Ou: Pronto, Leva Lá a Bicicleta
Quem me conhece sabe que eu sou um bocado obtuso, teimoso e difícil de ensinar; mas mesmo com estas deficiências todas seria impossível ouvir tanto tempo os nossos políticos a dizer a mesma coisa, com o aval entusiástico dos líderes das confederações patronais, dos jornalistas de negócios e dos economistas do regime, sem acabar por lhes reconhecer razão.
Então é assim:
Se há perigo de inflação, é preciso conter os salários.
Se há perigo de deflação, é preciso conter os salários.
Se a crise é económica, é preciso conter os salários.
Se a crise é financeira, é preciso conter os salários.
Se não estamos em crise, é preciso aproveitar para melhorar a competitividade - e portanto conter os salários.
Se o défice das contas do Estado está alto, é preciso conter os salários.
Se o défice das contas do Estado está baixo, é preciso não entrar em euforia - e conter os salários, claro está.
Se o desemprego está alto, é preciso encorajar as empresas a empregar mais gente - o que só se consegue contendo os salários.
Se o desemprego está baixo, os salários tendem a subir - e portanto contê-los é mais necessário que nunca.
Finalmente percebi. Não vale a pena perguntar em que circunstâncias é que os salários podem aumentar: a resposta politicamente responsável e tecnicamente rigorosa é que não podem aumentar em circunstâncias nenhumas.
Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
...............................................................................................................................................
The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
....................................................................................................................................................
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
O fetiche da avaliação
Declarar que a avaliação do trabalho é um fetiche pode ser, fora de contexto, uma provocação perversa que vai contra toda a evidência e todos os consensos. Como não desejo fazer uma provocação, mas sim partilhar uma reflexão, cabe-me definir em nota prévia o contexto em que a considero válida.
Avaliar o trabalho é útil e quase sempre necessário. É útil e necessário para as organizações; e é útil e necessário para os trabalhadores, que precisam de saber, e têm o direito de saber, se estão a trabalhar bem ou a trabalhar mal. Assim, a avaliação não é à partida um fetiche: torna-se fetiche em certas circunstâncias. É sobre estas circunstâncias que me proponho reflectir.
O início do desta transformação é subtil e quase imperceptível: tudo começa quando deixamos de falar em avaliar e começamos a falar em avaliação. Ao passar do verbo para o nome estamos a coisificar um processo. Já não estamos perante uma pura acção, mas perante uma "coisa" - algo que ainda não é um fetiche mas já tem a possibilidade intrínseca de o vir a ser.
Sendo a avaliação uma "coisa", está em condições de se tornar uma mercadoria formatada em modelos que podem ser vendidos. Já não é o utilizador que decide como avaliar em função das suas necessidades e das suas circunstâncias; nem as pessoas envolvidas têm oportunidade de dizer como desejam ser avaliadas em função do entendimento que têm do seu trabalho e da contribuição que pensam poder dar para o aperfeiçoamento da organização.*
O que a mercantilização dos modelos de avaliação retira - tanto às organizações como às pessoas que a integram - é a possibilidade de avaliar a avaliação tendo em conta a relação entre os custos que lhes cabe suportar e os benefícios que dela poderão advir para si próprios e para outrem. Dá-se aqui um fenómeno semelhante ao do turista que quer comprar uma máquina fotográfica para documentar as férias e acaba por levar para casa um aparelho muito mais caro do que tinha orçamentado, com funcionalidades que não quer nem vai utilizar. O interesse do vendedor** prevaleceu sobre o do comprador, que acabou por escolher, não em função das características do aparelho que lhe podem ser úteis úteis, mas em função duma simbologia que lhe está associada. É neste momento, quando o cálculo da relação custos/benefícios perde uma parte da sua relevância, que a máquina fotográfica (ou o telemóvel, ou o televisor, ou outra coisa qualquer) se torna fetiche***.
Com a avaliação de desempenho pode passar-se o mesmo. Num mundo racional, o melhor modelo de avaliação seria aquele que apresentasse a melhor relação custos/benefícios para os seus utilizadores. No caso do café da esquina, é bem possível que modelo óptimo seja o bom e velho "olhómetro". No caso duma grande empresa multinacional ou duma grande estrutura burocrática, o "olhómetro" já não serve; mas a maior complexidade do modelo escolhido implica um aumento dos custos e dos riscos, aumento este que só se justifica racionalmente se os benefícios aumentarem pelo menos na mesma proporção.
Mesmo no caso das empresas, que são apresentadas como modelo de racionalidade perfeita - e que têm, efectivamente, de se comportar com racionalidade para poderem sobreviver e prosperar - nada garante que todas as escolhas sejam racionais. Compreende-se que assim seja: os ambientes altamente competitivos são favoráveis à crença em soluções mágicas. Assim como um jogador de futebol leva para o campo um objecto qualquer que supostamente lhe dá sorte (ou cuja falta lhe dá azar), também os empresários e os gestores aderem a modismos e a fetiches, dos quais a avaliação coisificada não é o único nem o pior. E o que não falta é toda uma indústria de modismos e fetiches montada para tirar partido da insegurança própria de quem funciona em competição permanente. É uma indústria parasitária; mas nem a mais competitiva ou predadora das empresas está livre de alimentar parasitas.
Se muitas empresas sobrevivem e prosperam, não é por funcionarem de modo perfeitamente racional, mas sim por operarem nos limites da margem de irracionalidade que lhes é permitida. Esta margem é tanto mais estreita quanto mais rigorosa é a competição a que estão obrigadas, mas existe sempre porque a concorrência também comete erros. A margem de irracionalidade ao dispor das empresas é também uma margem de segurança: por sedutora que seja a teoria mais recente do guru mais na moda, nenhum gestor a aplica sem considerar, ainda que minimamente, os seus custos.
Estes custos são de vária ordem. Para começar, financeiros: todos os sistemas de avaliação, com a possível excepção do "olhómetro", custam dinheiro. Uns mais do que outros, é certo, e este é um dos factos que o meu hipotético empresário tem em conta. Mas há também custos em esforço organizativo, em tempo de trabalho, em tempo de execução e sobretudo - sobretudo - em termos de motivação e adesão das pessoas envolvidas. Já os benefícios são fáceis de definir: podem exprimir-se pela velha máxima que manda aprender com os erros. Um sistema de avaliação que não assegure esta aprendizagem e não se oriente para ela será irracional por mais moderados que sejam os seus custos.
Deixemos agora as empresas e consideremos outro tipo de organização: no caso, uma burocracia que não tem razões para temer, nem pela sua sobrevivência, nem pelo êxito das suas acções (uma vez que ninguém sabe em que consiste esse êxito). Uma organização que funciona nestes termos pode dar-se ao luxo de operar dentro duma margem de irracionalidade que é, para todos os efeitos práticos, infinita. Suponhamos, para além disto, que se trata duma burocracia grotescamente sobre-dimensionada; que os subsistemas e as pessoas que a integram não têm nem podem ter qualquer incentivo para apresentar trabalho útil, mas sim e apenas trabalho visível; que este trabalho consiste na produção obsessiva de normativos cuja qualidade, racionalidade, exequibilidade e coerência são completamente irrelevantes; que há profundas divergências filosóficas, ideológicas e pragmáticas entre os seus quadros administrativos e os seus operacionais sobre aquilo em que deve consistir o trabalho destes últimos; cujos quadros superiores se consideram mais competentes que os quadros operacionais não só no plano administrativo, mas também no próprio plano operacional - quando existe entre os operacionais a percepção generalizada que o que levou os "burocratas" a procurar trabalho nos gabinetes foi precisamente a sua incompetência ou inapetência no plano operacional; e em que as estruturas "superiores" se regem por uma visão ideológica e dogmática da realidade incompatível com a experiência concreta dos operacionais; e que o carácter dogmático dos seus pressupostos torna literalmente impensável que possam ocorrer erros ao nível que ocupam, pelo que qualquer avaliação a esse nível seria inútil.
Ou seja: consideremos o Ministério da Educação da República Portuguesa: do acima exposto concluiremos facilmente que estamos em presença duma organização da qual não é possível esperar qualquer decisão racional. O que está aqui em causa não é um nível de irracionalidade relativamente inócuo que permita à organização sobreviver como sistema de ensino. Os modismos e os fetiches operam aqui em roda livre, descontroladamente, e reforçando-se mutuamente numa espiral viciosa até ao ponto do mais completo delírio.
O modelo de avaliação que esteve e está em causa, o estatuto da carreira docente e o estatuto do aluno são o culminar duma "tempestade perfeita" que se estava a preparar há décadas e se manifestava já na incoerência e na falta de sentido de quase todos os normativos que regulam a educação em Portugal. Os futuros ministros da educação podem ser muito simpáticos, muito dialogantes, muito competentes, muito bem intencionados; mas enquanto o Ministério existir na sua forma actual, terão tantas possibilidades de erigir um verdadeiro sistema de ensino público como de abrir os braços no alto duma falésia e deter um furacão.
Notas:
*A avaliação coisificada, de resto, tem mais a ver com o paradigma industrial da "qualidade" (entendida como "conformidade") do que com o paradigma artesanal da "perfeição".
**É claro que o vendedor tem sempre em conta o interesse do comprador; mas a satisfação do cliente, digam o que disserem os slogans, nunca é um fim em si mesma: por muito importante que seja é sempre instrumental.
***Outra forma de fetichização é a inversão da relação entre o que é um fim em si mesmo e o que é instrumental. Quando dos meios se faz fins eles tornam-se fetiches: um bom exemplo disto é a avaliação dos professores pelo uso que fazem ou não de certas tecnologias. Escusado será dizer que os dois processos de fetichização não são reciprocamente exclusivos: pelo contrário, encontram-se geralmente juntos.
Avaliar o trabalho é útil e quase sempre necessário. É útil e necessário para as organizações; e é útil e necessário para os trabalhadores, que precisam de saber, e têm o direito de saber, se estão a trabalhar bem ou a trabalhar mal. Assim, a avaliação não é à partida um fetiche: torna-se fetiche em certas circunstâncias. É sobre estas circunstâncias que me proponho reflectir.
O início do desta transformação é subtil e quase imperceptível: tudo começa quando deixamos de falar em avaliar e começamos a falar em avaliação. Ao passar do verbo para o nome estamos a coisificar um processo. Já não estamos perante uma pura acção, mas perante uma "coisa" - algo que ainda não é um fetiche mas já tem a possibilidade intrínseca de o vir a ser.
Sendo a avaliação uma "coisa", está em condições de se tornar uma mercadoria formatada em modelos que podem ser vendidos. Já não é o utilizador que decide como avaliar em função das suas necessidades e das suas circunstâncias; nem as pessoas envolvidas têm oportunidade de dizer como desejam ser avaliadas em função do entendimento que têm do seu trabalho e da contribuição que pensam poder dar para o aperfeiçoamento da organização.*
O que a mercantilização dos modelos de avaliação retira - tanto às organizações como às pessoas que a integram - é a possibilidade de avaliar a avaliação tendo em conta a relação entre os custos que lhes cabe suportar e os benefícios que dela poderão advir para si próprios e para outrem. Dá-se aqui um fenómeno semelhante ao do turista que quer comprar uma máquina fotográfica para documentar as férias e acaba por levar para casa um aparelho muito mais caro do que tinha orçamentado, com funcionalidades que não quer nem vai utilizar. O interesse do vendedor** prevaleceu sobre o do comprador, que acabou por escolher, não em função das características do aparelho que lhe podem ser úteis úteis, mas em função duma simbologia que lhe está associada. É neste momento, quando o cálculo da relação custos/benefícios perde uma parte da sua relevância, que a máquina fotográfica (ou o telemóvel, ou o televisor, ou outra coisa qualquer) se torna fetiche***.
Com a avaliação de desempenho pode passar-se o mesmo. Num mundo racional, o melhor modelo de avaliação seria aquele que apresentasse a melhor relação custos/benefícios para os seus utilizadores. No caso do café da esquina, é bem possível que modelo óptimo seja o bom e velho "olhómetro". No caso duma grande empresa multinacional ou duma grande estrutura burocrática, o "olhómetro" já não serve; mas a maior complexidade do modelo escolhido implica um aumento dos custos e dos riscos, aumento este que só se justifica racionalmente se os benefícios aumentarem pelo menos na mesma proporção.
Mesmo no caso das empresas, que são apresentadas como modelo de racionalidade perfeita - e que têm, efectivamente, de se comportar com racionalidade para poderem sobreviver e prosperar - nada garante que todas as escolhas sejam racionais. Compreende-se que assim seja: os ambientes altamente competitivos são favoráveis à crença em soluções mágicas. Assim como um jogador de futebol leva para o campo um objecto qualquer que supostamente lhe dá sorte (ou cuja falta lhe dá azar), também os empresários e os gestores aderem a modismos e a fetiches, dos quais a avaliação coisificada não é o único nem o pior. E o que não falta é toda uma indústria de modismos e fetiches montada para tirar partido da insegurança própria de quem funciona em competição permanente. É uma indústria parasitária; mas nem a mais competitiva ou predadora das empresas está livre de alimentar parasitas.
Se muitas empresas sobrevivem e prosperam, não é por funcionarem de modo perfeitamente racional, mas sim por operarem nos limites da margem de irracionalidade que lhes é permitida. Esta margem é tanto mais estreita quanto mais rigorosa é a competição a que estão obrigadas, mas existe sempre porque a concorrência também comete erros. A margem de irracionalidade ao dispor das empresas é também uma margem de segurança: por sedutora que seja a teoria mais recente do guru mais na moda, nenhum gestor a aplica sem considerar, ainda que minimamente, os seus custos.
Estes custos são de vária ordem. Para começar, financeiros: todos os sistemas de avaliação, com a possível excepção do "olhómetro", custam dinheiro. Uns mais do que outros, é certo, e este é um dos factos que o meu hipotético empresário tem em conta. Mas há também custos em esforço organizativo, em tempo de trabalho, em tempo de execução e sobretudo - sobretudo - em termos de motivação e adesão das pessoas envolvidas. Já os benefícios são fáceis de definir: podem exprimir-se pela velha máxima que manda aprender com os erros. Um sistema de avaliação que não assegure esta aprendizagem e não se oriente para ela será irracional por mais moderados que sejam os seus custos.
Deixemos agora as empresas e consideremos outro tipo de organização: no caso, uma burocracia que não tem razões para temer, nem pela sua sobrevivência, nem pelo êxito das suas acções (uma vez que ninguém sabe em que consiste esse êxito). Uma organização que funciona nestes termos pode dar-se ao luxo de operar dentro duma margem de irracionalidade que é, para todos os efeitos práticos, infinita. Suponhamos, para além disto, que se trata duma burocracia grotescamente sobre-dimensionada; que os subsistemas e as pessoas que a integram não têm nem podem ter qualquer incentivo para apresentar trabalho útil, mas sim e apenas trabalho visível; que este trabalho consiste na produção obsessiva de normativos cuja qualidade, racionalidade, exequibilidade e coerência são completamente irrelevantes; que há profundas divergências filosóficas, ideológicas e pragmáticas entre os seus quadros administrativos e os seus operacionais sobre aquilo em que deve consistir o trabalho destes últimos; cujos quadros superiores se consideram mais competentes que os quadros operacionais não só no plano administrativo, mas também no próprio plano operacional - quando existe entre os operacionais a percepção generalizada que o que levou os "burocratas" a procurar trabalho nos gabinetes foi precisamente a sua incompetência ou inapetência no plano operacional; e em que as estruturas "superiores" se regem por uma visão ideológica e dogmática da realidade incompatível com a experiência concreta dos operacionais; e que o carácter dogmático dos seus pressupostos torna literalmente impensável que possam ocorrer erros ao nível que ocupam, pelo que qualquer avaliação a esse nível seria inútil.
Ou seja: consideremos o Ministério da Educação da República Portuguesa: do acima exposto concluiremos facilmente que estamos em presença duma organização da qual não é possível esperar qualquer decisão racional. O que está aqui em causa não é um nível de irracionalidade relativamente inócuo que permita à organização sobreviver como sistema de ensino. Os modismos e os fetiches operam aqui em roda livre, descontroladamente, e reforçando-se mutuamente numa espiral viciosa até ao ponto do mais completo delírio.
O modelo de avaliação que esteve e está em causa, o estatuto da carreira docente e o estatuto do aluno são o culminar duma "tempestade perfeita" que se estava a preparar há décadas e se manifestava já na incoerência e na falta de sentido de quase todos os normativos que regulam a educação em Portugal. Os futuros ministros da educação podem ser muito simpáticos, muito dialogantes, muito competentes, muito bem intencionados; mas enquanto o Ministério existir na sua forma actual, terão tantas possibilidades de erigir um verdadeiro sistema de ensino público como de abrir os braços no alto duma falésia e deter um furacão.
Notas:
*A avaliação coisificada, de resto, tem mais a ver com o paradigma industrial da "qualidade" (entendida como "conformidade") do que com o paradigma artesanal da "perfeição".
**É claro que o vendedor tem sempre em conta o interesse do comprador; mas a satisfação do cliente, digam o que disserem os slogans, nunca é um fim em si mesma: por muito importante que seja é sempre instrumental.
***Outra forma de fetichização é a inversão da relação entre o que é um fim em si mesmo e o que é instrumental. Quando dos meios se faz fins eles tornam-se fetiches: um bom exemplo disto é a avaliação dos professores pelo uso que fazem ou não de certas tecnologias. Escusado será dizer que os dois processos de fetichização não são reciprocamente exclusivos: pelo contrário, encontram-se geralmente juntos.
segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
Porque é que "eles" dizem sempre mudança e nunca dizem progresso?
Tinha em mente escrever um texto com este título, mas desisti. Não é preciso: o título basta.
One Market Under God revisitado
Este livro é muito mais sobre Thomas Friedman que sobre Milton Friedman. Quem o ler não encontrará nele uma crítica à economia neoclássica, nem ao consenso artificial que a tornou hegemónica, nem ao grau de coacção política, militar e policial de que os mercados ditos livres precisam para funcionar "naturalmente" (para isto é melhor ler A Brief History of Neoliberalism de David Harvey, eventualmente em conjunto com The Shock Doctrine de Naomi Klein; e, já agora, seguir com alguma atenção a intervenção americana no Haiti durante os próximos meses). O que se encontra em One Market Under God é uma crítica exaustiva a toda uma subliteratura denominada "Teoria da Gestão", da qual são exemplo o velhinho "O Gestor Um Minuto", o famoso (e pueril) "Quem Mexeu no Meu Queijo" e, claro, o delirante "The Lexus and the Olive Tree", que não sei se está traduzido em português mas presumo que esteja: lixo deste género costuma estar.
Considero este livro tão importante que repeti uma imagem, pela primeira vez desde que edito este blogue, para ilustrar um artigo. É importante, antes de mais, por ser exaustivo: Frank parece ter lido e analisado tudo o que se escreveu no género desde os anos trinta do século passado, inicialmente como instrumento de propaganda contra o New Deal. Importante, também, pela identificação e desmontagem dos chavões que se repetem de livro para livro e de autor para autor. Em relação a alguns destes chavões, Frank chega a determinar em que data e por mão de que autor ele apareceu no léxico dos negócios (o inventor do conceito de "excelência", por exemplo, vendia passados vinte anos o conceito de "destruição" como único escudo capaz de proteger as empresas contra os terríveis demónios da obsolescência e da irrelevância). É importante (ou pelo menos saboroso) para os professores, que encontram na linguagem da "Nova Economia" as mesmas formulações, muitas vezes ipsis verbis, que encontram nos delírios das Novas Pedagogias. É importante ainda por nos permitir identificar os padrões e tendências que dão unidade a um género literário em que cada guru descreve os anteriores como charlatães.
Uma destas tendências é a das empresas "inovadoras" (outro chavão) procurarem uma nova legitimidade na simbologia da esquerda dos anos sessenta e nos estilos de vida alternativos e contestatários dos jovens urbanos. Foi a procura obsessiva duma identidade, ou pelo menos duma imagem, que fosse, como escrevi noutro artigo, cool. De um dia para o outro, os CEO's e os empresários mais in deixaram de se identificar com John Wayne e passaram a identificar-se com Frank Zappa ou Che Guevara. Isto, é claro, só em termos de imagem. O que "está a dar" é a "rebeldia"; e não podemos deixar de dar razão a esta percepção de Thomas Frank quando saímos à rua e deparamos com tudo cheio de cartazes em que se afirma que "ter atitude" é usar um certo cartão bancário.
Outro tema recorrente é a divinização do mercado. Não falo aqui em sentido figurado, como falaria se me estivesse a referir a Milton Friedman e não a Thomas Friedman: dizer que os gurus da "Nova Economia" vêem no mercado, não uma abstracção, mas uma pessoa real, inefável e transcendente; que lhe atribuem volição, consciência e um propósito que prevalece sobre quaisquer propósitos meramente humanos; que consideram sacrílega e arrogante qualquer veleidade de o compreender ou controlar; e que confiam em que ele castigará qualquer esboço de "engenharia social" tal como Jeovah castigou os construtores da Torre de Babel - dizer isto é exprimir sobriamente uma verdade literal.
Há também a ideia (que os economistas neoclássicos, espero eu ferventemente, não partilham) que é possível criar riqueza sem produzir o que quer que seja. Um dos livros citados exprime esta ideia logo no título: Out of Thin Air. Foi neste passo da minha leitura que comecei a perguntar a mim mesmo se One Market Under God seria o mesmo livro se tivesse sido escrito depois da crise do subprime. Mas foi escrito e entregue ao editor, não só antes desta crise, como, à justa, antes do crash do Nasdaq, o que confere ao livro, e particularmente às suas palavras finais, um carácter estranhamente presciente. Igualmente presciente parece o final do postfácio:
Conservatism was so badly discredited by the stock market crash of 1929 that it disappeared from the American political mainstream (with an exception here and there) for thirty years. Market populism, the supercharged conservatism of our days, is just as vulnerable today. Whether or not the Nasdaq ever recovers from its recent slump, the version of economic democracy outlined by the New Economy theorists will continue to disappoint. However generously the new plutocrats fund the friendly libertarian thinktanks, and however the brand-builders deride the old ways in their ad campaigns, reality will continue to remind us that all these schemes are a transparent disguise. It will continue to point out that the much-vaunted "humility" of george W. Bush is just a façade for the most pro-business politics in seventy years. And once we recognize this, once we confront the slick patter of market populism with the true language of economic democracy, we will send Bush and his corporate cronies the way of Herbert Hoover.
Apropriação da linguagem da esquerda folclórica e do estilo cool; divinização do mercado; a ideia de que a riqueza se "cria" sem que nada se produza - tudo isto é desvario que chegue, como a realidade se encarregou de nos explicar com as manifestações de Seattle, o crash do Nasdaq e a crise do subprime. Mas o que melhor caracteriza (ainda!) a "Nova Economia" e os seus gurus é uma fé rígida e inabalável no determinismo histórico. Daí a absoluta certeza com que fazem os seus pronunciamentos sobre o "futuro". A "mudança" é sempre inexorável. "Crê ou morres": esta é a ameaça, por vezes implícita mas mais frequentemente explícita, que nenhum guru deixa de fazer insistentemente em tudo o que escreve. É o discurso da inevitabilidade; e quando algum político, empresário, economista mediático ou fazedor de opinião declara solenemente que isto ou aquilo é coisa do passado e temos que nos resignar a viver sem ela para sempre, está a debitar a cassette que os gurus fabricaram .
E assim chegamos àquilo que faz de One Market Under God um texto que é, mais do que meramente importante, incontornável. É um livro que nos muda. Depois de o lermos, nunca mais poderemos ouvir com os mesmos ouvidos os nossos políticos e os nossos empresários: a cada passo reconheceremos a linguagem vazia dos gurus. Nem poderemos ver com os mesmos olhos um outdoor em que o consumismo conformista é equacionado com a rebeldia, com a atitude, com a oposição à autoridade.
E é, finalmente, um livro aterrador. Porque nos mostra que é nisto que os políticos e os empresários acreditam. Os que decidem das nossas vidas decidem com base num emaranhado de superstições que não difere muito da astrologia. Não leram os economistas neoclássicos (que, mesmo que estejam errados, estão apenas errados, o que não é especialmente grave); leram, sim, os gurus, que nem errados estão porque as mercadorias que têm para nos vender são a irracionalidade e o irracionalismo.
O irracionalismo está nos insistentes apelos para que não tentemos compreender, para que não queiramos "saber mais que o Mercado", para que usemos a intuição, em vez da razão, nos nossos investimentos; para que nos deixemos, enfim, ir na corrente. Para que não "interfiramos" na economia, ou seja: para que não tentemos ter qualquer poder sobre as nossas próprias vidas.
Quanto à irracionalidade, por vezes nem sequer é preciso passar da capa do livro. Considere-se o título com que uma tal Virginia Postrel, outra adepta da seita, parafraseou Karl Popper: The Future and its Enemies.
Como?! Importa-se de repetir?! Como é que o futuro pode ter amigos ou inimigos?! Quem pode deter ou apressar o fluir do tempo?! Mas talvez a palavra "futuro" seja, neste título como no discurso dos políticos, uma palavra de código para "a nossa agenda". Talvez a senhora Postrel não seja de todo irracional. Talvez seja, pelo contrário, muitíssimo racional.
Considero este livro tão importante que repeti uma imagem, pela primeira vez desde que edito este blogue, para ilustrar um artigo. É importante, antes de mais, por ser exaustivo: Frank parece ter lido e analisado tudo o que se escreveu no género desde os anos trinta do século passado, inicialmente como instrumento de propaganda contra o New Deal. Importante, também, pela identificação e desmontagem dos chavões que se repetem de livro para livro e de autor para autor. Em relação a alguns destes chavões, Frank chega a determinar em que data e por mão de que autor ele apareceu no léxico dos negócios (o inventor do conceito de "excelência", por exemplo, vendia passados vinte anos o conceito de "destruição" como único escudo capaz de proteger as empresas contra os terríveis demónios da obsolescência e da irrelevância). É importante (ou pelo menos saboroso) para os professores, que encontram na linguagem da "Nova Economia" as mesmas formulações, muitas vezes ipsis verbis, que encontram nos delírios das Novas Pedagogias. É importante ainda por nos permitir identificar os padrões e tendências que dão unidade a um género literário em que cada guru descreve os anteriores como charlatães.
Uma destas tendências é a das empresas "inovadoras" (outro chavão) procurarem uma nova legitimidade na simbologia da esquerda dos anos sessenta e nos estilos de vida alternativos e contestatários dos jovens urbanos. Foi a procura obsessiva duma identidade, ou pelo menos duma imagem, que fosse, como escrevi noutro artigo, cool. De um dia para o outro, os CEO's e os empresários mais in deixaram de se identificar com John Wayne e passaram a identificar-se com Frank Zappa ou Che Guevara. Isto, é claro, só em termos de imagem. O que "está a dar" é a "rebeldia"; e não podemos deixar de dar razão a esta percepção de Thomas Frank quando saímos à rua e deparamos com tudo cheio de cartazes em que se afirma que "ter atitude" é usar um certo cartão bancário.
Outro tema recorrente é a divinização do mercado. Não falo aqui em sentido figurado, como falaria se me estivesse a referir a Milton Friedman e não a Thomas Friedman: dizer que os gurus da "Nova Economia" vêem no mercado, não uma abstracção, mas uma pessoa real, inefável e transcendente; que lhe atribuem volição, consciência e um propósito que prevalece sobre quaisquer propósitos meramente humanos; que consideram sacrílega e arrogante qualquer veleidade de o compreender ou controlar; e que confiam em que ele castigará qualquer esboço de "engenharia social" tal como Jeovah castigou os construtores da Torre de Babel - dizer isto é exprimir sobriamente uma verdade literal.
Há também a ideia (que os economistas neoclássicos, espero eu ferventemente, não partilham) que é possível criar riqueza sem produzir o que quer que seja. Um dos livros citados exprime esta ideia logo no título: Out of Thin Air. Foi neste passo da minha leitura que comecei a perguntar a mim mesmo se One Market Under God seria o mesmo livro se tivesse sido escrito depois da crise do subprime. Mas foi escrito e entregue ao editor, não só antes desta crise, como, à justa, antes do crash do Nasdaq, o que confere ao livro, e particularmente às suas palavras finais, um carácter estranhamente presciente. Igualmente presciente parece o final do postfácio:
Conservatism was so badly discredited by the stock market crash of 1929 that it disappeared from the American political mainstream (with an exception here and there) for thirty years. Market populism, the supercharged conservatism of our days, is just as vulnerable today. Whether or not the Nasdaq ever recovers from its recent slump, the version of economic democracy outlined by the New Economy theorists will continue to disappoint. However generously the new plutocrats fund the friendly libertarian thinktanks, and however the brand-builders deride the old ways in their ad campaigns, reality will continue to remind us that all these schemes are a transparent disguise. It will continue to point out that the much-vaunted "humility" of george W. Bush is just a façade for the most pro-business politics in seventy years. And once we recognize this, once we confront the slick patter of market populism with the true language of economic democracy, we will send Bush and his corporate cronies the way of Herbert Hoover.
Apropriação da linguagem da esquerda folclórica e do estilo cool; divinização do mercado; a ideia de que a riqueza se "cria" sem que nada se produza - tudo isto é desvario que chegue, como a realidade se encarregou de nos explicar com as manifestações de Seattle, o crash do Nasdaq e a crise do subprime. Mas o que melhor caracteriza (ainda!) a "Nova Economia" e os seus gurus é uma fé rígida e inabalável no determinismo histórico. Daí a absoluta certeza com que fazem os seus pronunciamentos sobre o "futuro". A "mudança" é sempre inexorável. "Crê ou morres": esta é a ameaça, por vezes implícita mas mais frequentemente explícita, que nenhum guru deixa de fazer insistentemente em tudo o que escreve. É o discurso da inevitabilidade; e quando algum político, empresário, economista mediático ou fazedor de opinião declara solenemente que isto ou aquilo é coisa do passado e temos que nos resignar a viver sem ela para sempre, está a debitar a cassette que os gurus fabricaram .
E assim chegamos àquilo que faz de One Market Under God um texto que é, mais do que meramente importante, incontornável. É um livro que nos muda. Depois de o lermos, nunca mais poderemos ouvir com os mesmos ouvidos os nossos políticos e os nossos empresários: a cada passo reconheceremos a linguagem vazia dos gurus. Nem poderemos ver com os mesmos olhos um outdoor em que o consumismo conformista é equacionado com a rebeldia, com a atitude, com a oposição à autoridade.
E é, finalmente, um livro aterrador. Porque nos mostra que é nisto que os políticos e os empresários acreditam. Os que decidem das nossas vidas decidem com base num emaranhado de superstições que não difere muito da astrologia. Não leram os economistas neoclássicos (que, mesmo que estejam errados, estão apenas errados, o que não é especialmente grave); leram, sim, os gurus, que nem errados estão porque as mercadorias que têm para nos vender são a irracionalidade e o irracionalismo.
O irracionalismo está nos insistentes apelos para que não tentemos compreender, para que não queiramos "saber mais que o Mercado", para que usemos a intuição, em vez da razão, nos nossos investimentos; para que nos deixemos, enfim, ir na corrente. Para que não "interfiramos" na economia, ou seja: para que não tentemos ter qualquer poder sobre as nossas próprias vidas.
Quanto à irracionalidade, por vezes nem sequer é preciso passar da capa do livro. Considere-se o título com que uma tal Virginia Postrel, outra adepta da seita, parafraseou Karl Popper: The Future and its Enemies.
Como?! Importa-se de repetir?! Como é que o futuro pode ter amigos ou inimigos?! Quem pode deter ou apressar o fluir do tempo?! Mas talvez a palavra "futuro" seja, neste título como no discurso dos políticos, uma palavra de código para "a nossa agenda". Talvez a senhora Postrel não seja de todo irracional. Talvez seja, pelo contrário, muitíssimo racional.
domingo, 17 de janeiro de 2010
Os economistas não são o problema
Nenhum economista acredita, por mais impecáveis que sejam as suas credenciais neoclássicas, que a "mão invisível" de Adam Smith seja mais que uma metáfora. Nenhum economista acredita que o mercado seja uma pessoa real, dotada de volição, cujos objectivos transcendentes prevalecem sobre os objectivos egoistas dos meros seres humanos. Nenhum economista (com a possível excepção de João César da Neves) acredita que o Mercado seja Deus. Nenhum economista acredita que a riqueza se "crie": todos sabem que se produz. Nenhum economista acredita que a criação de lucro sem produção de riqueza possa ser um jogo de soma positiva. E poucos acreditarão que "mercado livre" é sinónimo de "democracia".
Quem acredita nestas inanidades, e noutras piores, são os chamados gurus da chamada Nova Economia (cujas teorias, publicadas entre os anos trinta e 1999, são minuciosamente dissecadas por Thomas Frank em One Mrket Under God). Ou, se não acreditam, pelo menos fazem tudo para que nós acreditemos. Não vou tentar referir todos os chavões que eles empregam: abordarei apenas o conceito de cool que utilizam para definir os termos duma luta de classes reinventada: de um lado da barricada, o do "Povo", estão as empresas cool, aliadas às tribos urbanas, ao cidadão comum sem pretensões e de um modo geral a tudo o que é moderno; e no lado oposto, o das "elites", estão as empresas da "velha economia", que ainda acreditam na produção de bens e serviços e onde ainda se usa gravata, juntamente com os sindicatos, o Estado, os professores, os snobs, os académicos, os cépticos, os "cínicos", os intelectuais e de um modo geral todos os que acreditam, impiamente, que o mercado está sujeito a exame como outra coisa qualquer e pode ser objecto de crítica racional.
Ser economista, nos tempos que correm, não deve ser fácil: o economista está sempre, como o teólogo, a meio caminho de se tornar herege. Mais vale ser profeta ou guru.
Talvez seja esta a razão porque os economistas mediáticos tiram os seus chapéus de economista quando abandonam os seus gabinetes nas universidades ou nas empresas e põem o chapéu de guru quando entram num estúdio de televisão. E então é vê-los sacar dos chavões: a excelência, o empreendorismo, a mudança (nunca o progresso), a flexibilidade, a inevitabilidade de termos todos (ou quase todos) de trabalhar cada vez mais em empregos cada vez mais precários e em troca de salários cada vez mais baixos. E tudo isto, pasme-se, não apesar do progresso tecnológico, mas sim precisamente por causa dele e do enorme aumento de produtividade que ele tem proporcionado.
Credo quia absurdum é a atitude que nos exigem. Podemos obedecer ou não a esta exigência, mas em todo o caso ficamos a saber o que é um neoliberal: é a criatura que surge na transição do economista neoclássico para o guru da Nova Economia.
Quem acredita nestas inanidades, e noutras piores, são os chamados gurus da chamada Nova Economia (cujas teorias, publicadas entre os anos trinta e 1999, são minuciosamente dissecadas por Thomas Frank em One Mrket Under God). Ou, se não acreditam, pelo menos fazem tudo para que nós acreditemos. Não vou tentar referir todos os chavões que eles empregam: abordarei apenas o conceito de cool que utilizam para definir os termos duma luta de classes reinventada: de um lado da barricada, o do "Povo", estão as empresas cool, aliadas às tribos urbanas, ao cidadão comum sem pretensões e de um modo geral a tudo o que é moderno; e no lado oposto, o das "elites", estão as empresas da "velha economia", que ainda acreditam na produção de bens e serviços e onde ainda se usa gravata, juntamente com os sindicatos, o Estado, os professores, os snobs, os académicos, os cépticos, os "cínicos", os intelectuais e de um modo geral todos os que acreditam, impiamente, que o mercado está sujeito a exame como outra coisa qualquer e pode ser objecto de crítica racional.
Ser economista, nos tempos que correm, não deve ser fácil: o economista está sempre, como o teólogo, a meio caminho de se tornar herege. Mais vale ser profeta ou guru.
Talvez seja esta a razão porque os economistas mediáticos tiram os seus chapéus de economista quando abandonam os seus gabinetes nas universidades ou nas empresas e põem o chapéu de guru quando entram num estúdio de televisão. E então é vê-los sacar dos chavões: a excelência, o empreendorismo, a mudança (nunca o progresso), a flexibilidade, a inevitabilidade de termos todos (ou quase todos) de trabalhar cada vez mais em empregos cada vez mais precários e em troca de salários cada vez mais baixos. E tudo isto, pasme-se, não apesar do progresso tecnológico, mas sim precisamente por causa dele e do enorme aumento de produtividade que ele tem proporcionado.
Credo quia absurdum é a atitude que nos exigem. Podemos obedecer ou não a esta exigência, mas em todo o caso ficamos a saber o que é um neoliberal: é a criatura que surge na transição do economista neoclássico para o guru da Nova Economia.
Imagem: TIME Magazine
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
Requerimento
Assunto: horário de trabalho excedido
(Nome)............................, Professor (situação profissional) ............ da Escola ..................., informa que ultrapassou às ..... horas do dia ..... o limite de 35 horas de trabalho para a semana em curso, como a seguir se discrimina:
Aulas: .... horas e .... minutos ;
componente não lectiva: .... horas e .... minutos ;
reunião de ......... : .... horas e .... minutos;
reunião de ............. : .... horas e .... minutos;
(....)
preparação de aulas: .... horas e .... minutos ;
pesquisa de materiais: .... horas e .... minutos ;
elaboração de testes: .... horas e .... minutos ;
correcção de testes: .... horas e .... minutos ;
(especificar outras tarefas) : .... horas e .... minutos.
Total: .... horas e .... minutos.
Como se vê pelo exposto, já excedeu em .... horas e .... minutos o seu horário legal.
Informa ainda que o seu horário ainda prevê, para a semana em curso, mais .... horas e ..... minutos de componente lectiva e .... horas e .... minutos de componente não lectiva.
Face ao exposto, vem solicitar que lhe sejam definidos serviços mínimos para o resto da semana de modo a que nem os alunos sejam prejudicados nem o seu tempo de trabalho, já excedido, se prolongue ainda mais sem que disso haja absoluta e demonstrável necessidade.
Solicita ainda que lhe seja indicada por escrito a forma que assumirá a compensação que lhe é devida pelo tempo que trabalhou e vai trabalhar a mais, bem como a data em que essa compensação terá lugar. Esta indicação deverá ter lugar até às ....... : ...... horas do próximo dia ...... , uma vez que é a nesse dia e hora que começam as actividades que ainda tem previstas no horário. Caso não receba esta indicação em tempo útil, definirá ele próprio os serviços mínimos que prestará, sem prejuízo de exigir a compensação respectiva.
(Nome)............................, Professor (situação profissional) ............ da Escola ..................., informa que ultrapassou às ..... horas do dia ..... o limite de 35 horas de trabalho para a semana em curso, como a seguir se discrimina:
Aulas: .... horas e .... minutos ;
componente não lectiva: .... horas e .... minutos ;
reunião de ......... : .... horas e .... minutos;
reunião de ............. : .... horas e .... minutos;
(....)
preparação de aulas: .... horas e .... minutos ;
pesquisa de materiais: .... horas e .... minutos ;
elaboração de testes: .... horas e .... minutos ;
correcção de testes: .... horas e .... minutos ;
(especificar outras tarefas) : .... horas e .... minutos.
Total: .... horas e .... minutos.
Como se vê pelo exposto, já excedeu em .... horas e .... minutos o seu horário legal.
Informa ainda que o seu horário ainda prevê, para a semana em curso, mais .... horas e ..... minutos de componente lectiva e .... horas e .... minutos de componente não lectiva.
Face ao exposto, vem solicitar que lhe sejam definidos serviços mínimos para o resto da semana de modo a que nem os alunos sejam prejudicados nem o seu tempo de trabalho, já excedido, se prolongue ainda mais sem que disso haja absoluta e demonstrável necessidade.
Solicita ainda que lhe seja indicada por escrito a forma que assumirá a compensação que lhe é devida pelo tempo que trabalhou e vai trabalhar a mais, bem como a data em que essa compensação terá lugar. Esta indicação deverá ter lugar até às ....... : ...... horas do próximo dia ...... , uma vez que é a nesse dia e hora que começam as actividades que ainda tem previstas no horário. Caso não receba esta indicação em tempo útil, definirá ele próprio os serviços mínimos que prestará, sem prejuízo de exigir a compensação respectiva.
Com os meus melhores cumprimentos
(Data)
(Assinatura)
(Data)
(Assinatura)
Isabel Alçada
A câmara de televisão não perdoa: capta melhor que o olho nu todos os matizes de expressão e linguagem corporal daquele ou daquela a quem está apontada. Diz muitas vezes por imagens o que o jornalista não pode ou não quer dizer por palavras.
No dia em que tomou posse, Isabel Alçada deu uma imagem de si que não contradizia os seus propósitos anunciados nem os que lhe eram atribuídos pelos meios de comunicação social. O queixo erguido, os olhos brilhantes, o sorriso confiante (muitas das minhas colegas acharam-no artificial, mas eu confesso que não vi isto) - tudo nela exprimia uma maneira de estar na vida e prometia um estilo de actuação.
Há poucos dias a televisão voltou a mostrá-la, integrada na comitiva do primeiro-ministro. Não era a mesma mulher. O corpo encolhido, o rosto assustado, o olhar que não se fixava em lugar nenhum, tudo nela era a imagem dum animalzinho acossado.
O que teria operado uma transformação tão grande em tão pouco tempo? Só posso especular. É inteiramente possível, por exemplo, que se encontrasse doente ou exausta naquele preciso momento, ou que quaisquer circunstâncias da sua vida privada, que ignoro e não são da minha conta, expliquem o que as câmaras da televisão mostraram. Mas também é possível que Isabel Alçada tenha aprendido que género de criatura é o ministério que supostamente dirige e que se tenha dado conta das circunstâncias, até então inimagináveis para ela, que condicionam a sua actuação.
Não sei se a cultura humanística de Isabel Alçada é superior à de Maria de Lurdes Rodrigues. Provavelmente é. Mas a sua experiência em matérias de táctica política é certamente muito mais reduzida, e não a preparou para encontrar no ministério uma tecnoburocracia orientada para a imposição e manutenção duma determinada linha ideológica.
Destas estruturas, e da melhor maneira de lidar com elas, percebe Maria de Lurdes Rodrigues muito bem. Obrigada a tomar partido entre a vanguarda ideológica que encontrou no ministério - chamemos-lhe os "guardas vermelhos" - e os professores contra-revolucionários - chamemos-lhes os "intelectuais decadentes" - optou sem hesitar pelos primeiros.
Foi uma opção racional. Maria de Lurdes Rodrigues tinha todas as razões para acreditar que estava a alinhar com o lado mais forte: os sindicatos pareciam-lhe fracos ou acomodados, os professores passivos, e os movimentos de professores ainda não tinham surgido no terreno. Mas foi também uma opção convicta: o pedagogismo que os "guardas vermelhos" defendem-se articula-se perfeitamente com a sua visão do mundo e com a linguagem anti-intelectual e "anti-elitista" típica do PS de José Sócrates e dos gurus da "Nova Economia". Daí que a sua terminologia fosse a destes gurus: a inovação, a liderança, a trans-disciplinaridade, a flexibilidade, as competências, a mudança, a resistência à mudança, o futuro - e, quando tudo o mais falhava, a artilharia pesada deste discurso: a invocação explícita ou implícita da "inevitabilidade" disto tudo. A esquerda dos anos 60 e a direita dos anos 80 não só tinham feito as pazes, como falavam finalmente a mesma língua.
Igualmente racional foi a maneira como os instrumentos de aplicação desta ortodoxia - o Estatuto da Carreira Docente, o Estatuto do Aluno e o modelo de avaliação - se articularam entre si. O facto de a doutrina ser em si mesma irracional só levou a que os meios utilizados para a impor fossem mais violentos.
Isabel Alçada não tem passado político que a habilite a lidar com "guardas vermelhos" de nenhuma espécie. Se tem fé na Pedagogia de Estado que Maria de Lurdes Rodrigues quis impor definitivamente, esta fé pode não ser tão incondicional ou tão entusiástica como os seus mentores exigem a um ministro da pasta; os "intelectuais decadentes" têm, afinal, mais poder do que a sua antecessora julgava; mas qualquer cedência ou concessão, mesmo puramente formal, que lhes seja feita será lida pela tecnoburocracia do ministério como uma traição e como um desvio à "linha justa".
Isabel Alçada sabe que o essencial não pode ser negociado, nem sequer discutido. Sabe que o acordo de princípio a que chegou com os sindicatos foi como o limpar e coser duma ferida sem tratar da infecção que está por baixo. Descobriu quem são os contendores no conflito que lhe compete gerir; descobriu o que cada um deles quer; já tem uma ideia da relação de forças entre eles; e deu consigo em pleno fogo cruzado. Por isso tem medo.
No dia em que tomou posse, Isabel Alçada deu uma imagem de si que não contradizia os seus propósitos anunciados nem os que lhe eram atribuídos pelos meios de comunicação social. O queixo erguido, os olhos brilhantes, o sorriso confiante (muitas das minhas colegas acharam-no artificial, mas eu confesso que não vi isto) - tudo nela exprimia uma maneira de estar na vida e prometia um estilo de actuação.
Há poucos dias a televisão voltou a mostrá-la, integrada na comitiva do primeiro-ministro. Não era a mesma mulher. O corpo encolhido, o rosto assustado, o olhar que não se fixava em lugar nenhum, tudo nela era a imagem dum animalzinho acossado.
O que teria operado uma transformação tão grande em tão pouco tempo? Só posso especular. É inteiramente possível, por exemplo, que se encontrasse doente ou exausta naquele preciso momento, ou que quaisquer circunstâncias da sua vida privada, que ignoro e não são da minha conta, expliquem o que as câmaras da televisão mostraram. Mas também é possível que Isabel Alçada tenha aprendido que género de criatura é o ministério que supostamente dirige e que se tenha dado conta das circunstâncias, até então inimagináveis para ela, que condicionam a sua actuação.
Não sei se a cultura humanística de Isabel Alçada é superior à de Maria de Lurdes Rodrigues. Provavelmente é. Mas a sua experiência em matérias de táctica política é certamente muito mais reduzida, e não a preparou para encontrar no ministério uma tecnoburocracia orientada para a imposição e manutenção duma determinada linha ideológica.
Destas estruturas, e da melhor maneira de lidar com elas, percebe Maria de Lurdes Rodrigues muito bem. Obrigada a tomar partido entre a vanguarda ideológica que encontrou no ministério - chamemos-lhe os "guardas vermelhos" - e os professores contra-revolucionários - chamemos-lhes os "intelectuais decadentes" - optou sem hesitar pelos primeiros.
Foi uma opção racional. Maria de Lurdes Rodrigues tinha todas as razões para acreditar que estava a alinhar com o lado mais forte: os sindicatos pareciam-lhe fracos ou acomodados, os professores passivos, e os movimentos de professores ainda não tinham surgido no terreno. Mas foi também uma opção convicta: o pedagogismo que os "guardas vermelhos" defendem-se articula-se perfeitamente com a sua visão do mundo e com a linguagem anti-intelectual e "anti-elitista" típica do PS de José Sócrates e dos gurus da "Nova Economia". Daí que a sua terminologia fosse a destes gurus: a inovação, a liderança, a trans-disciplinaridade, a flexibilidade, as competências, a mudança, a resistência à mudança, o futuro - e, quando tudo o mais falhava, a artilharia pesada deste discurso: a invocação explícita ou implícita da "inevitabilidade" disto tudo. A esquerda dos anos 60 e a direita dos anos 80 não só tinham feito as pazes, como falavam finalmente a mesma língua.
Igualmente racional foi a maneira como os instrumentos de aplicação desta ortodoxia - o Estatuto da Carreira Docente, o Estatuto do Aluno e o modelo de avaliação - se articularam entre si. O facto de a doutrina ser em si mesma irracional só levou a que os meios utilizados para a impor fossem mais violentos.
Isabel Alçada não tem passado político que a habilite a lidar com "guardas vermelhos" de nenhuma espécie. Se tem fé na Pedagogia de Estado que Maria de Lurdes Rodrigues quis impor definitivamente, esta fé pode não ser tão incondicional ou tão entusiástica como os seus mentores exigem a um ministro da pasta; os "intelectuais decadentes" têm, afinal, mais poder do que a sua antecessora julgava; mas qualquer cedência ou concessão, mesmo puramente formal, que lhes seja feita será lida pela tecnoburocracia do ministério como uma traição e como um desvio à "linha justa".
Isabel Alçada sabe que o essencial não pode ser negociado, nem sequer discutido. Sabe que o acordo de princípio a que chegou com os sindicatos foi como o limpar e coser duma ferida sem tratar da infecção que está por baixo. Descobriu quem são os contendores no conflito que lhe compete gerir; descobriu o que cada um deles quer; já tem uma ideia da relação de forças entre eles; e deu consigo em pleno fogo cruzado. Por isso tem medo.
quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
Maria de Lurdes Rodrigues não é culpada de tudo
Não quero ser indulgente nem contemporizador: quero ser objectivo. Maria de Lurdes Rodrigues não inventou o delírio pedagógico que infecta a escola pública; não montou a gigantesca estrutura burocrática criada para sustentar este delírio; e mesmo o incivismo generalizado, que é o último dos três grandes vícios do sistema, já vem de trás.
As culpas de Maria de Lurdes Rodrigues são graves, mas são outras. Não criou o incivismo, mas incentivou-o com o Estatuto do Aluno. Não ampliou a estrutura burocrática a seu cargo, mas também não a combateu nem reduziu. Não inventou o delírio pedagógico, mas inventou ou copiou um sistema neo-Taylorista, completo com o respectivo modelo de avaliação, em que actividade do professor é decomposta nos mínimos gestos e atitudes a fim de se ver se estão conformes. Passa deste modo a ser impossível para um professor rejeitar, ignorar, subverter ou contornar o "eduquês". Doravante, todas as veleidades deontológicas são heresias; e a avaliação lá estará para recompensar (parcamente) a ortodoxia e punir (severamente) a dissidência.
O Estatuto da Carreira Docente de Maria de Lurdes Rodrigues, o Estatuto do Aluno e o modelo de avaliação dos professores foram instrumentos pensados não só para tornar mais barato o trabalho docente, mas também para impor politicamente uma "linha justa" educativa que não consegue impor-se pela sua validade científica. Os instrumentos de Isabel Alçada podem ser mais eficazes que os de Maria de Lurdes Rodrigues, e até marginalmente mais favoráveis, em termos laborais, aos professores - mas os fins que visam são exactamente os mesmos.
Não vejo o que se ganha em aperfeiçoar os instrumentos duma política nociva. Até ver, foi só isto que os sindicatos conseguiram. A discussão do essencial continua adiada sine die. Nem Maria de Lurdes Rodrigues é culpada de tudo, nem Isabel Alçada inocente.
As culpas de Maria de Lurdes Rodrigues são graves, mas são outras. Não criou o incivismo, mas incentivou-o com o Estatuto do Aluno. Não ampliou a estrutura burocrática a seu cargo, mas também não a combateu nem reduziu. Não inventou o delírio pedagógico, mas inventou ou copiou um sistema neo-Taylorista, completo com o respectivo modelo de avaliação, em que actividade do professor é decomposta nos mínimos gestos e atitudes a fim de se ver se estão conformes. Passa deste modo a ser impossível para um professor rejeitar, ignorar, subverter ou contornar o "eduquês". Doravante, todas as veleidades deontológicas são heresias; e a avaliação lá estará para recompensar (parcamente) a ortodoxia e punir (severamente) a dissidência.
O Estatuto da Carreira Docente de Maria de Lurdes Rodrigues, o Estatuto do Aluno e o modelo de avaliação dos professores foram instrumentos pensados não só para tornar mais barato o trabalho docente, mas também para impor politicamente uma "linha justa" educativa que não consegue impor-se pela sua validade científica. Os instrumentos de Isabel Alçada podem ser mais eficazes que os de Maria de Lurdes Rodrigues, e até marginalmente mais favoráveis, em termos laborais, aos professores - mas os fins que visam são exactamente os mesmos.
Não vejo o que se ganha em aperfeiçoar os instrumentos duma política nociva. Até ver, foi só isto que os sindicatos conseguiram. A discussão do essencial continua adiada sine die. Nem Maria de Lurdes Rodrigues é culpada de tudo, nem Isabel Alçada inocente.
sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
A empresarialização esquizofrénica das escolas
And we are here as on a darkling plain
Swept with confused alarms of struggle and flight,
Where ignorant armies clash by night.
O trabalho do professor consiste em compreender o mundo e dá-lo a compreender aos outros. O emprego do professor, ninguém sabe no que consiste: nem o próprio, nem as direcções das escolas, nem os especialistas em Ciências da Educação, nem a ministra. Ninguém.
Sabe-se, sim, aquilo em que o emprego do professor não consiste, pelo menos no chamado mundo ocidental: não consiste, pelos vistos, em fazer o seu trabalho. Talvez isto resulte do facto de este trabalho ser, se considerado em termos absolutos, uma tarefa impossível (como outras tarefas, de resto; vem-me à cabeça, por exemplo, a do tradutor). Ninguém pode compreender inteiramente o mundo nem dá-lo inteiramente a compreender. O êxito em empreendimentos desta natureza, se de êxito se pode falar, não consiste em atingir uma meta estabelecida num prazo, mas em tender sempre, segundo uma curva assimptótica, para um resultado inatingível. Some-se a inevitável impossibilidade do trabalho do professor à futilidade das tarefas que lhe são impostas (ou que ele próprio se impõe) no âmbito de um emprego sem sentido discernível, pô-lo-emos numa situação em que duas das mais importantes realidades da sua vida são incompatíveis entre si.
Desta incompatibilidade entre emprego e trabalho decorrem várias consequências. Desde logo para a saúde mental do professor, que, dividido entre lealdades contraditórias, acaba muitas vezes por fazer da dissociação cognitiva o seu modo habitual de funcionar. Mas também para as escolas, que não sabem por que regras se devem reger, e para o sistema, que não sabe que modelo adoptar para as instituições que lhe compete gerir.
É aqui que entra o modelo empresarial. Erigida em pináculo inultrapassável da organização social, a empresa (ou melhor, o ideal da empresa) vem preencher a brecha criada. E a empresa não tem vocação, nem tempo, nem paciência, para tarefas impossíveis ou para curvas assimptóticas. Se a empresa exprime por vezes em termos que parecem absolutos, é porque teve o cuidado prévio de relativizar esses termos. Assim, a "excelência" não é mais que o resultado da "qualidade total" que a empresa exige a si própria; e a "qualidade", por sua vez, consiste no cumprimento integral dum caderno de encargos.
Não se depreenda do que escrevi acima que a empresa é necessariamente uma entidade racional ou que a escola é necessariamente irracional. Tanto a empresa como a escola necessitam de agir racionalmente em função dos pressupostos metafísicos de que partem. O conflito de culturas entre a escola e a empresa resulta de partirem de pressupostos metafísicos diferentes. Mesmo no caso de ambas estarem de saúde e funcionarem bem (mas neste caso nem uma, nem outra precisaria de seguir "modelos"), este conflito seria inevitável.
Se implantarmos numa escola em crise um modelo empresarial saudável, o modelo será rejeitado na mesma. Mas o que se passa de facto é que o modelo empresarial que se quer implantar nas escolas está ele próprio em crise. Tal como as escolas se debatem com o "eduquês", que é o seu problema principal, também as empresas actuais se debatem com uma mescla irracional de crenças e ideologias, um "empresarialês" que ocupa, nas prateleiras das livrarias, as estantes destinadas às "teorias da gestão" (ou "teorias do management", para os mais puristas). É aqui que pontificam os "gurus" como Tom Peters. A mim, nunca me deixa de divertir o facto de estas estantes estarem, em muitas livrarias, junto das estantes dedicadas às "espiritualidades". Tom Peters e Paulo Coelho têm, de facto, muito em comum. Só faltam, para lhes fazer companhia, pensadores da craveira de Ana Benavente, que por certo se sentiria muito melhor junto deles do que nas proximidades dos manuais escolares que ajudou a perpetrar.
O delírio gestionário que está para as empresas como o delírio pedagógico para as escolas aparece caracterizado e analisado por Thomas Frank, ao longo de 49 páginas brilhantes, no capítulo "Casual Day, USA" do seu livro One Market Under God*. O livro merece ser lido na sua totalidade, mas para um professor este capítulo tem um interesse particular pela semelhança do que nele se descreve com a sua própria experiência. Entre os vários paralelismos que se podem estabelecer, há um que me chamou particularmente a atenção: o facto de ambos os discursos, ou ideologias, ou superstições, ou lá o que lhes queiram chamar, se apropriarem da contra-cultura dos anos 60 do século passado para prosseguir fins que nada têm a ver com ela.
Causa terror a ideia que a autoridade educativa, em Portugal como noutros países, está nas mãos de pessoas sem vestígios de cultura humanística mas com as cabeças formatadas, umas por um delírio gestionário, outras por um delírio pedagógico. Causa terror a ideia que estes delírios podem, em vez de se cancelarem reciprocamente, estabelecer uma sinergia infernal, uma follie à deux em que a loucura de um aumenta e reforça a do outro. Causa terror que seja esta gente a determinar o que é uma escola e para que serve, e a decidir o que é um bom professor e por que critérios deve ser avaliado.
*Frank, Thomas. One Market Under God: extreme capitalism, market populism and the end of economic democracy. Londres: Vintage 2002
Swept with confused alarms of struggle and flight,
Where ignorant armies clash by night.
Matthew Arnold, "Dover Beach"
O trabalho do professor consiste em compreender o mundo e dá-lo a compreender aos outros. O emprego do professor, ninguém sabe no que consiste: nem o próprio, nem as direcções das escolas, nem os especialistas em Ciências da Educação, nem a ministra. Ninguém.
Sabe-se, sim, aquilo em que o emprego do professor não consiste, pelo menos no chamado mundo ocidental: não consiste, pelos vistos, em fazer o seu trabalho. Talvez isto resulte do facto de este trabalho ser, se considerado em termos absolutos, uma tarefa impossível (como outras tarefas, de resto; vem-me à cabeça, por exemplo, a do tradutor). Ninguém pode compreender inteiramente o mundo nem dá-lo inteiramente a compreender. O êxito em empreendimentos desta natureza, se de êxito se pode falar, não consiste em atingir uma meta estabelecida num prazo, mas em tender sempre, segundo uma curva assimptótica, para um resultado inatingível. Some-se a inevitável impossibilidade do trabalho do professor à futilidade das tarefas que lhe são impostas (ou que ele próprio se impõe) no âmbito de um emprego sem sentido discernível, pô-lo-emos numa situação em que duas das mais importantes realidades da sua vida são incompatíveis entre si.
Desta incompatibilidade entre emprego e trabalho decorrem várias consequências. Desde logo para a saúde mental do professor, que, dividido entre lealdades contraditórias, acaba muitas vezes por fazer da dissociação cognitiva o seu modo habitual de funcionar. Mas também para as escolas, que não sabem por que regras se devem reger, e para o sistema, que não sabe que modelo adoptar para as instituições que lhe compete gerir.
É aqui que entra o modelo empresarial. Erigida em pináculo inultrapassável da organização social, a empresa (ou melhor, o ideal da empresa) vem preencher a brecha criada. E a empresa não tem vocação, nem tempo, nem paciência, para tarefas impossíveis ou para curvas assimptóticas. Se a empresa exprime por vezes em termos que parecem absolutos, é porque teve o cuidado prévio de relativizar esses termos. Assim, a "excelência" não é mais que o resultado da "qualidade total" que a empresa exige a si própria; e a "qualidade", por sua vez, consiste no cumprimento integral dum caderno de encargos.
Não se depreenda do que escrevi acima que a empresa é necessariamente uma entidade racional ou que a escola é necessariamente irracional. Tanto a empresa como a escola necessitam de agir racionalmente em função dos pressupostos metafísicos de que partem. O conflito de culturas entre a escola e a empresa resulta de partirem de pressupostos metafísicos diferentes. Mesmo no caso de ambas estarem de saúde e funcionarem bem (mas neste caso nem uma, nem outra precisaria de seguir "modelos"), este conflito seria inevitável.
Se implantarmos numa escola em crise um modelo empresarial saudável, o modelo será rejeitado na mesma. Mas o que se passa de facto é que o modelo empresarial que se quer implantar nas escolas está ele próprio em crise. Tal como as escolas se debatem com o "eduquês", que é o seu problema principal, também as empresas actuais se debatem com uma mescla irracional de crenças e ideologias, um "empresarialês" que ocupa, nas prateleiras das livrarias, as estantes destinadas às "teorias da gestão" (ou "teorias do management", para os mais puristas). É aqui que pontificam os "gurus" como Tom Peters. A mim, nunca me deixa de divertir o facto de estas estantes estarem, em muitas livrarias, junto das estantes dedicadas às "espiritualidades". Tom Peters e Paulo Coelho têm, de facto, muito em comum. Só faltam, para lhes fazer companhia, pensadores da craveira de Ana Benavente, que por certo se sentiria muito melhor junto deles do que nas proximidades dos manuais escolares que ajudou a perpetrar.
O delírio gestionário que está para as empresas como o delírio pedagógico para as escolas aparece caracterizado e analisado por Thomas Frank, ao longo de 49 páginas brilhantes, no capítulo "Casual Day, USA" do seu livro One Market Under God*. O livro merece ser lido na sua totalidade, mas para um professor este capítulo tem um interesse particular pela semelhança do que nele se descreve com a sua própria experiência. Entre os vários paralelismos que se podem estabelecer, há um que me chamou particularmente a atenção: o facto de ambos os discursos, ou ideologias, ou superstições, ou lá o que lhes queiram chamar, se apropriarem da contra-cultura dos anos 60 do século passado para prosseguir fins que nada têm a ver com ela.
Causa terror a ideia que a autoridade educativa, em Portugal como noutros países, está nas mãos de pessoas sem vestígios de cultura humanística mas com as cabeças formatadas, umas por um delírio gestionário, outras por um delírio pedagógico. Causa terror a ideia que estes delírios podem, em vez de se cancelarem reciprocamente, estabelecer uma sinergia infernal, uma follie à deux em que a loucura de um aumenta e reforça a do outro. Causa terror que seja esta gente a determinar o que é uma escola e para que serve, e a decidir o que é um bom professor e por que critérios deve ser avaliado.
*Frank, Thomas. One Market Under God: extreme capitalism, market populism and the end of economic democracy. Londres: Vintage 2002
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
Adenda ao post anterior
Se o modelo de avaliação e progressão a aplicar nas escolas se destina a impor o sobretrabalho, a burocracia, o "eduquês" e a empresarialização, também é verdade que a luta directa contra estes desígnios ajuda a esvaziar o modelo, deslegitimando-o a prazo.
Temos, portanto, vários terrenos de luta possíveis; resta-nos escolher, em cada fase, o que nos for mais favorável. Sem perder de vista os outros, ça va sans dire; não vá o adversário entrincheirar-se em posições inatacáveis.
Temos, portanto, vários terrenos de luta possíveis; resta-nos escolher, em cada fase, o que nos for mais favorável. Sem perder de vista os outros, ça va sans dire; não vá o adversário entrincheirar-se em posições inatacáveis.
Capitulação ou retirada estratégica?
Quando o Ramiro Marques propôs que se descentrasse um pouco a luta dos professores do modelo de avaliação e das carreiras para o centrar mais noutras questões como o sobretrabalho dos professores, a burocracia, o "eduquês" e a empresarialização das escolas, houve muitos colegas nossos que lhe caíram em cima falando em capitulação. Eu acho que o Ramiro tem razão e que o que ele propõe não é uma capitulação, mas sim uma retirada estratégica dum campo de batalha em que estamos de momento em desvantagem (repito, de momento) para outros em que a relação de forças nos é mais favorável.
O bom general escolhe o campo de batalha, não deixa que o inimigo o escolha. Em matéria de avaliação e de carreiras, tudo indica que vamos ficar (de momento, repito) muito aquém dos nossos objectivos; mas não será uma batalha perdida, uma vez que nos terá deixado em melhor posição para vencer outras; o que por sua vez nos deixará em melhor posição quando regressarmos a esta.
Das batalhas que temos pela frente, a do sobretrabalho é a mais difícil porque é a que exige aos professores mais coragem e iniciativa individual. Antes de se desenrolar nos tribunais, onde os professores podem contar com o apoio dos sindicatos, terá que que começar no confronto directo com as direcções das escolas, confronto este em que muitos professores se sentirão sozinhos e destituídos de poder. É provável que só uma minoria entre nesta luta, mas será uma minoria que poderá fazer a diferença. Uma maneira de recrutar mais combatentes será a exigência de indemnizações elevadas, como estão a fazer, com assinalável êxito, muitos dos nossos colegas britânicos. Num artigo posterior tenciono voltar a este tema, propondo um modelo de formulário que poderá servir para desencadear processos de resistência.
No que toca a luta contra o "eduquês", temos várias vantagens do nosso lado. Nenhuma acção de propaganda do governo, por mais sofisticada ou insistente que seja, poderá convencer a maioria da opinião pública portuguesa que os programas são bons e os manuais escolares adequados. O problema, neste ponto, está em que muita gente está convencida de que a culpa de os programas e os manuais serem como são é dos professores; mas neste caso, e ao contrário do que se passa no interior das escolas, os cidadãos terão a oportunidade de "ver para crer".
Também não é difícil mostrar aos cidadãos que uma superstrutura educativa com centenas de organismos e milhares de funcionários a trabalhar fora das escolas é uma aberração que lhes sai cara. E, numa circunstância histórica em que o crash das empresas dot com há dez anos e a crise do subprime de há um ano mostraram que há algo de profundamente errado com os fundamentos do sistema económico, é sempre possível mostrar que o chamado "modelo empresarial" nem para as empresas é bom. Também sobre isto me proponho escrever mais tarde com maior desenvolvimento.
O sobretrabalho dos professores, a burocracia, o "eduquês" e a ideologia empresarial são as bases em que assenta, não só o modelo de avaliação e de carreiras de Maria de Lurdes Rodrigues, mas também o de Isabel Alçada. Minemos estas bases, e quando voltarmos ao actual campo de batalha estaremos em vantagem.
O bom general escolhe o campo de batalha, não deixa que o inimigo o escolha. Em matéria de avaliação e de carreiras, tudo indica que vamos ficar (de momento, repito) muito aquém dos nossos objectivos; mas não será uma batalha perdida, uma vez que nos terá deixado em melhor posição para vencer outras; o que por sua vez nos deixará em melhor posição quando regressarmos a esta.
Das batalhas que temos pela frente, a do sobretrabalho é a mais difícil porque é a que exige aos professores mais coragem e iniciativa individual. Antes de se desenrolar nos tribunais, onde os professores podem contar com o apoio dos sindicatos, terá que que começar no confronto directo com as direcções das escolas, confronto este em que muitos professores se sentirão sozinhos e destituídos de poder. É provável que só uma minoria entre nesta luta, mas será uma minoria que poderá fazer a diferença. Uma maneira de recrutar mais combatentes será a exigência de indemnizações elevadas, como estão a fazer, com assinalável êxito, muitos dos nossos colegas britânicos. Num artigo posterior tenciono voltar a este tema, propondo um modelo de formulário que poderá servir para desencadear processos de resistência.
No que toca a luta contra o "eduquês", temos várias vantagens do nosso lado. Nenhuma acção de propaganda do governo, por mais sofisticada ou insistente que seja, poderá convencer a maioria da opinião pública portuguesa que os programas são bons e os manuais escolares adequados. O problema, neste ponto, está em que muita gente está convencida de que a culpa de os programas e os manuais serem como são é dos professores; mas neste caso, e ao contrário do que se passa no interior das escolas, os cidadãos terão a oportunidade de "ver para crer".
Também não é difícil mostrar aos cidadãos que uma superstrutura educativa com centenas de organismos e milhares de funcionários a trabalhar fora das escolas é uma aberração que lhes sai cara. E, numa circunstância histórica em que o crash das empresas dot com há dez anos e a crise do subprime de há um ano mostraram que há algo de profundamente errado com os fundamentos do sistema económico, é sempre possível mostrar que o chamado "modelo empresarial" nem para as empresas é bom. Também sobre isto me proponho escrever mais tarde com maior desenvolvimento.
O sobretrabalho dos professores, a burocracia, o "eduquês" e a ideologia empresarial são as bases em que assenta, não só o modelo de avaliação e de carreiras de Maria de Lurdes Rodrigues, mas também o de Isabel Alçada. Minemos estas bases, e quando voltarmos ao actual campo de batalha estaremos em vantagem.
segunda-feira, 4 de janeiro de 2010
Ensinar a norma culta da língua
(Este texto foi revisto e modificado às 17:09)
Há algumas semanas, o cronista do New York Times (e prémio Nobel da economia) Paul Krugman teve que negociar com a direcção do jornal a grafia duma palavra. Tinha escrito "alright" no título duma crónica quando no livro de estilo do jornal se consagra a forma "all right". O editor, no uso legítimo das suas competências, substituiu a forma usada pela forma consagrada; e Krugman, em vez de se irritar ou de puxar pelos galões, explicou-se: o seu título aludia a um outro título noutro jornal, e se usasse a forma a que estava contratualmente obrigado a alusão perder-se-ia.
Chegou-se a um compromisso: na edição impressa do jornal apareceria "all right", na edição online permaneceria o "alright".
Os jornais de referência britânicos e americanos levam muito a sério as respectivas normas cultas da sua língua. E ainda bem que assim é: na ausência duma Academia com poderes públicos que fixe a norma culta, esta tem que se basear na autoridade dos grandes lexicógrafos, no rigor dos principais dicionários e nos livros de estilo dos jornais mais prestigiados. Seria impensável um acordo ortográfico entre o Reino Unido e os Estados Unidos da América; mas é inegável a existência de duas normas cultas que se influenciam reciprocamente sem que para isso intervenha qualquer autoridade pública.
O editor, o revisor de texto, defende a liberdade dos homens e a humanização do mundo mesmo que não se dê conta disto. Merece o nosso apreço e a nossa gratidão. A degradação da linguagem é uma estratégia de tiranos. Para saber isto não é preciso ter lido Nineteen Eighty-Four: basta olhar para o nosso canto do mundo e ver a hegemonia do marketing (que é a profissionalização da ambiguidade) nas campanhas eleitorais; ou analisar as duas langues de bois gémeas a que se convencionou chamar "politiquês" e "eduquês", que fazem do vazio de sentido a sua razão de ser.
Ao contrário dos revisores de texto, as autoridades públicas portuguesas parecem apostadas, à semelhança das britânicas, das americanas e das dos outros países da OCDE, em subverter a norma culta da língua e proibir o seu ensino nas escolas.
As justificações apresentadas para isto não escolhem ideologia nem opção política; tanto podem ser "de esquerda" como "de direita". O ensino da norma culta é "elitista"; as pessoas "normais" não falam assim; o uso da norma culta constitui uma crítica implícita aos modos de expressão que os alunos trazem de casa, o que tem efeitos nefastos na sua auto-estima; as variantes "populares" podem ter uma grande riqueza expressiva (o que até é verdade; mas a norma culta é perfeitamente capaz, nestes casos, de integrar estas expressões no seu processo de evolução); o contacto precoce com os jargões profissionais prepara os alunos para o mundo do trabalho (totalmente falso: os jargões profissionais são tantos que é materialmente impossível mostrá-los todos aos alunos; nenhum deles pode ser ensinado sem que se ensine concomitantemente a profissão que lhe corresponde; e por outro lado são fáceis e rápidos de aprender fora da escola para quem una o conhecimento especializado ao domínio da norma culta); as "competências comunicativas" têm que ser ensinadas uma a uma (o que não só é impossível, como inútil: a norma culta engloba uma variedade enorme destas competências e, no que respeita as que não engloba, fornece uma base sólida para a sua aquisição).
Tudo isto tem sido dito e repetido pelos críticos dos programas de Português nos ensinos básico e secundário, mas aplica-se com igual propriedade aos programas de línguas estrangeiras. Num manual de Inglês do 10º ano, o primeiro texto apresentado aos alunos é a letra duma canção, supostamente interessante para todos os adolescentes, escrita num jargão urbano que já estará desactualizado quando os alunos terminarem o seu percurso escolar. Será possível imaginar algo de mais inútil? Mas não viria daqui grande mal ao mundo se fosse possível encontrar, mais adiante neste manual ou em qualquer outro dos manuais oficialmente aprovados, um poema de Tennyson, um conto de Hemingway ou um ensaio de Updike.
E muitos alunos aderem. Já vi os meus comer e pedir mais ao ser-lhes apresentado, por exemplo, o poema Dover Beach de Mathew Arnold. Os "góticos" e os "emos", então, até ficam em êxtase. É claro que isto exige uma aula muito bem preparada: uma coisa destas não pode ser despejada em cima duma turma desprevenida. E é certo também que os alunos mostram considerável relutância em aprender de cor um soneto ou um poema ainda mais pequeno. Mas do que eles estão fartos, mesmo fartos, é de se deparar, ano após ano, nas aulas de Português, Inglês e Francês, com os mesmos temas e as mesmas trivialidades incessantemente repetidas - e sobre as quais, de resto, já sabem mais que o professor ou os autores dos manuais.
Criticamos muito os alunos por dizerem "uma seca". Mas têm razão, é mesmo uma seca: de aula para aula, de disciplina para disciplina, de ano para ano, sempre a mesma coisa, sempre os mesmos temas, sempre a mesma doutrinação politicamente correcta mal embrulhada naquilo que os teóricos da Educação imaginam ser "os interesses dos jovens".
Não há jovens: há pessoas. Umas têm mais idade que outras, é tudo. Mas o que as interessa não depende da idade, ou pelo menos não só da idade. Já encontrei "jovens" que viviam para o Heavy Metal, para a religião Wicca ou para o futebol, e já encontrei quem se dedicasse (às vezes de modo bem efémero, a verdade seja dita) à dança do ventre ou à aprendizagem do Sâncrito. Os nossos alunos são todos diferentes. O estereótipo a que os burocratas da Educação os reduzem é uma mentira e um insulto. Têm uma coisa em comum: o direito ao melhor que esteja ao nosso alcance dar-lhes, e isto inclui a norma culta, não só do Português, mas também das outras línguas que lhes são ensinadas.
Para que de futuro possam exercer em liberdade o seu direito de escolher um ou mais interesses entre o futebol, o rock 'n roll, a filosofia, a dança do ventre, o folclore do Minho, a literatura, as artes, as ciências, as religiões esotéricas, as línguas clássicas, os desportos radicais - ou seja, tudo o que faz parte da vida mesmo que não faça parte do trabalho.
Há algumas semanas, o cronista do New York Times (e prémio Nobel da economia) Paul Krugman teve que negociar com a direcção do jornal a grafia duma palavra. Tinha escrito "alright" no título duma crónica quando no livro de estilo do jornal se consagra a forma "all right". O editor, no uso legítimo das suas competências, substituiu a forma usada pela forma consagrada; e Krugman, em vez de se irritar ou de puxar pelos galões, explicou-se: o seu título aludia a um outro título noutro jornal, e se usasse a forma a que estava contratualmente obrigado a alusão perder-se-ia.
Chegou-se a um compromisso: na edição impressa do jornal apareceria "all right", na edição online permaneceria o "alright".
Os jornais de referência britânicos e americanos levam muito a sério as respectivas normas cultas da sua língua. E ainda bem que assim é: na ausência duma Academia com poderes públicos que fixe a norma culta, esta tem que se basear na autoridade dos grandes lexicógrafos, no rigor dos principais dicionários e nos livros de estilo dos jornais mais prestigiados. Seria impensável um acordo ortográfico entre o Reino Unido e os Estados Unidos da América; mas é inegável a existência de duas normas cultas que se influenciam reciprocamente sem que para isso intervenha qualquer autoridade pública.
O editor, o revisor de texto, defende a liberdade dos homens e a humanização do mundo mesmo que não se dê conta disto. Merece o nosso apreço e a nossa gratidão. A degradação da linguagem é uma estratégia de tiranos. Para saber isto não é preciso ter lido Nineteen Eighty-Four: basta olhar para o nosso canto do mundo e ver a hegemonia do marketing (que é a profissionalização da ambiguidade) nas campanhas eleitorais; ou analisar as duas langues de bois gémeas a que se convencionou chamar "politiquês" e "eduquês", que fazem do vazio de sentido a sua razão de ser.
Ao contrário dos revisores de texto, as autoridades públicas portuguesas parecem apostadas, à semelhança das britânicas, das americanas e das dos outros países da OCDE, em subverter a norma culta da língua e proibir o seu ensino nas escolas.
As justificações apresentadas para isto não escolhem ideologia nem opção política; tanto podem ser "de esquerda" como "de direita". O ensino da norma culta é "elitista"; as pessoas "normais" não falam assim; o uso da norma culta constitui uma crítica implícita aos modos de expressão que os alunos trazem de casa, o que tem efeitos nefastos na sua auto-estima; as variantes "populares" podem ter uma grande riqueza expressiva (o que até é verdade; mas a norma culta é perfeitamente capaz, nestes casos, de integrar estas expressões no seu processo de evolução); o contacto precoce com os jargões profissionais prepara os alunos para o mundo do trabalho (totalmente falso: os jargões profissionais são tantos que é materialmente impossível mostrá-los todos aos alunos; nenhum deles pode ser ensinado sem que se ensine concomitantemente a profissão que lhe corresponde; e por outro lado são fáceis e rápidos de aprender fora da escola para quem una o conhecimento especializado ao domínio da norma culta); as "competências comunicativas" têm que ser ensinadas uma a uma (o que não só é impossível, como inútil: a norma culta engloba uma variedade enorme destas competências e, no que respeita as que não engloba, fornece uma base sólida para a sua aquisição).
Tudo isto tem sido dito e repetido pelos críticos dos programas de Português nos ensinos básico e secundário, mas aplica-se com igual propriedade aos programas de línguas estrangeiras. Num manual de Inglês do 10º ano, o primeiro texto apresentado aos alunos é a letra duma canção, supostamente interessante para todos os adolescentes, escrita num jargão urbano que já estará desactualizado quando os alunos terminarem o seu percurso escolar. Será possível imaginar algo de mais inútil? Mas não viria daqui grande mal ao mundo se fosse possível encontrar, mais adiante neste manual ou em qualquer outro dos manuais oficialmente aprovados, um poema de Tennyson, um conto de Hemingway ou um ensaio de Updike.
E muitos alunos aderem. Já vi os meus comer e pedir mais ao ser-lhes apresentado, por exemplo, o poema Dover Beach de Mathew Arnold. Os "góticos" e os "emos", então, até ficam em êxtase. É claro que isto exige uma aula muito bem preparada: uma coisa destas não pode ser despejada em cima duma turma desprevenida. E é certo também que os alunos mostram considerável relutância em aprender de cor um soneto ou um poema ainda mais pequeno. Mas do que eles estão fartos, mesmo fartos, é de se deparar, ano após ano, nas aulas de Português, Inglês e Francês, com os mesmos temas e as mesmas trivialidades incessantemente repetidas - e sobre as quais, de resto, já sabem mais que o professor ou os autores dos manuais.
Criticamos muito os alunos por dizerem "uma seca". Mas têm razão, é mesmo uma seca: de aula para aula, de disciplina para disciplina, de ano para ano, sempre a mesma coisa, sempre os mesmos temas, sempre a mesma doutrinação politicamente correcta mal embrulhada naquilo que os teóricos da Educação imaginam ser "os interesses dos jovens".
Não há jovens: há pessoas. Umas têm mais idade que outras, é tudo. Mas o que as interessa não depende da idade, ou pelo menos não só da idade. Já encontrei "jovens" que viviam para o Heavy Metal, para a religião Wicca ou para o futebol, e já encontrei quem se dedicasse (às vezes de modo bem efémero, a verdade seja dita) à dança do ventre ou à aprendizagem do Sâncrito. Os nossos alunos são todos diferentes. O estereótipo a que os burocratas da Educação os reduzem é uma mentira e um insulto. Têm uma coisa em comum: o direito ao melhor que esteja ao nosso alcance dar-lhes, e isto inclui a norma culta, não só do Português, mas também das outras línguas que lhes são ensinadas.
Para que de futuro possam exercer em liberdade o seu direito de escolher um ou mais interesses entre o futebol, o rock 'n roll, a filosofia, a dança do ventre, o folclore do Minho, a literatura, as artes, as ciências, as religiões esotéricas, as línguas clássicas, os desportos radicais - ou seja, tudo o que faz parte da vida mesmo que não faça parte do trabalho.
Fora com as coleiras!
A coleira quebra o fluir das linhas com que um gato se desenha. (Nós não desenhamos os gatos: são eles que se desenham a si próprios). Talvez, nalguns casos, a coleira o faça mais bonito; mais belo, não o faz com certeza.
Não sei se esta distinção entre o bonito e o belo é idiossincrasia minha ou se é algo que partilho, sem saber, com muitas outras pessoas. Mas sei que a diferença é muito real para mim.
Deixando de parte a beleza que os homens criam (o quarteto Opus 132 de Beethoven, a mesquita de Córdova, o número zero), direi que as três coisas naturais mais belas do mundo são um gato, uma árvore e uma mulher; e nem sempre se trata dum gato bonito, duma árvore bonita ou duma mulher bonita.
A beleza é outra coisa.
Um gato com coleira é um pouco de riqueza que o mundo perde - ou pelo menos que não ganha. Uma árvore podada com todo o respeito pela geometria, mas sem respeito nenhum pela direcção natural do seu crescimento, pode ser muito bonita mas não deixa por isso de ser um pouco monstruosa. Também uma mulher de saltos altos pode ficar bonita, muito bonita mesmo; isto é suficiente para muitas delas (e para muitos de nós, é claro); mas só uma mulher descalça é verdadeiramente bela: como um gato sem coleira ou uma árvore sem poda.
Não sei se esta distinção entre o bonito e o belo é idiossincrasia minha ou se é algo que partilho, sem saber, com muitas outras pessoas. Mas sei que a diferença é muito real para mim.
Deixando de parte a beleza que os homens criam (o quarteto Opus 132 de Beethoven, a mesquita de Córdova, o número zero), direi que as três coisas naturais mais belas do mundo são um gato, uma árvore e uma mulher; e nem sempre se trata dum gato bonito, duma árvore bonita ou duma mulher bonita.
A beleza é outra coisa.
Um gato com coleira é um pouco de riqueza que o mundo perde - ou pelo menos que não ganha. Uma árvore podada com todo o respeito pela geometria, mas sem respeito nenhum pela direcção natural do seu crescimento, pode ser muito bonita mas não deixa por isso de ser um pouco monstruosa. Também uma mulher de saltos altos pode ficar bonita, muito bonita mesmo; isto é suficiente para muitas delas (e para muitos de nós, é claro); mas só uma mulher descalça é verdadeiramente bela: como um gato sem coleira ou uma árvore sem poda.
domingo, 3 de janeiro de 2010
Ainda sobre as corporações
Um leitor, Leopoldo Mesquita, escreveu uma crítica dura mas muito pertinente ao meu post anterior. Transcrevo aqui o seu comentário e a minha resposta:
Vou ser propositadamente duro para com o texto do José Luís Sarmento, uma vez que a dureza do combate dos professores na situação presente assim o exige. Não conheço o JLS e de forma alguma envolvo a sua pessoa nas considerações que a seguir farei.
As teses gerais que o texto em apreço veicula são as que foram elaboradas pelos teóricos burgueses e liberais dos séculos XVIII/XIX e correspondem à necessidade de afirmação de uma nova ordem social que então emergia, contra os poderes então vigentes, protectores do que por vezes se designa por "antigo regime". Quando, já fora desse contexto, essas teses são utilizadas como instrumento de luta política, o "populismo" ocupa normalmente o lugar da acção esclarecida de quem o faz. Um exemplo extremo: a ideologia dos regimes fascistas e nacional-socialistas, que se afirmou contra a mesma "plutocracia" que o JLS toma como alvo no seu texto, mas que era na realidade um instrumento das classes burguesas dominantes nos países em que surgiu, e cujo ideário se baseava também na oposição entre "corporações boas" e "corporações más", as primeiras tendo como valores supremos o "trabalho", o "esforço" e o "mérito", permanecendo as segundas, ainda segundo esse ideário, sempre acobertadas pela protecção ilegítima e imoral dos poderes instituídos.
Os professores portugueses estão actualmente envolvidos numa tremenda luta política. O JLS propõe no seu texto uma solução (ou pelo menos o seu princípio) para essa luta política: a criação de uma Ordem dos Professores. O problema aqui não está na proposta em si, uma vez que a dita Ordem tanto pode ser um instrumento de defesa da profissão docente e da educação pública, como pode ser um instrumento do Governo contra a maioria da classe docente e pela imposição das suas políticas - tudo depende das ideias, da filosofia e dos programas de acção que presidirem ao seu funcionamento. O verdadeiro problema que existe com esta proposta, na forma como ela surge pela pena de JLS, é que ela contribui para encerrar os professores dentro do seu mundo específico e faz crer que é no interior desse mundo específico que se devem procurar as soluções para a presente crise educativa. Se a proposta Ordem dos Professores for criada com estes princípios, ela mimetizará os actuais sindicatos de professores, cuja acção enferma precisamente desse erro capital, que é o de querer apartar os professores das demais classes trabalhadoras em Portugal, numa altura em que os problemas da nossa classe são já, em larga medida, comuns aos que enfrentam essas mesmas classes trabalhadoras.
Os professores enfrentam actualmente um processo que visa impor na educação pública uma transformação de tipo capitalista. Todas as questões de natureza deontológica, pedagógica e profissional com que nos enfrentamos têm que ser dirimidas na resistência a este processo e na construção de uma alternativa ao mesmo. As forças e os interesses que estão por trás daquela transformação, avocam para si a capacidade e a legitimidade para definir o que devem ser aquelas deontologia, pedagogia e profissionalidade - as "boas práticas", ou, como dizem os seus mentores, "what works". São essas forças que estão por trás e impulsionam as políticas educativas do Governo Sócrates. Limitem-se os horizontes do combate e das pretensões actuais dos professores portugueses à criação de uma ordem profissional, encarregue de definir os princípios deontológicos, pedagógicos e profissionais supostamente ideais para a classe dos professores - como resulta do último parágrafo do texto de JLS-, e estará prestado, a meu ver, o melhor serviço possível às pretensões contidas naquelas políticas.
Leopoldo Mesquita
Caro Leopoldo Mesquita:
Começo por lhe agradecer a sua crítica, que levanta várias questões que para mim são muito interessantes.
Comecemos pela questão do "antigo regime". Se bem o compreendi, você entende que, estando este definitivamente ultrapassado, já não se justificam as teses elaboradas contra os poderes que o defendiam. Do que eu discordo aqui é o seu pressuposto: a ordem feudal tem, a meu ver, raízes profundas naquilo a que Jung chamaria o "inconsciente colectivo". É um regime por assim dizer "natural" - em todo o caso mais "natural" que a construção altamente abstracta que é o Estado Moderno - e pode portanto ressurgir em qualquer período histórico. O feudalismo está adormecido, mas não está morto.
É isto que está a acontecer desde há trinta anos no mundo ocidental. Thatcher e Reagan prometeram-nos que do refluxo do Estado resultaria a emergência do Indivíduo em todo o esplendor da sua liberdade; o que está a emergir em vez disso (como era de esperar) é a prepotência dos novos Barões.
Se o refluxo do Estado tivesse sido acompanhado duma afirmação poderosa da Sociedade Civil - incluindo necessariamente as "corporações" - talvez o Thatcherismo, o Reaganismo e a Terceira Via de Blair, Clinton e Sócrates não se tivessem revelado a fraude que está hoje à vista de quem quiser ver. Mas a Sociedade Civil, em vez de se fortalecer, enfraqueceu.
Olhemos para os "novos bilionários" americanos - Bill Gates, Warren Buffett - para o seu estilo de vida "popular" e "modesto", para o modo ostensivo como bebem Coca-Cola em vez de vinho e comem hamburguers em vez de caviar; olhemos para a história que contam e recontam das suas origens humildes (por vezes reais, por vezes nem tanto) - e veremos, lá onde o americano comum vê qualquer coisa de novo e maravilhoso, uma cena que para nós, europeus, é velha de séculos: o grande senhor que se sente perfeitamente à-vontade na choupana do camponês e se alia com ele contra o artesão, o letrado, o habitante das cidades; contra o "vilão", para resumir. Hoje o vilão somos nós.
A sociedade americana não tem anti-corpos contra uma recaída no feudalismo. As sociedades europeias têm estes anti-corpos; só não sabemos se são suficientemente fortes. Mais importante e encorajador do que a sua existência é o facto de na Europa, ao contrário do que acontece na América, os novos ricos não terem (ainda) poder suficiente para incluir o dinheiro velho no rol dos seus inimigos, conjuntamente com os sindicatos, os intelectuais, os trabalhadores e as classes profissionais.
Ou seja: na América, os novos bilionários podem participar alegremente, e participam, na denúncia dos plutocratas - basta-lhes arranjar maneira, simbólica que seja, de não se incluírem neste número. É a isto que Thomas Frank chama "populismo de mercado".
Há outros populismos, é claro. Dou-lhe razão nisto. E também lhe dou razão quando dá a luta que o nazismo travou - ou disse que travou - contra a plutocracia como um caso de populismo. Mas isto não legitima a plutocracia: os inimigos dos nossos inimigos não são necessariamente nossos amigos.
Do ideário do Nazismo fazia parte, com efeito, uma distinção entre "corporações boas" e "corporações más", mas o Leopoldo Mesquita erra quando escreve que eu concordo com essa distinção (mas pode ser que não queira dizer isto; o seu texto, nesta parte, não está bem claro). Quero eu então deixar claro que me oponho a esta distinção; e se a refiro é para a criticar, como parte que também é do ideário neoliberal, sobretudo na sua variante conhecida por "Terceira Via".
Nota: depois de reler o meu texto e o do Leopoldo Mesquita, verifico que afinal o que não está bem claro é o meu. É possível depreender dele, com efeito, que considero "boas" algumas corporações, como os sindicatos e as ordens profissionais, e "más" outras, como a dos políticos ou a dos empresários.
Não considero "boa" ou "má" nenhuma corporação. As corporações fazem parte duma sociedade civil saudável e sem elas o Estado é uma estrutura formal e vazia. O que eu critico é o facto de algumas corporações - as que o poder político e económico considera "boas" - não se assumirem pelo nome; e critico a ideologia neoliberal por considerar "más" todas as corporações depois de excluir deste número as que lhe interessa favorecer.
Vou ser propositadamente duro para com o texto do José Luís Sarmento, uma vez que a dureza do combate dos professores na situação presente assim o exige. Não conheço o JLS e de forma alguma envolvo a sua pessoa nas considerações que a seguir farei.
As teses gerais que o texto em apreço veicula são as que foram elaboradas pelos teóricos burgueses e liberais dos séculos XVIII/XIX e correspondem à necessidade de afirmação de uma nova ordem social que então emergia, contra os poderes então vigentes, protectores do que por vezes se designa por "antigo regime". Quando, já fora desse contexto, essas teses são utilizadas como instrumento de luta política, o "populismo" ocupa normalmente o lugar da acção esclarecida de quem o faz. Um exemplo extremo: a ideologia dos regimes fascistas e nacional-socialistas, que se afirmou contra a mesma "plutocracia" que o JLS toma como alvo no seu texto, mas que era na realidade um instrumento das classes burguesas dominantes nos países em que surgiu, e cujo ideário se baseava também na oposição entre "corporações boas" e "corporações más", as primeiras tendo como valores supremos o "trabalho", o "esforço" e o "mérito", permanecendo as segundas, ainda segundo esse ideário, sempre acobertadas pela protecção ilegítima e imoral dos poderes instituídos.
Os professores portugueses estão actualmente envolvidos numa tremenda luta política. O JLS propõe no seu texto uma solução (ou pelo menos o seu princípio) para essa luta política: a criação de uma Ordem dos Professores. O problema aqui não está na proposta em si, uma vez que a dita Ordem tanto pode ser um instrumento de defesa da profissão docente e da educação pública, como pode ser um instrumento do Governo contra a maioria da classe docente e pela imposição das suas políticas - tudo depende das ideias, da filosofia e dos programas de acção que presidirem ao seu funcionamento. O verdadeiro problema que existe com esta proposta, na forma como ela surge pela pena de JLS, é que ela contribui para encerrar os professores dentro do seu mundo específico e faz crer que é no interior desse mundo específico que se devem procurar as soluções para a presente crise educativa. Se a proposta Ordem dos Professores for criada com estes princípios, ela mimetizará os actuais sindicatos de professores, cuja acção enferma precisamente desse erro capital, que é o de querer apartar os professores das demais classes trabalhadoras em Portugal, numa altura em que os problemas da nossa classe são já, em larga medida, comuns aos que enfrentam essas mesmas classes trabalhadoras.
Os professores enfrentam actualmente um processo que visa impor na educação pública uma transformação de tipo capitalista. Todas as questões de natureza deontológica, pedagógica e profissional com que nos enfrentamos têm que ser dirimidas na resistência a este processo e na construção de uma alternativa ao mesmo. As forças e os interesses que estão por trás daquela transformação, avocam para si a capacidade e a legitimidade para definir o que devem ser aquelas deontologia, pedagogia e profissionalidade - as "boas práticas", ou, como dizem os seus mentores, "what works". São essas forças que estão por trás e impulsionam as políticas educativas do Governo Sócrates. Limitem-se os horizontes do combate e das pretensões actuais dos professores portugueses à criação de uma ordem profissional, encarregue de definir os princípios deontológicos, pedagógicos e profissionais supostamente ideais para a classe dos professores - como resulta do último parágrafo do texto de JLS-, e estará prestado, a meu ver, o melhor serviço possível às pretensões contidas naquelas políticas.
Leopoldo Mesquita
Caro Leopoldo Mesquita:
Começo por lhe agradecer a sua crítica, que levanta várias questões que para mim são muito interessantes.
Comecemos pela questão do "antigo regime". Se bem o compreendi, você entende que, estando este definitivamente ultrapassado, já não se justificam as teses elaboradas contra os poderes que o defendiam. Do que eu discordo aqui é o seu pressuposto: a ordem feudal tem, a meu ver, raízes profundas naquilo a que Jung chamaria o "inconsciente colectivo". É um regime por assim dizer "natural" - em todo o caso mais "natural" que a construção altamente abstracta que é o Estado Moderno - e pode portanto ressurgir em qualquer período histórico. O feudalismo está adormecido, mas não está morto.
É isto que está a acontecer desde há trinta anos no mundo ocidental. Thatcher e Reagan prometeram-nos que do refluxo do Estado resultaria a emergência do Indivíduo em todo o esplendor da sua liberdade; o que está a emergir em vez disso (como era de esperar) é a prepotência dos novos Barões.
Se o refluxo do Estado tivesse sido acompanhado duma afirmação poderosa da Sociedade Civil - incluindo necessariamente as "corporações" - talvez o Thatcherismo, o Reaganismo e a Terceira Via de Blair, Clinton e Sócrates não se tivessem revelado a fraude que está hoje à vista de quem quiser ver. Mas a Sociedade Civil, em vez de se fortalecer, enfraqueceu.
Olhemos para os "novos bilionários" americanos - Bill Gates, Warren Buffett - para o seu estilo de vida "popular" e "modesto", para o modo ostensivo como bebem Coca-Cola em vez de vinho e comem hamburguers em vez de caviar; olhemos para a história que contam e recontam das suas origens humildes (por vezes reais, por vezes nem tanto) - e veremos, lá onde o americano comum vê qualquer coisa de novo e maravilhoso, uma cena que para nós, europeus, é velha de séculos: o grande senhor que se sente perfeitamente à-vontade na choupana do camponês e se alia com ele contra o artesão, o letrado, o habitante das cidades; contra o "vilão", para resumir. Hoje o vilão somos nós.
A sociedade americana não tem anti-corpos contra uma recaída no feudalismo. As sociedades europeias têm estes anti-corpos; só não sabemos se são suficientemente fortes. Mais importante e encorajador do que a sua existência é o facto de na Europa, ao contrário do que acontece na América, os novos ricos não terem (ainda) poder suficiente para incluir o dinheiro velho no rol dos seus inimigos, conjuntamente com os sindicatos, os intelectuais, os trabalhadores e as classes profissionais.
Ou seja: na América, os novos bilionários podem participar alegremente, e participam, na denúncia dos plutocratas - basta-lhes arranjar maneira, simbólica que seja, de não se incluírem neste número. É a isto que Thomas Frank chama "populismo de mercado".
Há outros populismos, é claro. Dou-lhe razão nisto. E também lhe dou razão quando dá a luta que o nazismo travou - ou disse que travou - contra a plutocracia como um caso de populismo. Mas isto não legitima a plutocracia: os inimigos dos nossos inimigos não são necessariamente nossos amigos.
Do ideário do Nazismo fazia parte, com efeito, uma distinção entre "corporações boas" e "corporações más", mas o Leopoldo Mesquita erra quando escreve que eu concordo com essa distinção (mas pode ser que não queira dizer isto; o seu texto, nesta parte, não está bem claro). Quero eu então deixar claro que me oponho a esta distinção; e se a refiro é para a criticar, como parte que também é do ideário neoliberal, sobretudo na sua variante conhecida por "Terceira Via".
Nota: depois de reler o meu texto e o do Leopoldo Mesquita, verifico que afinal o que não está bem claro é o meu. É possível depreender dele, com efeito, que considero "boas" algumas corporações, como os sindicatos e as ordens profissionais, e "más" outras, como a dos políticos ou a dos empresários.
Não considero "boa" ou "má" nenhuma corporação. As corporações fazem parte duma sociedade civil saudável e sem elas o Estado é uma estrutura formal e vazia. O que eu critico é o facto de algumas corporações - as que o poder político e económico considera "boas" - não se assumirem pelo nome; e critico a ideologia neoliberal por considerar "más" todas as corporações depois de excluir deste número as que lhe interessa favorecer.
sábado, 2 de janeiro de 2010
Ordem dos Professores: um imperativo nacional
O Estado tem o monopólio da coacção. Todos, ou quase todos, lho reconhecemos. Não decorre daqui que tenha o monopólio da legitimidade, como é frequente ver afirmado na blogosfera, nos media e nas declarações dos políticos. Nenhum dos grandes pensadores da Democracia reconhece ao Estado este monopólio, nem ele está consagrado na Constituição da República Portuguesa (ou, que eu saiba, em qualquer Constituição de qualquer país democrático).
Vital Moreira sabe isto melhor que ninguém. Quando afirmou, a propósito da luta dos professores, que o Governo é que define o bem comum, traiu a probidade intelectual e académica a que estava obrigado em troca da migalha de poder político de que agora desfruta no Parlamento Europeu.
Não é preciso um grande esforço da imaginação para dar exemplo de legitimidades que não cabem ao Estado.
Desde logo, a que decorre da realidade dos factos. Quando a Assembleia legislativa do Texas votou a proposta de atribuir a "pi" o valor de 3,0 (foi derrotada), não estava a exercer um poder legítimo, pese embora o sufrágio que a elegeu: a vontade expressa das maiorias eleitorais nunca é um cheque em branco, confere antes um mandato que tem o seu conteúdo e os seus limites. Legítima, sim, seria a acção de um matemático texano que continuasse, a despeito da lei e ainda que sozinho, a procurar mais casas decimais para o valor de "pi"; ou a de um engenheiro texano que definisse este valor até à casa decimal correspondente ao grau de exactidão exigida pelo trabalho que tivesse entre mãos. A Assembleia Legislativa podia achar necessário para o bem comum facilitar deste modo o ensino da geometria nas escolas; mas o engenheiro sabe que a construção correcta duma escada em caracol também está no âmbito do interesse geral.
Este conflito de legitimidades é o tema principal de Nineteen Eighty-Four. A personagem principal pensa que tem o direito de acreditar que dois mais dois são quatro; o Estado reivindica para si o direito de fazer os seus súbditos acreditar - e exige-lhes que sejam sinceros nesta crença - que dois mais dois são três, ou cinco, ou seja o que for que mais lhe convenha de momento. Na vida real nenhum Estado, dispense ele ou não as formalidades do processo democrático, tem esta legitimidade. Tanto Winston Smith como o engenheiro acima postulado têm razão, mesmo que a afirmem contra todos os outros.
Outra legitimidade que não pertence ao Estado é a que decorre dos direitos de associação e de expressão. Se os cidadãos se associam, ou se pronunciam sobre as políticas dos governos, é para produzir efeitos na comunidade - ou seja, para exercer um poder que todos os Estados democráticos reconhecem explicitamente, nas suas Constituições, como legítimo. A atitude dum governante que diz implicitamente aos governados "falem para aí à vontade, manifestem-se no número que quiserem, mas não esperem que alguém os ouça" é uma subversão da Constituição e uma perversão da Democracia.
Há, também, as várias legitimidades profissionais. Tem que as haver: um médico, um engenheiro, um professor exercem actividades que se repercutem directamente na vida e no bem-estar dos seus concidadãos. Ou seja, têm poder; e o que legitima este poder é a autoridade que lhes advém do saber. Este poder confere-lhes responsabilidades específicas que exigem uma medida correspondente de legitimidade, e esta não lhes pode ser conferida pelos protocolos da democracia formal.
O sufrágio eleitoral, que é o mais importante destes protocolos, não tem a virtude mágica de tornar os eleitos especialistas em tudo. Os eleitores podem conferir aos políticos um mandato que lhes permita determinar o que é uma boa prática clínica ou pedagógica, mas não lhes podem conferir o conhecimento especializado necessário a que esta definição seja técnica e cientificamente correcta e redunde efectivamente na realização do maior bem do maior número. Em matérias para as quais sejam relevantes conhecimentos especializados, a decisão não se fundamenta apenas na legitimidade política stricto sensu, mas também na convergência desta com legitimidades doutra ordem (ainda que a legitimidade política deva prevalecer; mas uma legitimidade política que não reconheça outras legitimidades depressa deixa de prevalecer e acaba por se auto-destruir).
É esta convergência que tem estado em causa no discurso político e mediático da última década. A confusão, propositada ou não, entre estado democrático e sociedade democrática é a base da qual se parte para o ataque às "corporações", apresentadas repetidamente à opinião pública como grémios de privilegiados, obsessivamente focados na protecção dos seus interesses particulares em detrimento do bem comum e teimosamente opostos ao progresso e à mudança. Este discurso provém sobretudo da classe política e das agremiações patronais, que são também corporações, mas que, por qualquer razão que nunca é explicada, não têm esse nome nem declaram outros interesses que não sejam os do cidadão comum.
Esta dicotomia entre as corporações diabólicas, por um lado, e por outro as corporações angélicas releva, como é evidente, do mais puro populismo. Todas as corporações defendem, legitimamente, os interesses dos seus membros; mas por outro lado todas elas têm a sua visão do bem comum e as suas propostas sobre a melhor maneira de o prosseguir. O interesse próprio da corporação dos políticos está em obter para os seus membros o monopólio da legitimidade; o interesse próprio da corporação patronal está em obter o máximo de poder político. Em ambos os casos a estratégia passa necessariamente por uma guerra a todas as instituições da sociedade civil que não estejam dependentes da elite política e empresarial e não defendam os seus interesses.
Entre as corporações angélicas a que não se dá o nome de corporações, há que referir uma terceira: a dos economistas, ou melhor, a dos economistas duma certa tendência, que são quase os únicos que têm acesso aos mass media e aos corredores do poder. O seu papel na guerra do Estado contra a Sociedade parece ser convencer-nos de que a verdadeira prosperidade consiste em ganharmos cada vez menos trabalhando cada vez mais; que a verdadeira igualdade está na desigualdade extrema; e que a elite dominante não é uma elite, mas sim parte um grupo, ligeiramente mais bem-sucedido, de gente igualzinha a nós.
É assim que vemos a elite da política e dos negócios a usar um discurso anti-elitista como justificação moral da sua guerra contra a sociedade. A verdadeira elite não são eles, por mais que vivam no luxo e no consumo conspícuo: são todos aqueles cujo trabalho, cujo estudo e cujo esforço visaram outros fins - pessoais e sociais - que não os da estrita e imediata utilidade económica, e que, apesar desta inadmissível heterodoxia, ousam exigem ver reconhecido e recompensado o mérito atinente ao seu trabalho, estudo e esforço.
Deste anti-elitismo populista - Thomas Frank, no seu livro One Market Under God, chama-lhe "populismo de mercado" - o salto é muito curto para o anti-intelectualismo, um anti-intelectualismo tanto mais eficaz quanto tem raízes profundas na mentalidade portuguesa, que respeita muito pouco a autoridade de quem sabe mas se inclina até tocar com a testa no chão perante o domínio de quem manda.
É este o caldo de cultura em que se têm desenvolvido as nossas políticas educativas nos últimos trinta anos. Os resultados estão à vista de todos e prejudicam todos. É por isso que o País - leia-se, a sociedade civil portuguesa - tem absoluta necessidade duma Ordem dos Professores, que em termos de utilidade pública tem uma importância só equiparável à Ordem dos Médicos. É claro que uma Ordem dos Professores defenderá - legitimamente, diga-se já - o interesse dos professores em verem melhorado o seu estatuto social e profissional. Mas defenderá também o interesse das escolas, que é dar o mundo a compreender às novas gerações e não imbecilizá-las, como o poder político as quer obrigar a fazer. E será uma arma a acrescentar às outras de que a sociedade civil já dispõe para limitar o poder totalitário da plutocracia que a oprime.
Vital Moreira sabe isto melhor que ninguém. Quando afirmou, a propósito da luta dos professores, que o Governo é que define o bem comum, traiu a probidade intelectual e académica a que estava obrigado em troca da migalha de poder político de que agora desfruta no Parlamento Europeu.
Não é preciso um grande esforço da imaginação para dar exemplo de legitimidades que não cabem ao Estado.
Desde logo, a que decorre da realidade dos factos. Quando a Assembleia legislativa do Texas votou a proposta de atribuir a "pi" o valor de 3,0 (foi derrotada), não estava a exercer um poder legítimo, pese embora o sufrágio que a elegeu: a vontade expressa das maiorias eleitorais nunca é um cheque em branco, confere antes um mandato que tem o seu conteúdo e os seus limites. Legítima, sim, seria a acção de um matemático texano que continuasse, a despeito da lei e ainda que sozinho, a procurar mais casas decimais para o valor de "pi"; ou a de um engenheiro texano que definisse este valor até à casa decimal correspondente ao grau de exactidão exigida pelo trabalho que tivesse entre mãos. A Assembleia Legislativa podia achar necessário para o bem comum facilitar deste modo o ensino da geometria nas escolas; mas o engenheiro sabe que a construção correcta duma escada em caracol também está no âmbito do interesse geral.
Este conflito de legitimidades é o tema principal de Nineteen Eighty-Four. A personagem principal pensa que tem o direito de acreditar que dois mais dois são quatro; o Estado reivindica para si o direito de fazer os seus súbditos acreditar - e exige-lhes que sejam sinceros nesta crença - que dois mais dois são três, ou cinco, ou seja o que for que mais lhe convenha de momento. Na vida real nenhum Estado, dispense ele ou não as formalidades do processo democrático, tem esta legitimidade. Tanto Winston Smith como o engenheiro acima postulado têm razão, mesmo que a afirmem contra todos os outros.
Outra legitimidade que não pertence ao Estado é a que decorre dos direitos de associação e de expressão. Se os cidadãos se associam, ou se pronunciam sobre as políticas dos governos, é para produzir efeitos na comunidade - ou seja, para exercer um poder que todos os Estados democráticos reconhecem explicitamente, nas suas Constituições, como legítimo. A atitude dum governante que diz implicitamente aos governados "falem para aí à vontade, manifestem-se no número que quiserem, mas não esperem que alguém os ouça" é uma subversão da Constituição e uma perversão da Democracia.
Há, também, as várias legitimidades profissionais. Tem que as haver: um médico, um engenheiro, um professor exercem actividades que se repercutem directamente na vida e no bem-estar dos seus concidadãos. Ou seja, têm poder; e o que legitima este poder é a autoridade que lhes advém do saber. Este poder confere-lhes responsabilidades específicas que exigem uma medida correspondente de legitimidade, e esta não lhes pode ser conferida pelos protocolos da democracia formal.
O sufrágio eleitoral, que é o mais importante destes protocolos, não tem a virtude mágica de tornar os eleitos especialistas em tudo. Os eleitores podem conferir aos políticos um mandato que lhes permita determinar o que é uma boa prática clínica ou pedagógica, mas não lhes podem conferir o conhecimento especializado necessário a que esta definição seja técnica e cientificamente correcta e redunde efectivamente na realização do maior bem do maior número. Em matérias para as quais sejam relevantes conhecimentos especializados, a decisão não se fundamenta apenas na legitimidade política stricto sensu, mas também na convergência desta com legitimidades doutra ordem (ainda que a legitimidade política deva prevalecer; mas uma legitimidade política que não reconheça outras legitimidades depressa deixa de prevalecer e acaba por se auto-destruir).
É esta convergência que tem estado em causa no discurso político e mediático da última década. A confusão, propositada ou não, entre estado democrático e sociedade democrática é a base da qual se parte para o ataque às "corporações", apresentadas repetidamente à opinião pública como grémios de privilegiados, obsessivamente focados na protecção dos seus interesses particulares em detrimento do bem comum e teimosamente opostos ao progresso e à mudança. Este discurso provém sobretudo da classe política e das agremiações patronais, que são também corporações, mas que, por qualquer razão que nunca é explicada, não têm esse nome nem declaram outros interesses que não sejam os do cidadão comum.
Esta dicotomia entre as corporações diabólicas, por um lado, e por outro as corporações angélicas releva, como é evidente, do mais puro populismo. Todas as corporações defendem, legitimamente, os interesses dos seus membros; mas por outro lado todas elas têm a sua visão do bem comum e as suas propostas sobre a melhor maneira de o prosseguir. O interesse próprio da corporação dos políticos está em obter para os seus membros o monopólio da legitimidade; o interesse próprio da corporação patronal está em obter o máximo de poder político. Em ambos os casos a estratégia passa necessariamente por uma guerra a todas as instituições da sociedade civil que não estejam dependentes da elite política e empresarial e não defendam os seus interesses.
Entre as corporações angélicas a que não se dá o nome de corporações, há que referir uma terceira: a dos economistas, ou melhor, a dos economistas duma certa tendência, que são quase os únicos que têm acesso aos mass media e aos corredores do poder. O seu papel na guerra do Estado contra a Sociedade parece ser convencer-nos de que a verdadeira prosperidade consiste em ganharmos cada vez menos trabalhando cada vez mais; que a verdadeira igualdade está na desigualdade extrema; e que a elite dominante não é uma elite, mas sim parte um grupo, ligeiramente mais bem-sucedido, de gente igualzinha a nós.
É assim que vemos a elite da política e dos negócios a usar um discurso anti-elitista como justificação moral da sua guerra contra a sociedade. A verdadeira elite não são eles, por mais que vivam no luxo e no consumo conspícuo: são todos aqueles cujo trabalho, cujo estudo e cujo esforço visaram outros fins - pessoais e sociais - que não os da estrita e imediata utilidade económica, e que, apesar desta inadmissível heterodoxia, ousam exigem ver reconhecido e recompensado o mérito atinente ao seu trabalho, estudo e esforço.
Deste anti-elitismo populista - Thomas Frank, no seu livro One Market Under God, chama-lhe "populismo de mercado" - o salto é muito curto para o anti-intelectualismo, um anti-intelectualismo tanto mais eficaz quanto tem raízes profundas na mentalidade portuguesa, que respeita muito pouco a autoridade de quem sabe mas se inclina até tocar com a testa no chão perante o domínio de quem manda.
É este o caldo de cultura em que se têm desenvolvido as nossas políticas educativas nos últimos trinta anos. Os resultados estão à vista de todos e prejudicam todos. É por isso que o País - leia-se, a sociedade civil portuguesa - tem absoluta necessidade duma Ordem dos Professores, que em termos de utilidade pública tem uma importância só equiparável à Ordem dos Médicos. É claro que uma Ordem dos Professores defenderá - legitimamente, diga-se já - o interesse dos professores em verem melhorado o seu estatuto social e profissional. Mas defenderá também o interesse das escolas, que é dar o mundo a compreender às novas gerações e não imbecilizá-las, como o poder político as quer obrigar a fazer. E será uma arma a acrescentar às outras de que a sociedade civil já dispõe para limitar o poder totalitário da plutocracia que a oprime.
Subscrever:
Mensagens (Atom)