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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

One Market Under God revisitado

Este livro é muito mais sobre Thomas Friedman que sobre Milton Friedman. Quem o ler não encontrará nele uma crítica à economia neoclássica, nem ao consenso artificial que a tornou hegemónica, nem ao grau de coacção política, militar e policial de que os mercados ditos livres precisam para funcionar "naturalmente" (para isto é melhor ler A Brief History of Neoliberalism de David Harvey, eventualmente em conjunto com The Shock Doctrine de Naomi Klein; e, já agora, seguir com alguma atenção a intervenção americana no Haiti durante os próximos meses). O que se encontra em One Market Under God é uma crítica exaustiva a toda uma subliteratura denominada "Teoria da Gestão", da qual são exemplo o velhinho "O Gestor Um Minuto", o famoso (e pueril) "Quem Mexeu no Meu Queijo" e, claro, o delirante "The Lexus and the Olive Tree", que não sei se está traduzido em português mas presumo que esteja: lixo deste género costuma estar.

Considero este livro tão importante que repeti uma imagem, pela primeira vez desde que edito este blogue, para ilustrar um artigo. É importante, antes de mais, por ser exaustivo: Frank parece ter lido e analisado tudo o que se escreveu no género desde os anos trinta do século passado, inicialmente como instrumento de propaganda contra o New Deal. Importante, também, pela identificação e desmontagem dos chavões que se repetem de livro para livro e de autor para autor. Em relação a alguns destes chavões, Frank chega a determinar em que data e por mão de que autor ele apareceu no léxico dos negócios (o inventor do conceito de "excelência", por exemplo, vendia passados vinte anos o conceito de "destruição" como único escudo capaz de proteger as empresas contra os terríveis demónios da obsolescência e da irrelevância). É importante (ou pelo menos saboroso) para os professores, que encontram na linguagem da "Nova Economia" as mesmas formulações, muitas vezes ipsis verbis, que encontram nos delírios das Novas Pedagogias. É importante ainda por nos permitir identificar os padrões e tendências que dão unidade a um género literário em que cada guru descreve os anteriores como charlatães.

Uma destas tendências é a das empresas "inovadoras" (outro chavão) procurarem uma nova legitimidade na simbologia da esquerda dos anos sessenta e nos estilos de vida alternativos e contestatários dos jovens urbanos. Foi a procura obsessiva duma identidade, ou pelo menos duma imagem, que fosse, como escrevi noutro artigo, cool. De um dia para o outro, os CEO's e os empresários mais in deixaram de se identificar com John Wayne e passaram a identificar-se com Frank Zappa ou Che Guevara. Isto, é claro, só em termos de imagem. O que "está a dar" é a "rebeldia"; e não podemos deixar de dar razão a esta percepção de Thomas Frank quando saímos à rua e deparamos com tudo cheio de cartazes em que se afirma que "ter atitude" é usar um certo cartão bancário.

Outro tema recorrente é a divinização do mercado. Não falo aqui em sentido figurado, como falaria se me estivesse a referir a Milton Friedman e não a Thomas Friedman: dizer que os gurus da "Nova Economia" vêem no mercado, não uma abstracção, mas uma pessoa real, inefável e transcendente; que lhe atribuem volição, consciência e um propósito que prevalece sobre quaisquer propósitos meramente humanos; que consideram sacrílega e arrogante qualquer veleidade de o compreender ou controlar; e que confiam em que ele castigará qualquer esboço de "engenharia social" tal como Jeovah castigou os construtores da Torre de Babel - dizer isto é exprimir sobriamente uma verdade literal.

Há também a ideia (que os economistas neoclássicos, espero eu ferventemente, não partilham) que é possível criar riqueza sem produzir o que quer que seja. Um dos livros citados exprime esta ideia logo no título: Out of Thin Air. Foi neste passo da minha leitura que comecei a perguntar a mim mesmo se One Market Under God seria o mesmo livro se tivesse sido escrito depois da crise do subprime. Mas foi escrito e entregue ao editor, não só antes desta crise, como, à justa, antes do crash do Nasdaq, o que confere ao livro, e particularmente às suas palavras finais, um carácter estranhamente presciente. Igualmente presciente parece o final do postfácio:

Conservatism was so badly discredited by the stock market crash of 1929 that it disappeared from the American political mainstream (with an exception here and there) for thirty years. Market populism, the supercharged conservatism of our days, is just as vulnerable today. Whether or not the Nasdaq ever recovers from its recent slump, the version of economic democracy outlined by the New Economy theorists will continue to disappoint. However generously the new plutocrats fund the friendly libertarian thinktanks, and however the brand-builders deride the old ways in their ad campaigns, reality will continue to remind us that all these schemes are a transparent disguise. It will continue to point out that the much-vaunted "humility" of george W. Bush is just a façade for the most pro-business politics in seventy years. And once we recognize this, once we confront the slick patter of market populism with the true language of economic democracy, we will send Bush and his corporate cronies the way of Herbert Hoover.

Apropriação da linguagem da esquerda folclórica e do estilo cool; divinização do mercado; a ideia de que a riqueza se "cria" sem que nada se produza - tudo isto é desvario que chegue, como a realidade se encarregou de nos explicar com as manifestações de Seattle, o crash do Nasdaq e a crise do subprime. Mas o que melhor caracteriza (ainda!) a "Nova Economia" e os seus gurus é uma fé rígida e inabalável no determinismo histórico. Daí a absoluta certeza com que fazem os seus pronunciamentos sobre o "futuro". A "mudança" é sempre inexorável. "Crê ou morres": esta é a ameaça, por vezes implícita mas mais frequentemente explícita, que nenhum guru deixa de fazer insistentemente em tudo o que escreve. É o discurso da inevitabilidade; e quando algum político, empresário, economista mediático ou fazedor de opinião declara solenemente que isto ou aquilo é coisa do passado e temos que nos resignar a viver sem ela para sempre, está a debitar a cassette que os gurus fabricaram .

E assim chegamos àquilo que faz de One Market Under God um texto que é, mais do que meramente importante, incontornável. É um livro que nos muda. Depois de o lermos, nunca mais poderemos ouvir com os mesmos ouvidos os nossos políticos e os nossos empresários: a cada passo reconheceremos a linguagem vazia dos gurus. Nem poderemos ver com os mesmos olhos um outdoor em que o consumismo conformista é equacionado com a rebeldia, com a atitude, com a oposição à autoridade.

E é, finalmente, um livro aterrador. Porque nos mostra que é nisto que os políticos e os empresários acreditam. Os que decidem das nossas vidas decidem com base num emaranhado de superstições que não difere muito da astrologia. Não leram os economistas neoclássicos (que, mesmo que estejam errados, estão apenas errados, o que não é especialmente grave); leram, sim, os gurus, que nem errados estão porque as mercadorias que têm para nos vender são a irracionalidade e o irracionalismo.

O irracionalismo está nos insistentes apelos para que não tentemos compreender, para que não queiramos "saber mais que o Mercado", para que usemos a intuição, em vez da razão, nos nossos investimentos; para que nos deixemos, enfim, ir na corrente. Para que não "interfiramos" na economia, ou seja: para que não tentemos ter qualquer poder sobre as nossas próprias vidas.

Quanto à irracionalidade, por vezes nem sequer é preciso passar da capa do livro. Considere-se o título com que uma tal Virginia Postrel, outra adepta da seita, parafraseou Karl Popper: The Future and its Enemies.

Como?! Importa-se de repetir?! Como é que o futuro pode ter amigos ou inimigos?! Quem pode deter ou apressar o fluir do tempo?! Mas talvez a palavra "futuro" seja, neste título como no discurso dos políticos, uma palavra de código para "a nossa agenda". Talvez a senhora Postrel não seja de todo irracional. Talvez seja, pelo contrário, muitíssimo racional.

2 comentários:

Nan disse...

Obrigada por este post, que desde ontem ando a tentar ler (ontem, o link do meu «painel» conduzia-me a um pedido de desculpas por a página que eu procurava não existir...!). Já andava a sentir-me esquisita por achar que a conversa de alguns economistas se parece com o discurso dos fundamentalistas religiosos. Afinal, parece que não sou eu a esquisita. Thanks!

Francisco Oneto disse...

Caro José Luiz Sarmento
Já que passei por aqui, aproveito para o felicitar por este excelente texto. Se não fosse a minha falta de tempo, haveria de lhe fazer uns comentários suculentos! Tentarei seguir a sua sugestão bibliográfica.
Obrigado

Abraço

Francisco Oneto