Escreve Bernard Chazelle, no seu maravilhoso blogue «A Tiny Revolution», que o culminar de todo o cânone musical ocidental é o segundo andamento, Allegretto, da Sinfonia nº 7, Opus 92 de Beethoven.
Ora isto é um perfeito disparate (aqui peço especial atenção a quem tem o detector de ironia a funcionar mal). Chazelle só acertou no Beethoven. Os meus perspicazes e sensíveis leitores sabem, como eu sei, que o píncaro absoluto do cânone musical ocidental é o terceiro andamento do Quarteto de Cordas, Opus 132, de Beethoven. Para se enterrar mais, Chazelle dá-nos a ouvir uma versão dirigida por Karajan, com uma duração de pouco mais de sete minutos, alegando que mesmo assim é mais lenta do que aquilo que mandam as indicações metronómicas do compositor.
Palavra que é caso para mandar todos os purismos para um lugar que eu cá sei! Ó meninos, este Allegretto quer-se lento, e deixem lá em paz o que o compositor escreveu na partitura porque os génios também se enganam. Carlos Kleiber, que não era homem para se vergar ao génio de ninguém que não fosse o seu, demora, na sua gravação de 1975 com a Filarmónica de Viena, uns generosos oito minutos e nove segundos; e Sir Simon Rattle, que me tem acompanhado em vinil e em CD desde os meus longínquos 16 anos de idade, espraia-se nuns sumptuosos oito minutos e vinte e cinco segundos.
Assim, sim. Comparado com isto, o Karajan parece que vai a fugir à polícia. Mas a quem insiste teimosamente que um Allegretto tem que ser um Allegretto, deixo uma sugestão: largue as sinfonias e ponha-se a ouvir os quartetos de cordas. Comece pelos últimos e vá regredindo em direcção aos primeiros. Quase no princípio da viagem deparar-se-á com o Opus 132 e com o seu terceiro andamento, que aqui designo, reverentemente, pelo seu nome completo: III. Molto Adagio (Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit; in der lydischen Tonart) Andante (Neue Kraft fühlend) Molto Adagio (Mit innigster Empfindung).
São os mais belos 16 minutos e 12 segundos de música (na versão do Melos-Quartett de Stuttgart) que o Cânone Ocidental jamais produziu.
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5 comentários:
Até que enfim vejo alguém a utilizar a expressão adequada para Herber von Karajan: fugir à polícia.
Karajan não esteve tão comprometido com os nazis como por exemplo Furtwängler, que foi um dos grandes intérpretes de Beethoven.
Não deixa de ser curioso, no entanto, o relativo desinteresse dos nazis por Beethoven. Não é que Beethoven não fosse tocado nas grandes salas de concerto alemãs durante o período nazi, mas a verdade é que, sendo eles os primeiros grandes mestres da propaganda política nacionalista, nunca tenham feito de Beethoven o grande herói alemão que a sua estatura justificava.
Talvez se sentissem incomodados pelo amor de Beethoven à liberdade. Não estou a ver Goebbels e Himmler a gostar especialmente do autor da Eroica e de Fidelio.
Curioso, também, é o facto de um dos maiores intérpretes das sinfonias de Beethoven, Arturo Toscanini, ser um anti-nazi declarado. Seria esse apego à liberdade, partilhado por compositor e intérprete, que criou a afinidade entre eles que ainda hoje podemos ouvir?
Enredos da História...
E que na versão do Medici String Quartet são 17 minutos e 49 segundos. Apesar de tudo, onde me perco mesmo é na Grande Fuga, opus 133, final original do Opus 130. São 16 minutos e 49 segundos na versão do mesmo quarteto e 15 minutos e 35 segundos na versão do Quator Végh. Nunca me sentirei só. Mesmo numa ilha deserta.
Ah, a Grande Fuga... Também me perco nela.
Beethoven nunca deixou de cultivar com mestria a arte da fuga. Até no acima mencionado Allegretto, para não ir mais longe...
Claro que quando nos pomos com esta história de qual é o píncaro do cânone estamos um pouco a brincar, até porque o nosso gosto também vai mudando com a idade. Para mim, às vezes, para continuar com Beethoven, o píncaro é o Concerto para Violino e Orquestra. Ou, para sairmos de Beethoven, o Concerto para Piano e orquestra nº 23 de Mozart... ou o nº 20, na versão de Brendel... ou o nºo 24, pelo mesmo intérprete...
Caro José Luis Sarmento
Não me referia às afinidades políticas de Karajan, que, confesso, até desconhecia. Mas à minha percepção que o homem despachava as partituras, como anotado no post: como se estivesse a fugir à polícia.
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