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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Felizmente há a França

Quando milhões de franceses se movimentaram para protestar contra o aumento da idade da reforma dos 60 para os 62 anos, não faltou quem lhes viesse com as ameaças do costume: Olhem que aqui ao lado, na Alemanha, é aos 67... Vejam lá, não refilem muito, senão ainda vos pode acontecer o mesmo... Vá lá, sejam realistas... Não queiram viver acima das vossas possibilidades...

Mas os franceses, honra lhes seja feita, são gente bem menos submissa que os alemães, e menos cegos à nudez do rei quando este calha de ir nu. E assim, quando um jornalista televisivo confrontou um manifestante anónimo com aquela argumentação, recebeu como resposta que a produtividade francesa era hoje o dobro do que há vinte anos, pelo que não havia nada de irrealista nas suas reivindicações.

Ora acontece que nos nos vinte anos anteriores a produtividade cresceu ainda mais - como não podia deixar de crescer dados os enormes e espantosos avanços tecnológicos a que temos assistido. Ou seja: entre 1970 e 2010, a produtividade mais que quadruplicou. Ou seja, para quem não está a ver o alcance deste facto: cada hora de trabalho humano vale hoje por quatro horas em 1970.

Este número poderá mudar se considerarmos factores de ponderação como o factor demográfico, num sentido, ou no sentido oposto a entrada para o grupo dos países desenvolvidos de outros que não faziam parte dele há 40 anos. Um facto subsiste: o Mundo está hoje muito mais rico do que estava há 40 anos. Se o ócio é um luxo e custa caro, somos suficientemente ricos para o pagar; e parece que em todo mundo ninguém entende isto a não ser os franceses.


Se abstraíssemos do politicamente possível e considerássemos apenas o objectivamente possível, podíamos ter hoje horários de trabalho de dez horas semanais; ou salários quatro vezes mais altos; ou reformas aos 45 anos; ou um qualquer compromisso que combinasse estes bens segundo a vontade de cada um e a vontade democraticamente expressa dos povos. Uma jornalista portuguesa de direita ironizava, não há muitas semanas, com aqueles "atrasados" que ainda sonham com a Suécia dos anos 70. Cometeu aqui um erro de diagnóstico: não sonhamos, exigimos; e não queremos a Suécia dos anos 70: queremos muito mais e muito melhor.

Se isto parece utópico, tal não se deve a qualquer impossibilidade objectiva, mas sim a uma impossibilidade política. Nem os mercados, nem nenhuma lei natural alguma vez determinaram a distribuição da riqueza ou do ócio. Hoje, como há dez mil anos, o melhor bocado cabe sempre ao mais forte. E se hoje a maioria dos seres humanos não recebe o dividendo que lhe cabe do progresso económico e tecnológico das últimas décadas, isto deve-se a um facto e a um facto só: há poder a mais nas mãos erradas e poder a menos nas certas.

Utopia? Não há nada de utópico em "exigir o impossível" quando o impossível só o é politicamente. Se queremos falar de utopia, falemos do discurso da inevitabilidade inaugurado por Reagan e Thatcher e repetido hoje, até à saturação, pelos economistas mediáticos, pelos medinacarreiras, pelos tonibleres e pelos "socialistas" da Terceira Via - todo ele um jogo perverso de utopias que visa convencer-nos que o impossível é possível e o possível impossível.

11 comentários:

Eduardo Miguel Pereira disse...

Texto brilhante e que espelha de forma perfeita e magistral o que também a mim me vai na alma.
Chamam-lhe utopia ?
Eu chamo-lhe clarividência politica-solcial, chamo-lhe sentido de justiça, chamo-lhe merecimento.
Bem ditos Franceses, de facto, e pena é que (ainda) não sejam em número suficiente aqueles que se juntaram à sua causa e à sua forma de ver e de pensar o Mundo em que vivemos.
Obrigado José Luiz, é por posts destes que a blogosfera se torna um espaço único de enriquecimento intelectual para quem por cá anda.
Dá-me licença que divulgue o post no meu blogue ?

Anónimo disse...

Estes não brincam em serviço. Vão à luta. Nós por cá amochamos...

Orlando disse...

É verdade que produzimos mais. Também consumimos muito mais. E não estamos dispostos a consumir menos...
Caro José Luís Sarmento, é verdade que o problema é complexo, que a impossibilidade não é tão obvia quanto podia parecer. Também não é tão claro que esse argumento seja suficiente.

touaki disse...

Apetece-me apenas comentar duas coisas: a "estória" da reforma na Alemanha apenas ao 67 anos e as medinacarreirices.
A primeira é uma falácia que tentam impingir. De facto a idade de reforma na Alemanha VAI para os 67 anos, ainda lá não está. E só lá deverá chegar em 2029 - isto é, aumentando um mês a cada ano que passa. Portanto, quem de direitoe obrigação - jornalistas por métier e políticos, por honestidade, deviam informar correctamente o que se passa.Mas preferem aldrabar. Vende-se o soundbyte que se compra não descurando de verificar a qualidade do produto. É como nas lojas dos 300 ou dos chineses...
Quanto a Medina Carreira: o diagnóstico que o homem faz está correcto, sem tirar nem por. Os problemas são estruturais e anda-se apenas com cosmética barata que nada resolvia - adia, se não mesmo agrava. Em todoas as áreas: da política à economia, da educação à cultura, da saúde à segurança social.
Agora os remédios propostos é que evidenciam uma posição de classe que aposta nas velhas receitas - tipo pescadinha de rabo na boca. A coragem política que é precisa é precisa para vencer TODOS os interesses instalados particularmente das grandes corporações: das finanças à saúde, da banca aos monopólios, dos lobbys à política, etc...
O grande inimigo do estado e "das contas públicas" é aqule a quem os políticos, economistas de pacotilha e jornaleiros de meia tijela dão a mão julgando que fazem grande obra.
É que não conhecem a História ou então pensam que ela se resume à semana que passou...

bulimundo disse...

Excelente análise ..touché..Bom domingo..
http://bulimunda.wordpress.com/2010/09/18/ultimo-livro-de-saldanha-sanches-escrito-antes-de-morrer-justica-fiscal-acerta-na-mouche-nestas-duas-evidencias/

bulimundo disse...

Um excelente vídeo...sobre o tipo de sociedade que temos ..
http://bulimunda.wordpress.com/2010/09/18/a-historia-das-coisas-completo-e-legendado-em-portugues-elucidativo/

Zéfoz disse...

Tive o pressentimento de que hoje iria ler aqui um post de grande nível. Foi o que aconteceu. Textos destes, com tão boa estrutura e capacidade de análise da actual crise e dos problemas que afectam a sociedade de hoje, não se encontram todos os dias. A equação de algumas soluções para salvar "o rebanho" do presumível apocalipse social, pressionado pelo priorado do cifrão, revelam a visão de alguém humanista a quem tiro o meu "chapéu"!
Parabéns.

Manuel Rocha disse...

Gostava de o acompanhar na utopia, aliás, acho que precisamos de utopias, mas há neste desejo uma parte em que "patino".
A "riqueza" das nações costumava ser avalaida em função dos respectivos recursos. Nas ultimas decadas tendemos a menosprezar o factor que permitiu acelarar o uso desses recursos e conduzir paises como a Suécia à "prosperidade" : energia politicamente barata. Andamos todos às voltas com as contas do PIB e do defict como se fossem meras questões de percurso, assumindo que circulamos numa auto-estrada onde não faltam os postos de abastecimento para manter o motor em movimento. Ou seja, vamos de Fiat pago a prestações e gostavamos de ir de Volvo que não fosse propriedade da empresa de leasing. Mas não questionamos o abastecimento energético do modelo em que estamos instalados e que pretendemos nivelar pela Suécia.Continuará a energia a ser acessivel e barata no futuro proximo ? E se não for ?

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Caro Manuel Rocha:

Energia politicamente barata há quarenta anos, ou energia politicamente cara hoje em dia?

Os financiadores da extrema-direita americana não são só gente da banca, são sobretudo gente do petróleo...

Manuel Rocha disse...

Caro JL Sarmento:

Expliquei-me mal. :)
Veja-se no Relatório Europeu para a Energia a dependencia da UE de fontes fósseis. Foi sobre a premissa de abundancia e acessibilidade ( preço incluido ) que se construiu e funciona o nosso modelo de properidade.As preocupações com as alternativas bastam-me como sinal de preocupação em relação a essa dupla dependencia. Quais as perspectivas se as hipoteses alternativas se revelarem claramente insuficientes para suprir o modelo de consumo instalado num cenário de dificil acesso ( disponibilidade e preço ) às fontes fósseis ? Esta a questão que me condiciona a leitura da utopia que alimenta. Não se trata de mera questão de financiamento do modelo, mas de matéria prima para o alimentar. Espero ter sido mais claro.

Cumprimentos.