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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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sábado, 6 de março de 2010

O que sabiam de economia os faraós


Quando alguém duvida da utilidade dalguma grande obra em projecto, é provável que a designe por obra faraónica. É um cliché, pois claro; e um cliché que já deve cansar a maioria das pessoas.

Não a mim. Os clichés não me incomodam. Pelo contrário, sou um apreciador e coleccionador de clichés, e uma das coisas que me dão prazer é decompô-los, observá-los, averiguar de onde vêm - e principalmente imaginar aonde levam e que implicações têm, se tomados à letra.

Claro que não é possível levar completamente à letra a expressão "obra faraónica". O adjectivo tem implícita uma metáfora: a obra a que se refere não é literalmente uma obra dos faraós, mas sim semelhante às dos faraós. Implícita está a ideia duma obra economicamente irracional; e implícita por extensão está a ideia que os faraós não sabiam nada de economia.

Concedo que não soubessem nada de finanças, como Jesus Cristo no poema de Fernando Pessoa. Esta ignorância tinha para eles uma desvantagem e uma vantagem. A desvantagem é que estavam privados dum instrumento conceptual de indubitável utilidade para compreender a realidade económica; a vantagem é que não corriam o risco de confundir a separação metodológica entre o âmbito das finanças e o da economia com uma separação real. Nunca lhes ocorreria, por exemplo, supor que um problema económico pode ser resolvido por meios exclusivamente financeiros.

Mas sabiam de economia, pelo menos na definição que dela dão os dicionários. Dispunham de um sistema de produção e consumo de bens e serviços, de circulação da riqueza e de redistribuição de rendimentos. E compreendiam este sistema; ou, se não eles, os seus escribas. Sabiam comparar custos e benefícios; apenas não tinham a mesma noção que nós do que constitui um custo e do que constitui um benefício.

O que levaria uma sociedade a incorrer no custo gigantesco de construir as pirâmides de Gizé? A vontade dos faraós, com certeza: há notícia de poucas sociedades em que o poder duma só pessoa estivesse tão perto de ser absoluto, e um poder quase absoluto conta para alguma coisa.

Isto levanta duas questões: se a vontade do faraó é suficiente, e se é racional.
A resposta à primeira questão parece-me evidente: a vontade do faraó não chega, é necessário o concurso doutras vontades. Nenhum governante que tenha amor à vida governa muito tempo, por mais perto do absoluto que esteja, sem o consenso doas governados. Não se entenda aqui por consenso a unanimidade, nem sequer o apoio activo de uma maioria: entenda-se antes a confluência de quatro condições: o apoio activo, organizado e determinado duma minoria, ainda que muito pequena; o poder pessoal de cada elemento desta minoria, consubstanciado, quer na riqueza, quer na força física, quer no conhecimento, quer no armamento, quer na capacidade estratégica, quer no prestígio de que goza ou no temor que inspira; o apoio passivo doutra minoria, necessariamente mais larga que a primeira; o consentimento ou a indiferença da maioria; e a ausência duma oposição organizada, determinada e poderosa.

O cálculo do faraó é racional. Perante o benefício esperado - nada menos que a imortalidade - o custo, por maior que seja, é sempre aceitável. Mas as pessoas que consentiram e colaboraram na construção das pirâmides também devem ter feito o cálculo dos seus próprios custos e dos seus próprios benefícios. No que toca os custos, sabemos quais foram: tempo, esforço e impostos. Sobre os benefícios esperados, pouco mais podemos fazer que especular.

Contrariamente ao que Hollywood nos ensinou, as pirâmides não foram construídas, ou não o foram predominantemente, por mão-de-obra escrava. Temos indícios, pelos cuidados postos nos funerais dos trabalhadores, que estes tinham um estatuto que não era o mais baixo da sociedade. Seria este estatuto um dos benefícios que contavam obter? Sabemos que as obras decorriam com maior intensidade durante os períodos em que as cheias do Nilo forçavam os agricultores à inactividade: talvez a perspectiva de serem alimentados três meses por ano pelos celeiros do faraó e não pelos seus próprios constituísse outro destes benefícios; ou talvez esperassem que a imortalidade do faraó redundasse a favor de todos, contribuindo magicamente para a regularidade das cheias e dos dias. Crenças como esta são hoje consideradas irracionais; mas, uma vez que existam, a decisão tomada com base nelas é perfeitamente racional: custos limitados, benefícios ilimitados e, graças ao aval dos deuses, risco zero.


O investimento feito nas pirâmides talvez tenha sido um dos mais racionais da história humana. E contudo os benefícios esperados não se realizaram: a avaliar pelo estado das múmias, os faraós mortos continuam, tanto quanto sabemos, mortos. E se as pirâmides não tivessem sido construídas o Sol, sabêmo-lo hoje, teria muito provavelmente continuado a nascer todas as manhãs; o Nilo teria continuado a ter cheias todos os anos.

O que os faraós nunca teriam podido imaginar é que os seus túmulos viessem a produzir, quatro mil e quatrocentos anos depois de construídos, uma parte considerável do rendimento do Egipto. Egipto este em que existem universidades, bancos, bolsas de valores e economistas que sabem imenso de finanças.

Imaginem: da decisão impecavelmente racional dos faraós não resultou nenhum dos benefícios esperados. Os benefícios reais só se começaram a realizar numa época em que a mesmíssima decisão teria sido considerada, e com razão, delirante. Go figure.

Se esta dupla contradição não constitui uma das grandes ironias da História, então o meu sentido da ironia tem deficiências graves. E se a sua explicação não representa um desafio irresistível para os economistas da Universidade do Cairo (pelo menos para esses), então os economistas de hoje sabem muito menos de economia do que sabiam os faraós e os seus escribas.

1 comentário:

luis tavares disse...

Desculpa discordar num aspecto...Estão mortos,é certo, mas alcançaram a imortalidade. Perduram na memória.