...............................................................................................................................................

The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
....................................................................................................................................................

domingo, 27 de janeiro de 2008

Intifada

Já há muitos meses li um artigo de Miguel de Sousa Tavares em que ele atacava simultaneamente os professores, os médicos e os juízes. O artigo deixou-me, devo confessá-lo, duas impressões contraditórias. Por um lado verifiquei que o autor teve a perspicácia - caso único entre os nossos fazedores de opinião - de entender que há entre essas três profissões um elemento comum que atrai sobre elas a fúria da classe política pós-moderna, bem como da tecno-burocracia que a rodeia e sustenta. Por outro, verifiquei que essa perspicácia não chegava ao ponto de entender qual é e como se caracteriza esse ponto comum.

Para ler Miguel de Sousa Tavares e entender o que o faz correr, convém estar a par de um elemento central da sua idiossincrasia: por razões de educação ou de opção filosófica, ou por circunstâncias da vida impossíveis de destrinçar, o homem é um viciado em pogroms. Convoque-se um qualquer tumulto contra um qualquer grupo a que se possam apontar privilégios - e lá está o nosso Miguel, armado de um chuço, no meio da multidão e confundido com ela, pronto a espancar, a incendiar, a esventrar.

É a sua natureza: nada a fazer.

Mas o que há de comum, então, entre juízes, médicos e professores? Em primeiro lugar, é claro, os privilégios de que gozam ou de que têm fama de gozar. Não se trata de um elemento despiciendo: o discurso dos privilégios é hoje central, como é central há milénios, na retórica dos convocadores de pogroms. Serão reais, estes privilégios? Claro que sim. Como todas as profissões, também estas têm vantagens e desvantagens para quem as pratica. Varramos as desvantagens para debaixo de tapete, e presto: cá temos as vantagens transformadas em privilégios para fins de propaganda e arruaça política.

O segundo elemento comum é o facto de se tratar de corporações no sentido medieval e europeu do termo. Para quem deseja ver o mundo transformado numa imensa América, estas remanescências da História são intoleráveis. Na América tudo é simples. Cada um, ou é um homem de negócios, ou é um trabalhador. Como muitos trabalhadores aspiram a tornar-se homens de negócios, votam Republicano contra os seus próprios interesses.

A um europeu, nada o impede de ser um homem de negócios, ou um trabalhador, ou as duas coisas, tal qual como um americano; o que lhe complica e enriquece o estatuto é que é muitas outras coisas além disso. O europeu é membro da sua família, do seu clã, da sua rede de solidariedades, da sua hierarquia profissional ou académica, da sua corporação milenar. Tudo isto parcialmente à margem - e aqui está o que é intolerável para os políticos pós-modernos e para os tecno-burocratas - da estrita racionalidade económica pela qual gostariam que o mundo se ordenasse.

O terceiro elemento comum é o facto de serem profissões cuja identidade e função se construíram na História. Quando a praga dos gestores se abateu sobre a Europa depois de ter reorganizado a América, encontrou resistências com que não contava. Quis organizar os juízes para a mais eficaz defesa dos mercados - e encontrou-os teimosamente agarrados à ancestral convicção de que a sua função é fazer justiça. Quis mobilizar os médicos para que se encarregassem da manutenção duma mão-de-obra rentável, e encontrou-os convencidos de que a sua função é tratar das pessoas. Quis converter os professores às maravilhas da indústria transformadora - num extremo da linha de montagem entram pessoas, do outro saem recursos humanos - e encontrou-os obstinadamente agarrados ao preconceito medieval de que as pessoas são a razão última do seu trabalho, e não a sua matéria-prima.

Tudo isto deve ser horrivelmente frustrante para os políticos pós-modernos, para os tecno-burocratas, para os gestores ainda frescos de Boston. Esta Europa parece-lhes velha e sem emenda. Onde esperavam encontrar colaboradores entusiásticos, encontram a cada passo empecilhos, atavismos, cepticismos obstinados - intelectuais, para dizer tudo; e palavra nenhuma exprime, no vocabulário dos nossos tecno-burocratas, um extremo mais fundo de abjecção. Os tecno-burocratas traziam nas pastas de executivo um mundo novo, pronto para ser apresentado em Power-Point aos labregos embasbacados da Velha Europa - e ninguém quis saber dele. Veio-lhes ao de cima um ódio, uma vontade de justiça ou de vingança - e encontraram a estratégia que lhes é própria, que lhes está na massa do sangue, o seu Choque e Pavor: adoptaram, como instrumento de acção e ética de trabalho, a tortura.

Aos juízes, sobrecarregaram-nos de trabalho ao mesmo tempo que os impediam de fazer justiça. Aos médicos dos serviços públicos, reduzem-nos à exaustão física, emocional e psicológica - mas não os deixam tratar doentes. Aos professores, carregam-nos de tarefas inúteis, quando não nocivas, e despojam-nos de cada minuto que possam ter de tempo livre - mas não lhes permitem, em caso algum, que ensinem.

É a tortura de Sísifo. É por aqui que esperam vergar-nos. Mas não conhecem a natureza humana. Não sabem que os juízes, os médicos e os professores são seres humanos - e que a sua tendência, como a de qualquer animal, é odiar quem os trata mal. E que vão acabar por se unir contra o inimigo comum.

Mas os burocratas sentem, confusamente, que alguma coisa não está bem. Sabiam que iam ter a oposição de muitos - mas não contavam com a insurreição de quase todos. Os governantes e os seus séquitos evitam cada vez mais visitar os tribunais, os centros de saúde e as escolas. Quando não podem evitar lá ir, vêem algo de inquietante nos olhos dos magistrados, dos médicos, dos professores, dos funcionários, dos utilizadores, dos alunos. Alguns de entre eles, mais sensíveis aos ambientes, apercebem-se de que estão a ser figurativamente apedrejados. Num ou noutro caso, sê-lo-ão literalmente - e não precisarão de especial sensibilidade para entenderem o que lhes está a acontecer.

Os políticos portugueses e europeus entraram pelas instituições da sociedade civil como Bush pelo Iraque, esperando ser recebidos com flores. Agora perguntam: porque é que nos atiram pedras?!

Permitam que lhes responda: atiramos-lhes pedras porque não temos Kalatchnikovs.

9 comentários:

Anónimo disse...

Este texto devia ir parar aos jornais.
Parabéns.
Olinda

RioDoiro disse...

Muito bem. Só um reparo (minúsculo):

"Mas os burocratas sentem, confusamente, que alguma coisa não está bem. Sabiam que iam ter a oposição de muitos - mas não contavam com a insurreição de quase todos."

No caso dos professores, a revolta em função de "carregam-nos de tarefas inúteis, quando não nocivas," é recente. O protesto face ao esvaziamento da função é recente.

O problema do facilitismo e da passagem (alunos) por baixo só começou a levantar voo quando se começou a ouvir falar em avaliação de desempenho ...

.

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

«No caso dos professores, a revolta em função de "carregam-nos de tarefas inúteis, quando não nocivas," é recente.»

Não, meu caro Range-o-Dente. Não é a revolta que é recente, o que é recente é a sua expressão pública. Até há bem pouco tempo não havia net, nem blogues, nem sms, e aquilo que chegava aos media do sentir dos professores era só o que os sindicatos veiculavam. E isto geralmente tinha só a ver com salários e carreiras... Mas a revolta dos professores contra a tortura de Sísifo já vem de longe, posso testemunhá-lo eu.

Recentemente, à medida que envelheço e tenho passado a frequentar mais os serviços de saúde, tenho testemunhado uma revolta idêntica por parte dos médicos. Não é que ela não existisse antes: eu é que não a via.

RioDoiro disse...

"Não é a revolta que é recente, o que é recente é a sua expressão pública."

Tem razão. Era por aí que eu queria ir, mas escapuliu-se-me a lógica.

... e parece-me que tem exactamente a ver com o que afirma: "e aquilo que chegava aos media do sentir dos professores era só o que os sindicatos veiculavam"

Eu suponho que há aqui, no problema dos sindicatos, um longo caminho a percorrer. Não sei se será possível fazer o que quer que seja se não se arrumar a casa primeiro.

.

Unknown disse...

Quando essas (e outras) profissões estiverem completamente esgotadas de tanto preencher fichas, elaborar relatórios, enviar mapas, receber notificações e prestar contas, vão os políticos julgar, curar e ensinar?
www.odivademaquiavel.blogspot.com

Anónimo disse...

Concordo completamente.
Os políticos medíocres, incompetentes e corruptos têm, "apenas", INVEJA destas profissões prestigiadas da sociedade.

António Chaves Ferrão disse...

José Luis Sarmento
Um texto lúcido. Parabéns.

Anónimo disse...

Excelente. Tão lúcido que emociona.
Registei:

Aos professores, carregam-nos de tarefas inúteis, quando não nocivas, e despojam-nos de cada minuto que possam ter de tempo livre - mas não lhes permitem, em caso algum, que ensinem.

Subscrevo. Esta é a minha luta, para além das outras todas.



Abraço do Paulo Prudêncio do correntes.

Anónimo disse...

Um texto fabuloso, sem o hermetismo habitual dos comentadores iluminados (e pagos a peso de ouro) da nossa praça. Fiquei freguês deste blogue.
Nuno Silveira