Aconteceu na América. No princípio, era o caçador que passava meses sozinho na floresta para de vez em quando voltar à cidade e vender as peles parcialmente curtidas dos animais que apanhara. Depois, as famílias que se aventuraram em pequenos grupos dum lado ao outro do continente, lutando sem auxílio de ninguém contra a natureza e contra as populações locais, para quem a noção da terra como propriedade privada era pura e simplesmente inconcebível. Mais tarde ainda, o cowboy, herói da grande saga que constituiu a condução das grandes manadas de gado, ao longo de milhares de quilómetros, entre os ranchos do Sul e os centros de consumo a Norte. Como protagonista social relevante, o cowboy existiu apenas durante o curtíssimo período que mediou entre a formação das grandes explorações pecuárias e o estabelecimento das linhas férreas pelas quais o gado passou a ser transportado; e já antes disso a sua actividade começara a ser dificultada pelo arame farpado que lhe foi impedindo cada vez mais o caminho à medida que se multiplicavam as explorações agrícolas.
Toda esta gente precisava, para sobreviver, duma enorme independência de espírito e duma enorme capacidade de ultrapassar, sem ajuda organizada, as dificuldades que lhe fossem surgindo. Compreende-se, portanto, que a imagem que construíram de si próprios incluísse um grau de auto-suficiência muito superior ao que a realidade justificava.
O caçador de peles não poderia subsistir sem a base industrial que lhe fornecia uma boa parte dos instrumentos do seu ofício - por muito inventivo que fosse na fabricação de muitos outros. E muito menos subsistiria sem as cidades onde trocava as suas mercadorias pelas outras de que necessitava - cidades estas que não eram mercados espontâneos, mas sim sociedades organizadas politicamente. Os pioneiros tinham na sua retaguarda uma base industrial ainda mais complexa, que lhes fornecia as bigornas de ferreiro que levavam nas carroças, os aros das rodas, as armas e munições, os diversos produtos da indústria de curtumes, etc. E, se não eram tão independentes economicamente como imaginavam, também não o eram politicamente: quem se encarregou de o provar foram as suas mulheres e a contínua pressão que exerceram para que se formassem as instituições indispensáveis a uma sociedade organizada, ou seja, política: as igrejas, as escolas, as polícias, os tribunais, o Direito.
O self-made man não existe. Um Bill Gates que tivesse vivido numa caverna há dez mil anos nunca teria inventado o software que deu origem à Microsoft e à sua fortuna. Para Bill Gates chegar aonde chegou, foi necessário que incontáveis gerações trabalhassem para produzir a agricultura, a metalurgia, a escrita, a geometria, a matemática, a numeração árabe, o Direito codificado, a imprensa, os instrumentos ópticos, o contrato social em que se baseia o Estado moderno, a navegação, o comércio internacional e intercontinental, as academias, as sociedades científicas, as universidades, as bibliotecas , as estradas, as comunicações à distância, a electricidade e a electrónica - e muitas outras coisas, em tal número que não podem ser contadas.
Muitas destas coisas foram produzidas ou mantidas no âmbito daquilo a que se chama hoje sector privado; outras, no âmbito do sector público; mas a maior parte teve origem em sociedades e culturas em que a distinção entre público e privado nem sequer fazia sentido.
Por muito que o mérito individual de Bill Gates tenha sido condição necessária do seu êxito, não foi, nem de longe, condição suficiente. Ele próprio reconheceu este facto quando, ao doar grande parte da sua fortuna, declarou que estava simplesmente a restituir o que devia à sociedade (recordo-me bem do escândalo que esta declaração causou aos jovens puristas do neoliberalismo português).
Conheço, como toda a gente conhece, pessoas que correspondem grosso modo à noção vulgar de self-made man. E estes exemplos poderão aparentemente justificar uma objecção ao que escrevi acima, nomeadamente: a minha definição é demasiado restrita; ninguém diz que o self-made man se faz sozinho.
Um dos problemas com esta objecção é que uma definição mais ampla seria inútil para os objectivos ideológicos da direita neoliberal; quem a usa com este objectivo usa-a no mesmo sentido restrito que eu pressuponho aqui. De alguém que se "faça a si próprio" com a ajuda da sua circunstância não se pode afirmar, racionalmente, que não deve nada a ninguém ou que os impostos que lhe são exigidos são um confisco.
Acresce que a ideia do self-made man é insultuosa para quem pretende elogiar: dizer que quem fez uma fortuna se fez a si próprio é dizer que um ser humano não é mais nem vale mais do que a sua fortuna. Mas se os próprios não se ressentem do insulto, porque me hei-de eu ressentir?