«Sócrates», neste texto, não é um filósofo, um político, um homem de carne como nós: é o ar do tempo, o consenso geral que, como escreve aqui Nuno Brederode Santos, «eterniza o efémero».
E que efémero é esse? Há dias, ia eu escutando a Antena Dois, ouvi alguém dizer que os românticos só ouviam e tocavam os românticos. A maior parte do Século XIX ignorou largamente Bach e ignorou de todo Vivaldi. Para os românticos, o Barroco não era o lugar de onde vinham: era um não-lugar, algo de que não queriam ser lembrados, uma aberração do gosto e da moral à qual nem no passado reconheciam existência.
Ora acontece, a propósito de românticos, que ando a reler «Os Maias», que tem o pertinente subtítulo «Episódios da Vida Romântica». E de facto: nos salões descritos por Eça toca-se Beethoven, Mendelssohn, Mozart e sobretudo Chopin; mas não se tocam os barrocos, nem nenhum compositor que não reflicta a sensibilidade romântica. A única referência que no romance se faz a Bach, por exemplo, ocorre numa conversa em Sintra entre Carlos da Maia, que não é um romântico, e o maestro Cruges, que também o não é. A atitude prevalecente entre as personagens de Eça em relação ao passado que para elas era recente - ao Padre António Vieira, a D. João V, aos Séculos XVII e XVIII - é um desdém condescendente: tudo o que não seja oitocentista é primitivo, atrasado, fora de moda, ridículo.
O Século XIX vivia prisioneiro da sua contemporaneidade. Não se distinguia, nesta particularidade, da quase totalidade da História humana. O Romantismo reverenciava o passado, é certo - mas um passado mítico, remoto, sem solução de continuidade com o presente. O passado vivo, imediato, activo, é uma descoberta da modernidade. E é moderna, por excelência, a ideia - expressa independentemente por Carlyle e por Emerson - que vivemos entre duas eternidades. O presente, para os modernos, não é mais do que a ténue fronteira que separa o passado do futuro que radica nele.
Não nos surpreende, hoje, que a modernidade tenha redescoberto Bach e Vivaldi, nem nos surpreende que o modernismo deplore a desagregação do tempo: não é tanto contra o passado que se afirma o espírito moderno, mas sim, em larga medida, contra a estreiteza da contemporaneidade e a «eternização do efémero».
Nuno Crato, um homem da modernidade e da Ciência, insurge-se na sua crítica ao «eduquês» contra a «pedagogia romântica e construtivista». Tem razão. Como têm razão, de um modo geral, os críticos do Zeitgeist que verberam a superficialidade e as superstições que são hoje a moda e a regra. Os espertos, os pós-modernos, os apóstolos da eficácia intransitiva, bem podem contra-atacar e remeter os seus críticos para a arcaica condição de selvagens reaccionários, mas erram o alvo: arcaicos e reaccionários são eles.
E assim podemos olhar com sereno desdém para José Sócrates, para Maria de Lurdes Rodrigues, para a caterva de economistas e políticos, gestores e yuppies, comentadores e jornalistas, pedagogos e assistentes sociais, gurus neoliberais e moralistas politicamente correctos, filósofos pós-modernos e burocratas da História; para todos aqueles que de um modo ou outro pretendem definir para nós, à nossa revelia, o nosso tempo; para os nossos contemporâneos que vivem entalados entre um passado que desconhecem e desprezam, a jusante, e a montante um futuro que não concebem a não ser como «mais do mesmo». Todos estes são nossos contemporâneos; são, especialmente, contemporâneos uns dos outros; modernos como eu, e como os meus dilectos leitores, é que não são de certeza.