de linguagem, contradições, redundâncias, frases sem sentido, falácias, faltas de concisão e solecismos.
Refiro ainda, entre os inimigos com quem não é possível negociar, a oligarquia dos negócios, para quem a Escola Pública deve ser uma fábrica de mão-de-obra "qualificada", barata e acrítica, isto é, sem grandes pretensões intelectuais. José Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues estão de alma e coração ao serviço desta oligarquia. Para a combater, devem os professores entrar activamente nas campanhas eleitorais, colocando-se contra o "centrão" negocista e corrupto, e favorecendo, conforme a sua sensibilidade política, ou os partidos mais à direita, ou os partidos mais à esquerda. Para mim, é o BE; mas se para algum dos meus leitores for o PCP ou o PP, a minha mensagem é: força, colega, vá em frente! Centrão, é que não!
Outro inimigo que por enquanto não se tem feito sentir, mas está a crescer, é o fundamentalismo religioso, ou melhor, os vários fundamentalismos religiosos. Nada garante que daqui a algum tempo não haja grupos a pedir que se proíba o ensino da evolução das espécies nas Escolas Públicas; e nada garante que a nossa classe política, com a qualidade abismal que lhe conhecemos, não ceda a estas exigências a troco de meia-dúzia de votos. Com a oligarquia económica a querer eliminar os conhecimentos contextualizantes a pretexto de serem"inúteis", e os fundamentalistas a quererem eliminar o conhecimento científico por ser "blasfemo", não restará nada para os professores ensinarem nem para os alunos aprenderem. A Escola Pública terá desaparecido e em seu lugar ficará aquela coisa obscena e disforme a que Maria de Lurdes Rodrigues dá o nome de escola.
Resta, finalmente, o nosso inimigo mais difícil: José Sócrates. Não o escolhemos como inimigo: foi ele que nos escolheu. Em relação a este ponto, não nos devemos fazer demasiado de vítimas: qualquer político que chega ao poder tem que escolher os seus aliados e os seus inimigos: Sócrates escolheu como aliados os patrões da banca, da energia e da comunicação social, e como inimigos aquilo a que ele chama as "corporações" - ou seja, as classes profissionais que não aderem àquilo que ele julga ser a "modernidade" (e que não passa de um conjunto caótico de modismos desconexos). Sócrates não escolheu os professores para seus inimigos por ter uma especial má-vontade contra eles, mas por cálculo político: Fazem parte daquele segmento da Sociedade Civil, que inclui de um modo geral todas as classes profissionais, que ele considera mais perigoso para os seus interesses políticos pessoais e para os interesses económicos dos seus aliados de eleição. Quanto a mim, considero que escolheu mal, tanto os aliados, como os inimigos, mas isto é em retrospectiva e será matéria para outro artigo.
A especial dificuldade que Sócrates nos apresenta, enquanto inimigo, é que não só corremos o risco de sermos derrotados, como corremos o risco ainda mais grave de obtermos uma vitória demasiado expressiva. Uma vitória demasiado expressiva seria prejudicial para nós por duas razões: uma trivial, e outra que não o é tanto. A razão trivial pode ser encontrada na sabedoria comum, que nos diz que é sempre conveniente deixar ao inimigo uma possibilidade de salvar a face; a outra razão, menos trivial, está no risco de obtermos uma vitória cujas consequências não possamos depois controlar. Se uma eventual vitória nossa contribuisse para despoletar a insurreição geral das classes médias, que já vai dando sinal de si um pouco por todo o mundo, isto seria uma catástrofe em que ficaríamos todos a perder: nós, o Estado, o Governo, a classe política, as classes médias, a maior parte das classes baixas e até uma parte da oligarquia - aquela que não ficasse a ganhar, obviamente. Temos que fazer guerra a Sócrates, e temos que a vencer, mas temos que medir os golpes de modo a não obtermos uma vitória mais desastrosa do que seria uma derrota.
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