António Barreto escreveu, aqui, isto:
Em Fátima, a Conferência Episcopal toma uma iniciativa inédita: D. Jorge Ortiga recebe os representantes da Plataforma dos professores, encontrando-se estes em pleno processo de luta. Não há comunicados oficiais. Mas há declarações mais ou menos informais. O Bispo presidente garante, diante de câmaras de televisão, que a Igreja está muito preocupada com os professores, as escolas, os pais e os alunos. Sugere a realização de um “pacto social” sobre as questões educativas. E recomenda ao governo que “ouça” os professores. Jornais, televisões e observadores prestam a menor atenção possível ao facto. Toda a gente, a começar pelas autoridades, prefere ignorar o gesto. Mas trata-se simplesmente de um dos factos mais importantes da vida política destes últimos anos.
Escrito isto, muda de assunto, sem explicar porque é que considera este facto tão importante. Só posso especular sobre as razões desta omissão: era intenção de Barreto levar os seus leitores a pensarem por si mesmos. Para responder a este desafio, tenho que fazer a mim próprio uma pergunta: concordo ou não que este facto é um dos mais importantes da vida política dos últimos anos? E, como a resposta é "sim", tenho que fazer a mim próprio outra pergunta: o que é que torna este facto tão importante?
Começo por assinalar alguns factos razoavelmente consensuais: primeiro, a Igreja Católica sabe muito, mas mesmo muito, de Escola; segundo, nem a Igreja Católica está enamorada dos lindos olhos de Mário Nogueira, nem Mário Nogueira dos lindos olhos da Igreja Católica; terceiro, a Igreja Católica nunca se interessou por Mário Nogueira até agora.
E a partir daqui podemos começar a especular. Que a Igreja católica tem a sua própria noção do que é e para que serve uma escola, é óbvio. E também parece óbvio que a escola da Igreja católica é elitista e democrática: elitista, porque uma das suas principais funções, se não a principal, é formar as elites de que precisa para a sua própria governação e para a sua influência sobre o Mundo; democrática, porque nunca hesitou em ir buscar ao mais fundo da escala social o material humano necessário à formação das elites.
Quando o Estado começou, com vários séculos de atraso em relação à Igreja, a fazer escolas, começou por adoptar este modelo, retirando-lhe apenas o carácter confessional e a doutrinação religiosa. Foi a Escola Pública, Universal, Republicana e Laica da Revolução Francesa. Daqui, a competição entre o Estado e a Igreja: ambos precisavam, para sobreviver, de formar elites, mas a fonte de material humano a que podiam recorrer era a mesma. Cada jovem dotado que entrasse para os Liceus era um jovem dotado a menos a entrar para os Seminários.
Mas este modelo, vantajoso para o Estado saído da Revolução Francesa, era tudo menos vantajoso para os Estados totalitários do Século XX e para as oligarquias estabelecidas, para quem a formação constante de novas elites representava uma concorrência incómoda. Daí, um novo paradigma de escola: não mais elitista, mas igualitário; não mais democrático, mas de casta. O modelo de escola pública que hoje nos querem impor (a privada é outra história) não se destina a permitir a ascensão social, antes a dificultá-la; não se destina a transmitir conhecimento, antes competências úteis (úteis já se sabe a quem); não quer formar cidadãos, antes servos que se mantenham muito quietinhos no degrau da escala social que lhes foi destinado.
Esta escola tecno-burocrática, utilitária, igualitária, anti-intelectual e de castas é directamente antagónica à noção de escola que a Igreja Católica tem inscrita no seu código genético. Quando a Igreja Católica recomenda ao Governo que "ouça" os professores, podemos ter a certeza que ela própria já os ouviu, e que os ouviu com atenção. Deve ter procurado todas as fontes que lhe permitissem auscultar o sentir dos professores, desde as pessoas que tem no terreno até à blogosfera; deve ter percebido que há uma nova força em campo; deve ter concluído que existe um consenso, ainda que incipiente e cheio de contradições, entre os professores; deve ter percebido que a partir deste consenso se formou, ou se está a formar, uma agenda informal, agenda essa que condiciona as próprias estruturas sindicais. E deve ter concluído que entre essa agenda e a sua própria há pontos de intersecção: caso contrário uma aliança não faria sentido.
Haverá vantagem para nós, professores, em estabelecer uma aliança com a Igreja Católica? Todos os meus instintos de ateu me gritam que não, mas é preciso ser racional. A Igreja Católica, se vier a ser nossa aliada, será uma aliada perigosa; mas desde quando existem neste mundo aliados valiosos que não sejam perigosos? Será ela o parceiro sénior, e nós o parceiro júnior: não vale a pena ter ilusões sobre isto. Vai querer demasiado em troca do seu apoio: por exemplo, poderá pretender um carácter mais confessional para a Escola Pública, e este é um ponto em que a nossa agenda não coincide de maneira nenhuma com a dela.
O que podemos dar à Igreja Católica, em troca do seu apoio, é um compromisso deontológico com o ensino, com o conhecimento e com a civilização (isto é, com a permanência por oposição ao efémero). Talvez a Igreja Católica não faça muita questão da modernidade: nós, professores, fazemos. Mas também lhe podemos garantir que, ao contrário do actual poder político e económico, não confundimos modernidade com modismos.
A seguir: Política de Alianças II: os Pais
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