Declarar que a avaliação do trabalho é um fetiche pode ser, fora de contexto, uma provocação perversa que vai contra toda a evidência e todos os consensos. Como não desejo fazer uma provocação, mas sim partilhar uma reflexão, cabe-me definir em nota prévia o contexto em que a considero válida.
Avaliar o trabalho é útil e quase sempre necessário. É útil e necessário para as organizações; e é útil e necessário para os trabalhadores, que precisam de saber, e têm o direito de saber, se estão a trabalhar bem ou a trabalhar mal. Assim, a avaliação não é à partida um fetiche: torna-se fetiche em certas circunstâncias. É sobre estas circunstâncias que me proponho reflectir.
O início do desta transformação é subtil e quase imperceptível: tudo começa quando deixamos de falar em avaliar e começamos a falar em avaliação. Ao passar do verbo para o nome estamos a coisificar um processo. Já não estamos perante uma pura acção, mas perante uma "coisa" - algo que ainda não é um fetiche mas já tem a possibilidade intrínseca de o vir a ser.
Sendo a avaliação uma "coisa", está em condições de se tornar uma mercadoria formatada em modelos que podem ser vendidos. Já não é o utilizador que decide como avaliar em função das suas necessidades e das suas circunstâncias; nem as pessoas envolvidas têm oportunidade de dizer como desejam ser avaliadas em função do entendimento que têm do seu trabalho e da contribuição que pensam poder dar para o aperfeiçoamento da organização.*
O que a mercantilização dos modelos de avaliação retira - tanto às organizações como às pessoas que a integram - é a possibilidade de avaliar a avaliação tendo em conta a relação entre os custos que lhes cabe suportar e os benefícios que dela poderão advir para si próprios e para outrem. Dá-se aqui um fenómeno semelhante ao do turista que quer comprar uma máquina fotográfica para documentar as férias e acaba por levar para casa um aparelho muito mais caro do que tinha orçamentado, com funcionalidades que não quer nem vai utilizar. O interesse do vendedor** prevaleceu sobre o do comprador, que acabou por escolher, não em função das características do aparelho que lhe podem ser úteis úteis, mas em função duma simbologia que lhe está associada. É neste momento, quando o cálculo da relação custos/benefícios perde uma parte da sua relevância, que a máquina fotográfica (ou o telemóvel, ou o televisor, ou outra coisa qualquer) se torna fetiche***.
Com a avaliação de desempenho pode passar-se o mesmo. Num mundo racional, o melhor modelo de avaliação seria aquele que apresentasse a melhor relação custos/benefícios para os seus utilizadores. No caso do café da esquina, é bem possível que modelo óptimo seja o bom e velho "olhómetro". No caso duma grande empresa multinacional ou duma grande estrutura burocrática, o "olhómetro" já não serve; mas a maior complexidade do modelo escolhido implica um aumento dos custos e dos riscos, aumento este que só se justifica racionalmente se os benefícios aumentarem pelo menos na mesma proporção.
Mesmo no caso das empresas, que são apresentadas como modelo de racionalidade perfeita - e que têm, efectivamente, de se comportar com racionalidade para poderem sobreviver e prosperar - nada garante que todas as escolhas sejam racionais. Compreende-se que assim seja: os ambientes altamente competitivos são favoráveis à crença em soluções mágicas. Assim como um jogador de futebol leva para o campo um objecto qualquer que supostamente lhe dá sorte (ou cuja falta lhe dá azar), também os empresários e os gestores aderem a modismos e a fetiches, dos quais a avaliação coisificada não é o único nem o pior. E o que não falta é toda uma indústria de modismos e fetiches montada para tirar partido da insegurança própria de quem funciona em competição permanente. É uma indústria parasitária; mas nem a mais competitiva ou predadora das empresas está livre de alimentar parasitas.
Se muitas empresas sobrevivem e prosperam, não é por funcionarem de modo perfeitamente racional, mas sim por operarem nos limites da margem de irracionalidade que lhes é permitida. Esta margem é tanto mais estreita quanto mais rigorosa é a competição a que estão obrigadas, mas existe sempre porque a concorrência também comete erros. A margem de irracionalidade ao dispor das empresas é também uma margem de segurança: por sedutora que seja a teoria mais recente do guru mais na moda, nenhum gestor a aplica sem considerar, ainda que minimamente, os seus custos.
Estes custos são de vária ordem. Para começar, financeiros: todos os sistemas de avaliação, com a possível excepção do "olhómetro", custam dinheiro. Uns mais do que outros, é certo, e este é um dos factos que o meu hipotético empresário tem em conta. Mas há também custos em esforço organizativo, em tempo de trabalho, em tempo de execução e sobretudo - sobretudo - em termos de motivação e adesão das pessoas envolvidas. Já os benefícios são fáceis de definir: podem exprimir-se pela velha máxima que manda aprender com os erros. Um sistema de avaliação que não assegure esta aprendizagem e não se oriente para ela será irracional por mais moderados que sejam os seus custos.
Deixemos agora as empresas e consideremos outro tipo de organização: no caso, uma burocracia que não tem razões para temer, nem pela sua sobrevivência, nem pelo êxito das suas acções (uma vez que ninguém sabe em que consiste esse êxito). Uma organização que funciona nestes termos pode dar-se ao luxo de operar dentro duma margem de irracionalidade que é, para todos os efeitos práticos, infinita. Suponhamos, para além disto, que se trata duma burocracia grotescamente sobre-dimensionada; que os subsistemas e as pessoas que a integram não têm nem podem ter qualquer incentivo para apresentar trabalho útil, mas sim e apenas trabalho visível; que este trabalho consiste na produção obsessiva de normativos cuja qualidade, racionalidade, exequibilidade e coerência são completamente irrelevantes; que há profundas divergências filosóficas, ideológicas e pragmáticas entre os seus quadros administrativos e os seus operacionais sobre aquilo em que deve consistir o trabalho destes últimos; cujos quadros superiores se consideram mais competentes que os quadros operacionais não só no plano administrativo, mas também no próprio plano operacional - quando existe entre os operacionais a percepção generalizada que o que levou os "burocratas" a procurar trabalho nos gabinetes foi precisamente a sua incompetência ou inapetência no plano operacional; e em que as estruturas "superiores" se regem por uma visão ideológica e dogmática da realidade incompatível com a experiência concreta dos operacionais; e que o carácter dogmático dos seus pressupostos torna literalmente impensável que possam ocorrer erros ao nível que ocupam, pelo que qualquer avaliação a esse nível seria inútil.
Ou seja: consideremos o Ministério da Educação da República Portuguesa: do acima exposto concluiremos facilmente que estamos em presença duma organização da qual não é possível esperar qualquer decisão racional. O que está aqui em causa não é um nível de irracionalidade relativamente inócuo que permita à organização sobreviver como sistema de ensino. Os modismos e os fetiches operam aqui em roda livre, descontroladamente, e reforçando-se mutuamente numa espiral viciosa até ao ponto do mais completo delírio.
O modelo de avaliação que esteve e está em causa, o estatuto da carreira docente e o estatuto do aluno são o culminar duma "tempestade perfeita" que se estava a preparar há décadas e se manifestava já na incoerência e na falta de sentido de quase todos os normativos que regulam a educação em Portugal. Os futuros ministros da educação podem ser muito simpáticos, muito dialogantes, muito competentes, muito bem intencionados; mas enquanto o Ministério existir na sua forma actual, terão tantas possibilidades de erigir um verdadeiro sistema de ensino público como de abrir os braços no alto duma falésia e deter um furacão.
Notas:
*A avaliação coisificada, de resto, tem mais a ver com o paradigma industrial da "qualidade" (entendida como "conformidade") do que com o paradigma artesanal da "perfeição".
**É claro que o vendedor tem sempre em conta o interesse do comprador; mas a satisfação do cliente, digam o que disserem os slogans, nunca é um fim em si mesma: por muito importante que seja é sempre instrumental.
***Outra forma de fetichização é a inversão da relação entre o que é um fim em si mesmo e o que é instrumental. Quando dos meios se faz fins eles tornam-se fetiches: um bom exemplo disto é a avaliação dos professores pelo uso que fazem ou não de certas tecnologias. Escusado será dizer que os dois processos de fetichização não são reciprocamente exclusivos: pelo contrário, encontram-se geralmente juntos.
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2 comentários:
Como sempre, outro excelente post.
Questiono-me: Será que a maior parte da classe docente tem a noção do juízo de valor referido neste texto? Cito, "na falta de sentido de quase todos os normativos que regulam a educação em Portugal".
É que, em meu enetender, se passam coisas que vão muito para além da incompetência e impreparação da tutela.
Caro José Luiz Sarmento,
Salvo melhor opinião, a tese central contida no seu texto - a de que o Ministério da Educação é uma entidade que actua com uma "margem infinita de irracionalidade" - não é correcta, pelas seguintes razões:
1) O ME é, acima de tudo, um mero instrumento da acção de um governo, e a acção deste governo, no que diz respeito à educação pública, pode ser percebida e entendida na racionalidade que lhe é própria.
2) A natureza "burocrática" e "monopolista" do ME que, segundo a sua argumentação, estaria na base da "margem infinita de irracionalidade" da acção do mesmo ME, é, desde há muito, característica desta entidade, o que não impediu que, ao longo de vários períodos históricos, as respectivas decisões correspondessem, em termos gerais, a uma acção "racional", tendo em conta os interesses e objectivos que lhe eram adstritos e assinalados pelas classes e grupos dominantes na sociedade.
3) Através de uma análise objectiva, é possível discernir uma lógica racional na presente actuação do Governo /ME, quer no que diz respeito ao caso concreto da avaliação de professores, quer no que se refere aos actuais esforços de transformação do sistema público de educação em geral. O reconhecimento dessa lógica racional não significa que se concorde com a mesma (ou seja, não significa que não exista outra racionalidade diferente daquela que está subjacente à primeira), nem significa que não haja actos ou iniciativas do Governo /ME que não estejam em consonância com a mesma, quer porque o combate político a isso obrigou, quer porque a inépcia dos governantes a tal conduza.
4) A consideração estrita do conceito "custos/benefícios para o utilizador" que, no seu texto, surge como um dos critérios importantes para se aferir a racionalidade (ou não) de uma acção, é também a que preside à "racionalidade" da(s) política(s) educativa(s) protagonizada(s) pelo actual Governo /ME. "Fazer mais e melhor com menos dinheiro"; justificar as mudanças impostas nas escolas e na condição profissional dos professores como medidas necessárias para "melhorar os resultados escolares" dos alunos; tentar legitimar em particular as mudanças na carreira e na avaliação dos professores como meios de premiar os melhores e ajudar os demais a melhorar o seu desempenho; estas e outras argumentações similares, são a expressão da referida importância que uma análise de "custos/benefícios" tem nas políticas educativas actuais.
Ora, o critério atrás referido dos "custos/benefícios para o utilizador" foi, desde a sua invenção (ou reinvenção) pela teoria económica e pela ciência política nas sociedades burguesas modernas, o santo e a senha para justificar a existência de relações capitalistas de produção e a tentativa de imposição das mesmas a sectores ainda sujeitos a outra lógica de funcionamento. Numa perspectiva histórica, pode concluir-se que foi a corrente dos "utilitaristas", sobretudo em Inglaterra, na transição do século XVIII para o século XIX, que procurou utilizar o referido critério dos "custos/benefícios para o utilizador", no sentido de impulsionar a primeira tentativa em grande escala de transformação capitalista da educação de massas, consubstanciada no chamado "sistema monitorial de instrução". Com as devidas especificidades e adaptações, estamos hoje a assistir a um processo que apresenta fortes semelhanças com aquele.
Querer - como o faz o José Luiz Sarmento - desvalorizar o conteúdo e o sentido das actuais transformações que as classes e poderes dominantes, a nível global e também nacional, conduzem na educação pública, aplicando-lhes o anátema da "irracionalidade", representa, a meu ver, o caminho mais curto para se abdicar de qualquer esforço sério de compreensão daquele conteúdo e daquele sentido, e, consequentemente, de qualquer esperança de resistência efectiva e de construção de uma alternativa real aos mesmos.
Leopoldo Mesquita
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