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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Sétima Sinfonia

Escreve Bernard Chazelle, no seu maravilhoso blogue «A Tiny Revolution», que o culminar de todo o cânone musical ocidental é o segundo andamento, Allegretto, da Sinfonia nº 7, Opus 92 de Beethoven.

Ora isto é um perfeito disparate (aqui peço especial atenção a quem tem o detector de ironia a funcionar mal). Chazelle só acertou no Beethoven. Os meus perspicazes e sensíveis leitores sabem, como eu sei, que o píncaro absoluto do cânone musical ocidental é o terceiro andamento do Quarteto de Cordas, Opus 132, de Beethoven. Para se enterrar mais, Chazelle dá-nos a ouvir uma versão dirigida por Karajan, com uma duração de pouco mais de sete minutos, alegando que mesmo assim é mais lenta do que aquilo que mandam as indicações metronómicas do compositor.

Palavra que é caso para mandar todos os purismos para um lugar que eu cá sei! Ó meninos, este Allegretto quer-se lento, e deixem lá em paz o que o compositor escreveu na partitura porque os génios também se enganam. Carlos Kleiber, que não era homem para se vergar ao génio de ninguém que não fosse o seu, demora, na sua gravação de 1975 com a Filarmónica de Viena, uns generosos oito minutos e nove segundos; e Sir Simon Rattle, que me tem acompanhado em vinil e em CD desde os meus longínquos 16 anos de idade, espraia-se nuns sumptuosos oito minutos e vinte e cinco segundos.

Assim, sim. Comparado com isto, o Karajan parece que vai a fugir à polícia. Mas a quem insiste teimosamente que um Allegretto tem que ser um Allegretto, deixo uma sugestão: largue as sinfonias e ponha-se a ouvir os quartetos de cordas. Comece pelos últimos e vá regredindo em direcção aos primeiros. Quase no princípio da viagem deparar-se-á com o Opus 132 e com o seu terceiro andamento, que aqui designo, reverentemente, pelo seu nome completo: III. Molto Adagio (Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit; in der lydischen Tonart) Andante (Neue Kraft fühlend) Molto Adagio (Mit innigster Empfindung).

São os mais belos 16 minutos e 12 segundos de música (na versão do Melos-Quartett de Stuttgart) que o Cânone Ocidental jamais produziu.

Hubris

«Pus os professores na ordem», disse Maria de Lurdes Rodrigues, num jantar.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Avaliação

Sem avaliação nada se faz. Quando um processo corre, seja que processo for, é preciso ver se corre bem ou se corre mal, para poder corrigir a rota ou continuar nela, conforme o caso. O maratonista, ao longo da prova, vai recebendo informações sobre os tempos que está a fazer e sobre os tempos que estão a fazer os seus adversários, e assim gere a corrida.

Isto é avaliação.

O merceeiro faz as suas contas: está-se a avaliar, e a avaliar o seu negócio.

O gestor compara os objectivos estabelecidos com os resultados obtidos, e estes com os resultados obtidos pela concorrência: avaliação, de novo.

A proprietária da farmácia no Centro Comercial, que normalmente está aberta sete dias por semana até à meia-noite, fecha-a um dia por ano, sabe-se lá com que relutância, para inventário e balanço. Mais uma vez, avaliação.

O que o maratonista não faz, nem o merceeiro, nem o gestor, é dedicar à avaliação a maior parte do seu esforço ou do seu tempo. A maior parte do seu esforço e do seu tempo, dedica-a o maratonista à corrida, o merceeiro ao comércio, o gestor à gestão. Se assim não fosse, não teriam nada para avaliar. Se a proprietária da farmácia, em vez de fechar o estabelecimento uma vez por ano, o abrisse uma vez por ano, estaria a avaliar coisa nenhuma. O que o maratonista sabe, como o sabem o merceeiro, o gestor e a proprietária da farmácia, é que a avaliação não é um proveito, mas sim um custo; e que será tanto mais eficiente quanto menos onerosa.

Pois bem, agora o Ministério da Educação quer avaliar os professores. Haverá quem se escandalize com isto. Eu, não. Acho perfeitamente natural que os professores sejam avaliados. E digo mesmo mais: acho que os professores têm o direito de ser avaliados, quando mais não seja para saberem às quantas andam.

Isto, é claro, da forma mais prática, mais simples, mais rápida, menos onerosa e menos burocrática possível, de modo a não desviar tempo, nem esforço nem recursos do que é essencial, ou seja: o ensino.

Mas estamos em Portugal, e em Portugal nunca nada é simples. Em Portugal gastam-se pelo menos sete semanas, que podiam ser de aulas ou de férias, com os exames. E mesmo assim há exames que deveriam ser feitos e não se fazem. De princípios de Junho a fins de Julho, e às vezes por Agosto dentro, entram as escolas, os alunos, os pais, os professores no corropio do costume. Tudo pára. Mobiliza-se a polícia, os gabinetes todos do Ministério, os professores, toda uma logística paranóica para aplicar a uns tantos alunos uns tantos testes que qualquer professor seria capaz de elaborar, aplicar e corrigir em dois dias. E ele há os recursos, e ele há os anonimatos, e ele há os júris, e ele há os critérios do GAVE, e ele há os formulários electrónicos que se repetem em papel, e ele há as duplas e triplas assinaturas, e ele há a diskette que não é compatível com a pen e a pen que não é compatível com o excel, e ele há a cotação que tem que ser escrita nas margens e a que não pode ser escrita nas margens...

Quem quiser conhecer um Estado Policial em toda a sua pujança tem que vir a Portugal em época de exames.

Pois bem, é este Estado, é este Ministério, que assim avalia os alunos, que agora se propõe avaliar os professores. Da forma mais rápida, mais expedita, mais justa e mais económica possível? Por amor de quem lá têm, não brinquem comigo. O Estado que desperdiça quase dois meses de cada ano lectivo para avaliar alguns poucos alunos sobre algumas poucas matérias é estruturalmente incapaz de avaliar os professores sem imobilizar completamente as escolas.

Isto até nem seria mau se ao menos servisse para os nossos tecno-burocratas aprenderem alguma coisa; mas é claro que não vão aprender nada. Nem esquecer nada: ai de quem ouse tocar, com mão ímpia, numa grelhazinha, numa fichazinha que seja! A culpa, como sempre, será dos professores. Ou dos Fados, porque os professores, segundo a ministra, já foram postos na ordem e por consequência já não podem ser culpados de nada.

Trabalhar muito, trabalhar pouco

Vemos um homem num banco do jardim a ler o jornal. Estará a trabalhar? Claro que não, está a gozar o seu tempo livre. Pode ser que esteja reformado e a gozar o ócio a que quarenta anos de trabalho lhe deram direito; pode ser que seja Sábado e ele esteja a aproveitar o fim da manhã, enquanto a mulher acaba de cozinhar o almoço; pode ser que estejamos num dia útil e que aquele homem seja um trabalhador que faz uma pausa entre o seu trabalho da manhã e o da tarde. Em todo o caso: aquela leitura de jornal não é o que normalmente se considera tempo de trabalho. É tempo de ócio.

Façamos um zoom e olhemos com atenção para o jornal. Não está, como tínhamos imaginado, escrito em português: está em alemão. O título é Die Zeit ou Die Welt. Pela pasta que o homem tem ao seu lado, no banco de jardim, e pelos papéis espalhados ao lado, concluímos que é professor de alemão nalguma escola secundária.

E é aqui que a nossa perspectiva se complica: o homem está a trabalhar ou está a gozar o seu tempo livre? A avaliar pela expressão do rosto, a leitura está a dar-lhe o mesmo gozo que a do Diário de Notícias daria ao reformado da nossa primeira hipótese; mas por outro lado sabemos que, com prazer ou sem ele, está a treinar capacidades que na sala de aula lhe competirá ensinar. Lembramo-nos dos jogadores de futebol: só estão a trabalhar enquanto jogam? Ou também trabalham quando treinam? A certa altura vemo-lo estender a mão para a pasta, pegar numa esferográfica, descrever um círculo à volta de um artigo: terá encontrado um texto para utilizar mais tarde num teste, ou numa aula? Não sabemos. Só sabemos que não sabemos se o homem está ou não está, naquele momento, a trabalhar.

Admitamos agora que o nosso professor de alemão anda a ser seguido por um perito em eficiência ao serviço do Ministério da Educação, que anota todos os seus actos com o fim de apurar a sua utilidade. Como classificará este inspector taylorista esta actividade a que assistiu? Se ela durou meia hora, será classificada como meia hora de ócio, ou como meia hora de trabalho? Ou optará o nosso inspector por distribuir estes trinta minutos pelas duas classificações? E neste caso, em que proporção? Em partes iguais? Dez minutos de trabalho e vinte de ócio? Vinte minutos de trabalho e dez de ócio?

Pela minha parte, confesso que não gostaria de estar na pele deste hipotético inspector.

Tudo isto vem a propósito de um comentário feito por um leitor ao meu artigo «Trabalhar menos, ensinar mais»:

«É muito difícil para uma pessoa normal compreender que um professor, que trabalhava 22 horas por semana e que tinha montes de férias, trabalha muito.»

Com efeito é muito difícil. Se é difícil, como vimos, para um hipotético perito em eficiência, muito mais difícil será para uma «pessoa normal».

Para uma pessoa normal, é difícil imaginar que se os testes aparecem elaborados é porque alguém os elaborou, se aparecem corrigidos é porque alguém os corrigiu. Uma pessoa normal não sabe, nem tem que saber, quantas reuniões de Conselho de Turma tem cada professor no fim de cada período. Se essa pessoa normal for um aluno, sabe que o seu professor tem uma turma: a sua. Das outras, tem uma vaga ideia. E muito menos sabe da existência de reuniões intercalares.

Não sabe das reuniões de Área Disciplinar, de Grupo ou de Disciplina. Não sabe da infinidade de actas, obrigatoriamente escritas à mão, a que essas reuniões dão origem. Não sabe das grelhas que é preciso preencher, das matrizes que é preciso elaborar e arquivar, dos relatórios que é preciso redigir, das estatísticas que é preciso entregar já prontas à tutela, das fichas personalizadas (uma por aluno), da informação redundante que é preciso registar, muitas vezes, em meia dúzia de suportes diferentes.

Não sabe das centenas de páginas de livros, de revistas, de sites da net que é preciso consultar para elaborar um textinho de meia página para dar aos alunos, textinho este que depois é preciso adaptar, transcrever e fotocopiar na quantidade necessária.

Uma pessoa normal não sabe nada disto, porque não vê. Só vê as aulas. Uma pessoa normal está para os professores como um adepto de futebol que não soubesse o que é um treino e imaginasse que os jogadores trabalham hora e meia por semana, aos domingos, que é o tempo que dura um jogo.

Uma pessoa normal acha que quando os alunos estão de férias os professores também estão. Nem lhe passa pela cabeça que o mês de Julho seja o mais trabalhoso no calendário de qualquer professor - devido ao pesadelo burocrático que é a época de exames e à logística paranóica que os sustenta.

E não sabe que, mesmo no tempo já longínquo em que os professores tinham «montes de férias», essas férias eram mais que merecidas. Acreditem-me: eram mais que merecidas.

Por serem mais que merecidas é que em todos os países que conheço - e conheço bastantes - as férias dos professores são bem mais longas do que em Portugal, para além de serem bem mais longas do que as dos outros trabalhadores. Não direi que isto não suscita invejas: a inveja é um vício especialmente português, mas não é exclusivamente português. Mas Portugal é, que eu saiba, o único país em que vários governos ditos responsáveis cederam a essa inveja - mais do que isso, incentivaram-na - em vez de explicar aos cidadãos que essas longas férias são justificadas e úteis, no cômputo geral, para toda a gente.

Quem conhece as escolas por dentro sabe há muitos anos que os professores trabalham muito: num país em que geralmente se trabalha demais os professores, caso se resignem a não ensinar ou a ensinar pouco, trabalham mais ou menos o mesmo que as «pessoas normais»; e mais ainda se quiserem ensinar alguma coisa. Sempre foi assim. Os professores nunca protestaram muito contra o excesso de trabalho porque em Portugal protestar contra o excesso de trabalho é malvisto - culturalmente valoriza-se mais o trabalhar muito do que o trabalhar bem - e porque de um modo geral têm suficiente brio na sua profissão para não medirem tempo nem esforço.

O que mudou com esta ministra? Mudou que sobrecarregou de tal maneira os professores com tarefas inúteis que não só lhes tirou o pouco tempo livre que tinham, como lhes roubou o tempo de ensinar. Os ministros anteriores tinham contra si muitos professores; esta tem contra si quase todos, e especialmente os melhores - os que lêem Die Zeit, o Time Magazine ou o Nouvel Observateur; os que assinam revistas de Química, de Biologia ou de Informática; os que aproveitam quase todos os momentos de «ócio» para tirar notas mentais do género «isto é-me útil para as aulas, aquilo não».

Durante muitos anos os professores perdoaram aos vários ministros as centenas ou milhares de horas de trabalho excessivo, burocrático e inútil a que foram obrigados. O que não perdoam nem perdoarão a esta é que, surfando na inveja nacional, esteja a multiplicar este trabalho a tal ponto que impede os professores de ensinar.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Demitiu-se o Ministro da Saúde

Não. Ninguém me fale em políticas mal explicadas. Não acredito em políticas mal explicadas.

Nestes tempos de spin doctors e assessores de imprensa não há políticas mal explicadas. Há políticas melhores e políticas piores; há políticas com que ganham uns e políticas com que ganham outros; e até talvez haja políticas, touch wood, com que ganham quase todos. Mas políticas mal explicadas, não há.

Quando um político diz publicamente que explicou mal a sua política, podemos ter a certeza de estar a assistir a uma exibição moral em que a modéstia é tão falsa como é monstruosa a soberba. Quando um jornalista, por seu turno, nos transmite, depois de devidamente glosada e ampliada, esta treta, a certeza que podemos ter é de que a preguiça se aliou com a corrupção. O jornalista não tem direito à voz passiva que é a defesa do burocrata: se alguma coisa foi mal explicada é porque alguém a explicou mal, e esse alguém foi ele.

Vão agora correr rios de tinta - rios de treta - sobre as políticas mal explicadas de Correia de Campos. O essencial, como sempre, vai ficar por dizer. Quem beneficiou dessas políticas? Quem saiu prejudicado? Quem estará ainda a beneficiar ou a sair prejudicado daqui a uma década ou duas? Assuntos interessantes para serem tratados por jornalistas de outra escola, se os houvesse, que não a do Palma Cavalão.

Não me falem em políticas mal explicadas. Se as políticas forem boas, explicam-se a si mesmas. Se forem más, não há compinchas suficientes em todas as redacções de todos os jornais para que as explicações se dêem lisas e inteiras.

Extrapolações

Leiam isto. É sobre o Ministério da Saúde. E depois entretenham-se a descobrir as semelhanças e as diferenças em relação ao Ministério da Educação.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Trabalhar menos, ensinar mais

Já antes deste governo tomar posse e de esta ministra entrar pelas escolas dentro como Bush pelo Iraque os professores trabalhavam demais.

Não era essa a percepção popular: era apenas a verdade. Trabalhavam demais; e apesar disso, ou por causa disso, alguns ensinavam de menos.

Também havia os que ensinavam muito - e que por isso pagavam o preço de trabalhar, não só demais, como para lá de demais. Eram os que não tinham vida própria e existiam apenas para a escola.

Quando Maria de Lurdes Rodrigues entrou em funções sabia que a situação era esta. Podia, se quisesse, ter adoptado como prioridade o ensino. Podia ter proposto aos professores um programa de acção muito simples, muito eficaz, que se poderia resumir na frase «trabalhar menos, ensinar mais». Teria com isto ganho os professores, não teria perdido a população, e teria talvez começado a tirar Portugal da cauda das estatísticas educativas.

Mas a prioridade de Maria de Lurdes Rodrigues nunca foi o ensino: foi, e é, tirar poder e prestígio a um grupo social que em ambas as vertentes faz sombra à classe política. Por isso não se esforçou por corrigir a percepção popular de que os professores trabalham pouco. Pelo contrário, alimentou-a, recorrendo para tal à primeira das muitas mentiras descaradas que são hoje a sua imagem de marca. Baixa política, guerra suja.

Trabalhar menos, ensinar mais: teria sido tão simples, não teria? Bastaria que por uma vez tivesse tomado assento num governo português um ministro que fosse realmente da Educação. Mas em vez disso a palavra de ordem é trabalhar mais, trabalhar muito, trabalhar demais, trabalhar sem se saber para quê. Mesmo que para isso os professores deixem de todo de ensinar.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Intifada

Já há muitos meses li um artigo de Miguel de Sousa Tavares em que ele atacava simultaneamente os professores, os médicos e os juízes. O artigo deixou-me, devo confessá-lo, duas impressões contraditórias. Por um lado verifiquei que o autor teve a perspicácia - caso único entre os nossos fazedores de opinião - de entender que há entre essas três profissões um elemento comum que atrai sobre elas a fúria da classe política pós-moderna, bem como da tecno-burocracia que a rodeia e sustenta. Por outro, verifiquei que essa perspicácia não chegava ao ponto de entender qual é e como se caracteriza esse ponto comum.

Para ler Miguel de Sousa Tavares e entender o que o faz correr, convém estar a par de um elemento central da sua idiossincrasia: por razões de educação ou de opção filosófica, ou por circunstâncias da vida impossíveis de destrinçar, o homem é um viciado em pogroms. Convoque-se um qualquer tumulto contra um qualquer grupo a que se possam apontar privilégios - e lá está o nosso Miguel, armado de um chuço, no meio da multidão e confundido com ela, pronto a espancar, a incendiar, a esventrar.

É a sua natureza: nada a fazer.

Mas o que há de comum, então, entre juízes, médicos e professores? Em primeiro lugar, é claro, os privilégios de que gozam ou de que têm fama de gozar. Não se trata de um elemento despiciendo: o discurso dos privilégios é hoje central, como é central há milénios, na retórica dos convocadores de pogroms. Serão reais, estes privilégios? Claro que sim. Como todas as profissões, também estas têm vantagens e desvantagens para quem as pratica. Varramos as desvantagens para debaixo de tapete, e presto: cá temos as vantagens transformadas em privilégios para fins de propaganda e arruaça política.

O segundo elemento comum é o facto de se tratar de corporações no sentido medieval e europeu do termo. Para quem deseja ver o mundo transformado numa imensa América, estas remanescências da História são intoleráveis. Na América tudo é simples. Cada um, ou é um homem de negócios, ou é um trabalhador. Como muitos trabalhadores aspiram a tornar-se homens de negócios, votam Republicano contra os seus próprios interesses.

A um europeu, nada o impede de ser um homem de negócios, ou um trabalhador, ou as duas coisas, tal qual como um americano; o que lhe complica e enriquece o estatuto é que é muitas outras coisas além disso. O europeu é membro da sua família, do seu clã, da sua rede de solidariedades, da sua hierarquia profissional ou académica, da sua corporação milenar. Tudo isto parcialmente à margem - e aqui está o que é intolerável para os políticos pós-modernos e para os tecno-burocratas - da estrita racionalidade económica pela qual gostariam que o mundo se ordenasse.

O terceiro elemento comum é o facto de serem profissões cuja identidade e função se construíram na História. Quando a praga dos gestores se abateu sobre a Europa depois de ter reorganizado a América, encontrou resistências com que não contava. Quis organizar os juízes para a mais eficaz defesa dos mercados - e encontrou-os teimosamente agarrados à ancestral convicção de que a sua função é fazer justiça. Quis mobilizar os médicos para que se encarregassem da manutenção duma mão-de-obra rentável, e encontrou-os convencidos de que a sua função é tratar das pessoas. Quis converter os professores às maravilhas da indústria transformadora - num extremo da linha de montagem entram pessoas, do outro saem recursos humanos - e encontrou-os obstinadamente agarrados ao preconceito medieval de que as pessoas são a razão última do seu trabalho, e não a sua matéria-prima.

Tudo isto deve ser horrivelmente frustrante para os políticos pós-modernos, para os tecno-burocratas, para os gestores ainda frescos de Boston. Esta Europa parece-lhes velha e sem emenda. Onde esperavam encontrar colaboradores entusiásticos, encontram a cada passo empecilhos, atavismos, cepticismos obstinados - intelectuais, para dizer tudo; e palavra nenhuma exprime, no vocabulário dos nossos tecno-burocratas, um extremo mais fundo de abjecção. Os tecno-burocratas traziam nas pastas de executivo um mundo novo, pronto para ser apresentado em Power-Point aos labregos embasbacados da Velha Europa - e ninguém quis saber dele. Veio-lhes ao de cima um ódio, uma vontade de justiça ou de vingança - e encontraram a estratégia que lhes é própria, que lhes está na massa do sangue, o seu Choque e Pavor: adoptaram, como instrumento de acção e ética de trabalho, a tortura.

Aos juízes, sobrecarregaram-nos de trabalho ao mesmo tempo que os impediam de fazer justiça. Aos médicos dos serviços públicos, reduzem-nos à exaustão física, emocional e psicológica - mas não os deixam tratar doentes. Aos professores, carregam-nos de tarefas inúteis, quando não nocivas, e despojam-nos de cada minuto que possam ter de tempo livre - mas não lhes permitem, em caso algum, que ensinem.

É a tortura de Sísifo. É por aqui que esperam vergar-nos. Mas não conhecem a natureza humana. Não sabem que os juízes, os médicos e os professores são seres humanos - e que a sua tendência, como a de qualquer animal, é odiar quem os trata mal. E que vão acabar por se unir contra o inimigo comum.

Mas os burocratas sentem, confusamente, que alguma coisa não está bem. Sabiam que iam ter a oposição de muitos - mas não contavam com a insurreição de quase todos. Os governantes e os seus séquitos evitam cada vez mais visitar os tribunais, os centros de saúde e as escolas. Quando não podem evitar lá ir, vêem algo de inquietante nos olhos dos magistrados, dos médicos, dos professores, dos funcionários, dos utilizadores, dos alunos. Alguns de entre eles, mais sensíveis aos ambientes, apercebem-se de que estão a ser figurativamente apedrejados. Num ou noutro caso, sê-lo-ão literalmente - e não precisarão de especial sensibilidade para entenderem o que lhes está a acontecer.

Os políticos portugueses e europeus entraram pelas instituições da sociedade civil como Bush pelo Iraque, esperando ser recebidos com flores. Agora perguntam: porque é que nos atiram pedras?!

Permitam que lhes responda: atiramos-lhes pedras porque não temos Kalatchnikovs.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Acção cívica a favor do ensino

Todos queremos contribuir para que o ensino melhore em Portugal. Há uma maneira óbvia de o fazer, que é cada um dar o seu melhor; mas estando esta impossibilitada pela acção duma tutela que tudo faz para sabotar o trabalho dos professores, é preciso uma alternativa.

Depois de muito reflectir, lembrei-me da acção seguinte, que, por morigeradora e portadora de forte carga simbólica, teria sem dúvida uma forte influência na motivação de professores e alunos e consequentemente na eficácia do seu trabalho: distribuir por umas largas centenas de escolas rolos de papel higiénico que tivessem impresso em cada folha o retrato, ora de Maria de Lurdes Rodrigues, ora de Valter Lemos.

Alguém sabe onde é possível adquirir, ou mandar imprimir, papel higiénico com estas características? Se sabem, digam-no, a bem da Educação em Portugal. Tempos desesperados exigem medidas desesperadas.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

A Lusoponte, o referendo e o resto

Não é só em Portugal. Os políticos têm medo, muito medo. Geralmente, e apesar das aparências, não são estúpidos: e quando tomam decisões em contravenção directa dos seus mandatos sabem o que estão a fazer.

Às vezes são decisões grandes, como a de subtrair uma parte considerável do território à soberania popular e outorgá-la a uma entidade privada - a um dos novos barões que pululam no mundo pós-moderno sob a forma de empresas, igrejas, seitas, sociedades secretas, lóbis... Repare-se que não estou a falar de propriedade, estou a falar de soberania pura e dura: nos termos do contrato assinado pelo ministro Ferreira do Amaral, a Lusoponte não se tornou proprietária do trecho inferior do Tejo, tornou-se sua suserana.

Outra decisão grande foi a de não submeter a referendo o Tratado Europeu. Porque a democracia representativa (dizem eles, e com razão) é tão legítima como a directa. Sucede, porém, que neste particular o mandato dos representantes era claro, e consistia em referendar um determinado normativo independentemente de entretanto ter mudado de nome. Era uma questão concreta em que os representantes estavam expressamente mandatados para não representar.

E há as dezenas e centenas de pequenas decisões que são tomadas, como estas, em contravenção directa do mandato concedido pelo Soberano. Eles, os mandatários infiéis, sabem-no; e sabem que cada uma destas decisões os deslegitima mais um pouco.

Porque continuam a tomá-las, então? Porque o medo que têm de perder a legitimidade é por enquanto menor do que o medo que têm de desobedecer aos seus patrões. E assim, a cada pequena decisão auto-deslegitimadora que tomam, vão vivendo na esperança que ainda não seja aquela a que os vai deslegitimar de vez.

De noite, passam mal. Têm suores frios. Sofrem pesadelos. Sonham, quiçá, com a guilhotina, ou com os seus próprios cadáveres pendurados, na névoa nocturna, dos candeeiros de iluminação pública. Talvez seja por isso que se ufanam de dormir tão pouco.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Estado opressor? Indivíduo oprimido?

É o mantra dos liberais: o Estado (geralmente descrito como excessivo, adiposo, inchado, paquidérmico, estúpido, voraz) oprime os indivíduos, impedindo-os de viver autonomamente as suas vidas e impedindo-os, sobretudo, de funcionar eficazmente na economia.

Há nisto um fundo - e talvez mais do que um fundo - de verdade. Mas confesso que a opressão do indivíduo pelo Estado, pelo menos enquanto se tratar de Estados democráticos, não me apoquenta especialmente.

Há opressores bem piores do que os Estados democráticos. Desde logo os Estados totalitários; mas também as tribos, os clãs, as seitas, as igrejas, as organizações paramilitares, as monarquias feudais do Médio Oriente, os traficantes de pessoas e de órgãos, as sociedades anónimas que mandam na Economia...

Os liberais pensam que os homens são tigres; e que se o Estado os deixasse entregues a si próprios poderiam enfim cumprir a sua vocação de caçadores solitários. Mas os homens, por natureza, não são tigres: são lobos, e vivem em alcateia. O «Indivíduo» (que os liberais tanto veneram, e eu também) não é um ser natural: é um artefacto. E só existe devido a esse outro artefacto a que chamamos «Estado».

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Para que serve uma escola?

Os esquerdistas beneméritos dizem que serve para educar.
Os professores competentes dizem que serve para ensinar.
Os tecnocratas deslumbrados dizem que serve para qualificar.

Quem tem razão são os professores. Uma escola que não ensine, nem educa, nem qualifica. E como quem tem razão nunca é bem visto, entrega-se o poder aos tecnocratas. Daqui a dez anos, como já não se vão lembrar onde é que erraram, vão corrigir o erro com outro pior. Andamos nisto há décadas.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Plus ça change, plus c'est la même chose

Carlos e Ega foram os derradeiros a sair, depois de um brandy and soda, de que a condessa partilhou, como inglesa forte. E em baixo, no pátio, acabando de abotoar o paletó, Carlos pôde enfim soltar a perguntar que lhe faiscara nos lábios toda a noite:
- Ó Ega, quem é aquele homem, aquele Sousa Neto, que quis saber se em Inglaterra havia também literatura?
Ega olhou-o com espanto:
- Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste imediatamente quem neste país é capaz de fazer essa pergunta?
- Não sei... Há tanta gente capaz...
E o Ega radiante:
- Oficial superior de uma grande repartição do Estado!
- De qual?
- Ora de qual! De qual há-de ser?... Da Instrução Pública!

Eça de Queiroz, Os Maias

Lembrei-me logo do Valter Lemos, nem eu sei bem porquê.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Liberdade


Esta fotografia não foi tirada em Cuba, nem na República Dominicana, nem na Colômbia. Foi tirada na asseadíssima Suíça. O cartaz em castelhano deve-se ao facto de naquele bar se venderem havanos.

Que bom haver na Europa um país civilizado onde Bruxelas não manda!