...............................................................................................................................................

The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
....................................................................................................................................................

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Instaurou-se a República. Agora falta construí-la.

Quando assisto, ano após ano, às comemorações da instauração da República, vai-se instalando em mim uma desoladora sensação de futilidade; e consolidando a ideia de que tão republicano é o regime desde 5 de Outubro de 1910 como o era até essa data.

Uma república é mais, muito mais, do que a ausência da formalidade monárquica. É mais, muito mais, do que uma mudança de método na escolha do Chefe de Estado. Uma república - uma res publica - é a organização duma sociedade civil que culmina no Estado mas não se reduz ao Estado. Uma república nem sequer exige necessariamente a abolição formal da Monarquia: exigiria, sim, a abolição efectiva das inúmeras micro-monarquias absolutas que são hoje, como há cem anos, o principal traço definidor do regime político português.

Mais do que um Estado forte ou do que um governo consequente - coisas que nunca tivemos, ou só tivemos em ditadura - uma república supõe e exige instituições fortes e prestigiadas: os tribunais, a universidade, as escolas, os partidos políticos, as associações cívicas, os sindicatos, as associações profissionais, as academias, os movimentos artísticos e culturais, os centros de investigação científica, as famílias - e também as empresas, mas não só. Embora sujeitas à lei, todas estas entidades necessitam, em república, de autoridade e autonomia que lhes permitam ter uma palavra a dizer na definição do bem comum. Esta definição não pode ser monopólio do Estado - e muito menos do governo, como preconizou Vital Moreira a propósito da luta dos professores. E, para que não se degradem elas próprias em corporações "monárquicas", têm que obedecer a estatutos determinados pelo método mais democrático que a sua natureza permita.

Tudo isto pressupõe um factor básico, que é a confiança dos cidadãos uns nos outros, nas instituições e no Estado. Não me refiro aqui a uma confiança absoluta, ingénua ou infantil, mas àquilo a que se poderia chamar, talvez com mais propriedade, o benefício da dúvida. Este factor - a confiança - torna-se tanto mais crucial quanto mais complexa se vai tornando a sociedade e quanto mais específicos se vão tornando os saberes. Um astrofísico de reputação mundial está, perante o seu médico, na posição de um leigo. Pode avaliar a sua reputação, mas não pode avaliar o seu saber. Confia no médico por duas razões: porque presume que ele sabe o que faz, e porque presume que age no interesse de quem o consulta. Este médico, por sua vez, se se envolver num litígio, tem que depositar a mesma confiança no seu advogado - e este no mecânico que lhe repara o automóvel, e este no informático que lhe configura o computador, e este no empregado bancário que lhe recomenda o produto financeiro mais vantajoso para investir ou as condições mais vantajosas para o crédito de que necessita.

E isto, sempre, com base em informação insuficiente.

A república - a res publica - não é um dado inscrito na natureza das coisas. A república é um artefacto, longo e difícil de construir, fácil e rápido de destruir. O que é um dado natural é a monarquia - isto é, o domínio de um ser humano sobre outros seres humanos. Ao contrário da república, esta monarquia arquetípica é fácil de construir - tão fácil que se constrói a si mesma onde quer que onde quer que haja alguém que, sendo mais forte ou mais esperto do que os outros à sua volta, não se defronte com uma oposição organizada.

Já mencionei neste blogue o livro de David Marquand em que se narra a construção planeada da república no Reino Unido, ao longo do século XIX e parte do século XX, conseguida sem que tivesse sido necessário abolir formalmente a Monarquia, e o seu subsequente desmantelamento, igualmente planeado, empreendido por Margaret Thatcher e continuado pelos teóricos e pelos actores políticos do chamado "New Labour".

Os pilares fundamentais da construção da república no Reino Unido foram estes: a constituição duma burocracia eficiente, largamente independente em relação às mudanças de governo, zelosa, portadora duma cultura própria que a vinculava a uma ética e a uma deontologia, e dotada duma sólida e profunda cultura humanística que lhe permitia distinguir entre a lealdade que devia à república e a lealdade que devia ao governo; o alargamento da franquia eleitoral, que passou de 15% dos homens adultos a 100% dos homens e das mulheres; o reforço da autonomia e das finanças das universidades; a autorização das classes profissionais, a que foi permitida a formação de associações auto-reguladoras por intermédio das quais pudessem participar, na base dos seus conhecimentos especializados, na formulação das políticas públicas; o abrandamento, e eventual abolição, das leis anti-sindicais.

O mais admirável deste êxito está em ter sido conseguido contra a oposição dos sectores mais conservadores da sociedade (ou dos conservadores mais primários, porque do lado da república não havia só progressistas, mas também conservadores mais sofisticados que os seus pares); e nomeadamente contra a oposição estrénua dos economistas clássicos, que viam "colectivismo" no mais ínfimo laivo de justiça social.

A contra-reforma anti-republicana assentou na demonização dos sindicatos, dos funcionários públicos e das classes profissionais; na desvalorização do conhecimento como um fim em si mesmo, nomeadamente nas suas vertentes humanísticas, e na sua redefinição como um meio ao serviço da economia; na criação de falsas autonomias que consistem em puxar para o centro o poder de decisão ao mesmo tempo que se relegam para a periferia as responsabilidades respectivas (ou seja: quem decide não assina e quem assina não decidiu); na formulação central de "objectivos" cada vez mais minuciosos, mais ideológicos e mais desligados do interesse público concreto; na imposição de formas de "avaliação" cada vez mais delirantes e complexas e cada vez mais centradas na consecução destes objectivos.

Esta contra-reforma anti-republicana fez-se e faz-se sentir também em Portugal, e de forma tanto mais virulenta quanto mais incipiente e mais débil é a república que se pretende desmantelar. Hoje, se consulto o gestor da minha conta bancária, nunca sei se o produto que ele me recomenda é realmente o que me é mais favorável ou se é o que ele precisa de vender para atingir os objectivos de que depende a sua avaliação. Quando compareço diante dum guichet numa repartição pública, não sei se o funcionário que me atende ainda conserva algum resquício de vontade de resolver os casos que lhe aparecem ou se já se está completamente queimado e desmoralizado pelas sucessivas sacanices a que tem sido sujeito por parte de quem tinha o dever de ser a sua retaguarda de apoio.

Quando ouço na televisão um economista mediático, posso presumir, como posso quando consulto o meu médico, que ele sabe do que está a falar; mas não posso dar-lhe o mesmo benefício da dúvida no que respeita os seus objectivos. Ao contrário do que acontece com o médico, nunca sei se o interesse que o economista prossegue é o meu ou se é outro alheio ao meu, e talvez oposto a ele.

Esta quebra de confiança alarga-se a cada vez mais sectores da vida em sociedade. É ela o cancro que corrói a república. Se isto é resultado, como no Reino Unido, duma vontade consciente, ou se é resultado apenas do provincianismo e ignorância dos nossos decisores políticos, não sei.

Mas sei que me indigna cada vez mais ver no palanque, a comemorar com discursos comoventes a implantação da República, precisamente aqueles que mais têm contribuído para a desmantelar.

3 comentários:

francisco oneto disse...

Caro José Luiz Sarmento

Excelente reflexão! É um prazer lê-lo, pela clareza e pelo vigor das suas ideias.

A quebra de confiança a que se refere é parte do que Dany-Robert Dufour considera como uma verdadeira "mutação antropológica" em curso induzida pela civilização liberal e acelerada (a dromologia de P. Virilio, a instantaneidade das redes digitais...) pelo neoliberalismo, pela contra-reforma anti-republicana. Para sobreviver, deveremos munir-nos de um "kit kanteano" capaz de restituir ao sujeito a sua dignidade crítica...

Interrogo-me acerca do nosso país e da nossa República. Será que alguma vez desde o advento do liberalismo tivemos um ethos de confiança como elemento central dos nossos processos e relações sociais, e pela organização dos nossos destinos? Inclino-me a pensar que não (talvez o carisma de Sidónio ou de Delgado, ou o espírito de Abril, que foi sol de pouca dura, pudessem ter sido pontos de partida para a sua construção...). Tivémos a decadência a que se refere Antero, o peso do bafio das sacristias, a guerra civil de 28-34, a humilhação da perda do império e a ditadura fascista. No pós-guerra não conhecemos o progresso social e económico dos países do norte... E ainda temos a depressão colectiva, o inebriamento alienante do défice de educação humanística... Continuamos hoje a pagar o atraso do salazarismo, e os sucessivos governos em democracia revelaram-se incapazes de ultrapassar alguns dos maiores problemas do país, não concorda?

ablogando disse...

Belo texto!
E, já agora, agradecido pela sua referência ao meu cantinho.
Vou passar a andar por aqui mais vezes.
Joaquim Simões

yodleri disse...

Longe de mim tais literatas reflexões, eu, pacóvio de lavouras cebolísticas ou batataicas, que só vê na República uma desavergonhada com as mamas à mostra... mas apreciador de boa literatura, li com gosto. ;-)