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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Trabalhar muito, trabalhar pouco

Vemos um homem num banco do jardim a ler o jornal. Estará a trabalhar? Claro que não, está a gozar o seu tempo livre. Pode ser que esteja reformado e a gozar o ócio a que quarenta anos de trabalho lhe deram direito; pode ser que seja Sábado e ele esteja a aproveitar o fim da manhã, enquanto a mulher acaba de cozinhar o almoço; pode ser que estejamos num dia útil e que aquele homem seja um trabalhador que faz uma pausa entre o seu trabalho da manhã e o da tarde. Em todo o caso: aquela leitura de jornal não é o que normalmente se considera tempo de trabalho. É tempo de ócio.

Façamos um zoom e olhemos com atenção para o jornal. Não está, como tínhamos imaginado, escrito em português: está em alemão. O título é Die Zeit ou Die Welt. Pela pasta que o homem tem ao seu lado, no banco de jardim, e pelos papéis espalhados ao lado, concluímos que é professor de alemão nalguma escola secundária.

E é aqui que a nossa perspectiva se complica: o homem está a trabalhar ou está a gozar o seu tempo livre? A avaliar pela expressão do rosto, a leitura está a dar-lhe o mesmo gozo que a do Diário de Notícias daria ao reformado da nossa primeira hipótese; mas por outro lado sabemos que, com prazer ou sem ele, está a treinar capacidades que na sala de aula lhe competirá ensinar. Lembramo-nos dos jogadores de futebol: só estão a trabalhar enquanto jogam? Ou também trabalham quando treinam? A certa altura vemo-lo estender a mão para a pasta, pegar numa esferográfica, descrever um círculo à volta de um artigo: terá encontrado um texto para utilizar mais tarde num teste, ou numa aula? Não sabemos. Só sabemos que não sabemos se o homem está ou não está, naquele momento, a trabalhar.

Admitamos agora que o nosso professor de alemão anda a ser seguido por um perito em eficiência ao serviço do Ministério da Educação, que anota todos os seus actos com o fim de apurar a sua utilidade. Como classificará este inspector taylorista esta actividade a que assistiu? Se ela durou meia hora, será classificada como meia hora de ócio, ou como meia hora de trabalho? Ou optará o nosso inspector por distribuir estes trinta minutos pelas duas classificações? E neste caso, em que proporção? Em partes iguais? Dez minutos de trabalho e vinte de ócio? Vinte minutos de trabalho e dez de ócio?

Pela minha parte, confesso que não gostaria de estar na pele deste hipotético inspector.

Tudo isto vem a propósito de um comentário feito por um leitor ao meu artigo «Trabalhar menos, ensinar mais»:

«É muito difícil para uma pessoa normal compreender que um professor, que trabalhava 22 horas por semana e que tinha montes de férias, trabalha muito.»

Com efeito é muito difícil. Se é difícil, como vimos, para um hipotético perito em eficiência, muito mais difícil será para uma «pessoa normal».

Para uma pessoa normal, é difícil imaginar que se os testes aparecem elaborados é porque alguém os elaborou, se aparecem corrigidos é porque alguém os corrigiu. Uma pessoa normal não sabe, nem tem que saber, quantas reuniões de Conselho de Turma tem cada professor no fim de cada período. Se essa pessoa normal for um aluno, sabe que o seu professor tem uma turma: a sua. Das outras, tem uma vaga ideia. E muito menos sabe da existência de reuniões intercalares.

Não sabe das reuniões de Área Disciplinar, de Grupo ou de Disciplina. Não sabe da infinidade de actas, obrigatoriamente escritas à mão, a que essas reuniões dão origem. Não sabe das grelhas que é preciso preencher, das matrizes que é preciso elaborar e arquivar, dos relatórios que é preciso redigir, das estatísticas que é preciso entregar já prontas à tutela, das fichas personalizadas (uma por aluno), da informação redundante que é preciso registar, muitas vezes, em meia dúzia de suportes diferentes.

Não sabe das centenas de páginas de livros, de revistas, de sites da net que é preciso consultar para elaborar um textinho de meia página para dar aos alunos, textinho este que depois é preciso adaptar, transcrever e fotocopiar na quantidade necessária.

Uma pessoa normal não sabe nada disto, porque não vê. Só vê as aulas. Uma pessoa normal está para os professores como um adepto de futebol que não soubesse o que é um treino e imaginasse que os jogadores trabalham hora e meia por semana, aos domingos, que é o tempo que dura um jogo.

Uma pessoa normal acha que quando os alunos estão de férias os professores também estão. Nem lhe passa pela cabeça que o mês de Julho seja o mais trabalhoso no calendário de qualquer professor - devido ao pesadelo burocrático que é a época de exames e à logística paranóica que os sustenta.

E não sabe que, mesmo no tempo já longínquo em que os professores tinham «montes de férias», essas férias eram mais que merecidas. Acreditem-me: eram mais que merecidas.

Por serem mais que merecidas é que em todos os países que conheço - e conheço bastantes - as férias dos professores são bem mais longas do que em Portugal, para além de serem bem mais longas do que as dos outros trabalhadores. Não direi que isto não suscita invejas: a inveja é um vício especialmente português, mas não é exclusivamente português. Mas Portugal é, que eu saiba, o único país em que vários governos ditos responsáveis cederam a essa inveja - mais do que isso, incentivaram-na - em vez de explicar aos cidadãos que essas longas férias são justificadas e úteis, no cômputo geral, para toda a gente.

Quem conhece as escolas por dentro sabe há muitos anos que os professores trabalham muito: num país em que geralmente se trabalha demais os professores, caso se resignem a não ensinar ou a ensinar pouco, trabalham mais ou menos o mesmo que as «pessoas normais»; e mais ainda se quiserem ensinar alguma coisa. Sempre foi assim. Os professores nunca protestaram muito contra o excesso de trabalho porque em Portugal protestar contra o excesso de trabalho é malvisto - culturalmente valoriza-se mais o trabalhar muito do que o trabalhar bem - e porque de um modo geral têm suficiente brio na sua profissão para não medirem tempo nem esforço.

O que mudou com esta ministra? Mudou que sobrecarregou de tal maneira os professores com tarefas inúteis que não só lhes tirou o pouco tempo livre que tinham, como lhes roubou o tempo de ensinar. Os ministros anteriores tinham contra si muitos professores; esta tem contra si quase todos, e especialmente os melhores - os que lêem Die Zeit, o Time Magazine ou o Nouvel Observateur; os que assinam revistas de Química, de Biologia ou de Informática; os que aproveitam quase todos os momentos de «ócio» para tirar notas mentais do género «isto é-me útil para as aulas, aquilo não».

Durante muitos anos os professores perdoaram aos vários ministros as centenas ou milhares de horas de trabalho excessivo, burocrático e inútil a que foram obrigados. O que não perdoam nem perdoarão a esta é que, surfando na inveja nacional, esteja a multiplicar este trabalho a tal ponto que impede os professores de ensinar.

4 comentários:

Anónimo disse...

Querido colega, causou-me muita comoção, este belíssimo e infelizmente tão verdadeiro texto. É mesmo assim. Sinto-me asfixiar.
Mas mando-lhe um abraço com oxigénio.

Isabel Magalhães disse...

Cheguei aqui vinda dos caminhos da blogosfera. Excelente este seu artigo. (Até me esqueci das horas) :)
Com a sua permissão vou citá-lo, com o devido link, no www.oeiraslocal.blogspot.com

Voltarei.

I.

RioDoiro disse...

"Não sabe da infinidade de actas, obrigatoriamente escritas à mão, a que essas reuniões dão origem. "

Meu caro, desconhece a figura, pós-moderna, do copiador?

O copiador pós-moderno é aquele que, perante um texto de computador, passa a coisa à manual caneta.

As reuniões dão-se, habitualmente com uma acta pré-preparada (que alguma alminha teve o cuidado de aproveitar de uma outra acta qualquer), à medida que a coisa vai decorrendo alguém faz, num portátil, afinamentos ao texto, e depois passa a bola ao copiador pós-moderno.

.

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Caro Range-o-Dente, não conhecia essa tecnologia, mas cotinua a não servir de nada quando a ordem é que as actas sejam escritas num livro (encadernado e cosido a fio-do-norte) com as folhas pré-numeradas e carimbadas uma a uma, para evitar fraudes.

Claro que as fraudes podem ser igualmente evitadas se escrevermos as actas em folhas soltas, usando um processador de texto e um template para o cabeçalho e o fecho. Basta que as folhas ou as páginas sejam numeradas segundo o modelo 1/x, 2/x, 3/x, etc., em que «x» corresponda ao número total de folhas ou páginas que constituem a acta.Para maior segurança podemos ainda rubricar cada folha ou página.

Mas como convencer disto pessoas que beberam a burocracia no leite materno, têm o fetiche do livro de actas incrustado na alma, e estão firmemente convencidas de que todo o mérito profissional está na quantidade bruta de trabalho prestado?!