Não sei se Carlos Cruz, Ferreira Diniz, Hugo Marçal e José Abrantes são inocentes ou culpados. Não sei se são todos inocentes, não sei se são todos culpados, e não sei se alguns deles são inocentes e os outros culpados. Esta minha dúvida é perfeitamente correcta no plano formal, uma vez que obedece ao princípio da presunção de inocência até trânsito em julgado . Essa correcção não impedirá, contudo, que caia sobre a mim a ira de quem tem sempre certezas e que mais facilmente perdoa a quem tem a certeza contrária do que a quem manifesta dúvidas.
O pior é que também tenho dúvidas sobre a culpa de Leonor Cipriano, dúvidas estas que se mantêm mesmo depois de a condenação dela ter transitado em julgado. Ao manifestar esta dúvida já não me estou a manter no âmbito do Direito, mas a extravasar para o terreno muito mais escorregadio da Justiça.
Todos sabemos que o Direito e a Justiça não coincidem completamente; e sabemos, além disso, que é extremamente improvável que alguma venham a coincidir em qualquer parte do mundo. Mas esta consciência da realidade não nos dispensa, a nós cidadãos, nem aos legisladores, nem aos juízes, de procurar alargar o mais possível a zona de intersecção entre os dois terrenos. A perversidade da justiça portuguesa está antes de mais nada na fuga sistemática a este dever.
Quod non est in acta non est in mundo. Isto é o mesmo que dizer que o juiz só pode decidir com base no que está no processo. Para que um qualquer sistema de justiça funcione, este princípio é, infelizmente, indispensável. Digo "infelizmente" porque basta reflectir um pouco para ver que podem resultar dele muitas injustiças; digo indispensável porque da sua ausência resultariam muitas mais, e piores.
O que não se deve é fazer dele uma leitura perversa, da qual resulta que a justiça e a verdade substancial não contam para nada, e que para que tudo esteja bem resolvido basta que bata certo no papel. A acta não é o mundo, mas o que se inclui ou exclui dela tem consequências no mundo. A decisão de incluir umas coisas no processo e excluir outras é o campo onde se joga a intersecção do Direito com a Justiça. E se esta intersecção for demasiado restrita; se os operadores judiciais caírem na deformação profissional de ver no Direito um fim em si mesmo e não um instrumento ao serviço da Justiça; se chegam mesmo a ver na Justiça um empecilho e um incómodo para o funcionamento suave e decoroso da (apropriadamente chamada) máquina judicial - uma espécie de mosquito zumbidor que distrai os digníssimos magistrados da tranquila e douta redacção dos seus acórdãos e sentenças - então bem podemos perguntar para que raio serve o Direito.
A ideia de que o Direito se esgota em si mesmo leva directamente à ideia de que o erro judiciário é impossível. Se não há mundo para além da acta, e se o que está na acta bate certo, então não se pode falar de erro. Leonor Cipriano talvez esteja inocente no mundo real, mas isso que interessa se é indubitavelmente culpada no papel? A sentença transitou em julgado, não transitou? Então porque carga de água é que andam para aí alguns maluquinhos a manifestar dúvidas sobre um processo que já está terminado e a ganhar poeira nos arquivos?
Talvez porque as grades da cadeia em que ela está não são feitas propriamente de papel. Mas isto não é facto que possa entrar na cabeça dos nossos magistrados. Não está na acta, portanto não está no mundo.
É propositadamente que escrevo aqui sobre a Leonor Cipriano em vez de continuar a escrever sobre os condenados no processo Casa Pia. Este está ainda demasiado presente para que o possa tratar com a frieza que entendo necessária.
Um inocente punido é um horror sem nome, e no entanto o que mais me horroriza não é a possibilidade (mera possibilidade, entenda-se) de esta ou aquela pessoa ser condenada injustamente. Mais horrível que esta possibilidade é a certeza, baseada na lei das probabilidades, de que neste preciso momento há inocentes a cumprir pena. Quantos e quais, não sabemos.
E é nesta ignorância que reside o horror maior. No nosso país não há estudos exaustivos nem estatísticas fiáveis. Se quisermos comparar números com os dos EUA, por exemplo, não poderemos fazê-lo. Há números para os EUA, desdobrados estado a estado, idade a idade, etnia a etnia, tipo de crime a tipo de crime. Mas não os há para o nosso país.
Que saibamos, a situação em Portugal tanto pode ser melhor, como igual, como pior do que a situação em qualquer outro país, incluindo o Afeganistão ou a Somália No limite e em tese, é claro. É mesmo possível, também no limite e também em tese, que em Portugal todos os condenados estejam inocentes.
Ou melhor, possível não é, pelas mesmas razões probabilística por que não é possível que sejam todos culpados. Mas só por estas. E estas não bastam.
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1 comentário:
Subscrevo de cima a baixo. Mas quando un gajo afirma em público que prefere mil criminosos à solta que um inocente preso, fica tudo a olhar de lado. Não tenho problemas em ficar isolado nessas situações. Mas é reconfortante saber que ainda vai havendo quem me acompanhe. :)
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