O sistema escolar público português não está pensado para proteger os Leandros: está pensado para proteger os bullies. Ao Governo, não interessa que se fale muito em violência nas escolas, e muito menos em violência generalizada. Aos bonzos da pedagogia não interessa que se distinga entre agressores e vítimas. O Estatuto do Aluno parte do princípio que todos os alunos são bonzinhos e que, a haver excepções, a culpa é dos professores. Às direcções das escolas não interessa que os seus estabelecimentos sejam vistos como problemáticos e desçam nos rankings. Um professor que tente contribuir isoladamente para que a violência na sua escola diminua sabe à partida que não contará com o apoio da hierarquia ou da tutela, mas sim com a sua oposição surda.
Podemos censurar um professor que, ao assistir a uma cena de violência, passe adiante e se limite a participar a ocorrência a "quem de direito"? Não podemos. Ninguém é obrigado a ser herói. Para intervir eficazmente e em tempo útil, o professor teria que ter, em grau mais alto ao que é exigível a um ser humano normal, um certo número de virtudes, a primeira das quais é a coragem.
Coragem para "fazer ondas" sabendo que quem "faz ondas" nunca é bem-visto e que a sua acção o vai prejudicar, em termos de avaliação do desempenho, no que toca o parâmetro "relações interpessoais". Coragem física para intervir pela força, se vir que isto é absolutamente necessário, sabendo que alguém nas redondezas pode estar armado. Coragem moral para se defender no processo disciplinar a que será inevitavelmente sujeito por ter usado a força.
Outra virtude de que necessita em alto grau é uma perspicácia acima do vulgar. A perspicácia pode ser aprendida e treinada, mas mesmo assim será inevitavelmente prejudicada se a atenção dos professor estiver dispersa por uma infinidade de responsabilidades e tarefas das quais não consegue abstrair para ver o que se passa à sua volta.
Relacionada com a perspicácia está a empatia. A probabilidade de uma vítima de bullying contar o que se passa a um adulto é sempre baixa, segundo as estatísticas; mas aumenta um pouco se o adulto em questão for visto por ela como capaz de empatia. A empatia nasce com a pessoa e não pode ser aprendida; mas pode ser desaprendida pela acção do seu maior inimigo, que é o stress.
Junta com a empatia vem a discrição. O aluno que faz confidências a um professor tem que ter a certeza que qualquer atitude que este venha a tomar será previamente negociada entre os dois - caso contrário, não as fará. Para que o professor se inteire do problema com todas as suas ramificações - e estes problemas têm sempre ramificações - não bastam cinco minutos de conversa de corredor: são precisas várias conversas sem limites de tempo previamente estabelecidos e em condições razoáveis de privacidade. Destas conversas não haverá registo que possa integrar um portefólio - e com isto chegamos a outra virtude, que é o desprendimento. E mais uma vez coragem, para enfrentar as acusações de qualquer pessoa mal intencionada que note que um dado professor e um dado aluno se encontram repetidamente a dois.
Discernimento, também, para optar entre ajudar ele próprio o aluno ou enviá-lo a alguém mais qualificado. Mas quem é esse alguém? O psicólogo da escola, se o houver? Mas o problema do aluno não é psicológico, é material. Não está na cabeça dele, está lá fora, no mundo real. E por outro lado foi àquele professor, e não a qualquer outra pessoa, que o aluno resolvei dirigir-se, não se sabe ao fim de quantas hesitações: qualquer gesto que parecesse um "passar da batata quente" poderia ser visto pelo aluno como uma traição e provocar nele um silêncio ainda mais cerrado.
Será então impossível a um professor combater o bullying apesar do sistema, ou mesmo contra ele? Impossível, não é: é apenas extremamente difícil, e tem um preço. Para o fazer, o professor não precisa de ser nenhum herói nem nenhum santo; mas tem que ser uma pessoa dotada de qualidades invulgares.
E não há organização nenhuma que possa funcionar apenas com pessoas invulgares.
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5 comentários:
Estive a ler e a pensar como tem razão. «A empatia nasce com a pessoa e não pode ser aprendida; mas pode ser desaprendida pela acção do seu maior inimigo, que é o stress.» A minha parece ter-se evaporado. E, este ano, deparei-me pela primeira vez na minha vida com uma situação com a qual não sei lidar - alunos de 7º ano que não fazem nada. Nem sequer tiram o caderno da mochila. E quando lhes peço, (ou ordeno) que o façam, dizem-me tranquilamente «Não.» E eu não tenho forma de os obrigar sequer a tirar o caderno da mochila, mas tenho que preencher intermináveis planos de recuperação para eles, quando o único plano de que precisavam seria fazer alguma coisa nas aulas. Talvez eu seja uma péssima professora mas confesso que, em 25 anos, isto nunca me tinha acontecido e confesso também que não sei lidar com isto.
Fui-me embora amargurada, como diz o fado, com o seu comentário. Por isso voltei.
Truques possíveis:
1.Dê-lhes 5 minutos para espreitarem para as mochilas, falarem de modo persuasivo com os materiais para que eles se disponham a saltar para as mesas.
Avise-os de que avaliará a capacidade de persuasão.
2.O material mais importante para levar para a aula é o recheio da cabeça. Explique-lhes isso e teste se o levaram. Se apresentam recheio rico, ignore o caderno.
Já experimentei esses «truques» e outros do mesmo estilo. As cabeças não têm recheio. Quando os cadernos foram persuadidos a sair da mochila, nada os persuadiu a persuadi-los a abrir-se. Estou a falar de catraios de 12 anos que não conseguem decifrar a própria letra (verfiquei-o quando lhes pedi que me lessem o que tinha escrito no teste e eu não conseguia ler).
Texto perfeito, como sempre.
Nan,
com tanto tempo de serviço era de prever que já tivesse usado este tipo de truques. Pena que nem sempre funcionem.
Não sei qual a disciplina que lecciona com a turma mas se os alunos têm essas dificuldades de base mais difícil se torna agarra-los.Para perceberem a urgência de tornarem legíveis as letras aqueles trabalhos de escrita em grupo e em roda podem funcionar. Para continuarem as frases que vão sendo deixadas, têm que conseguir ler o que os parceiros anteriores foram escrevendo. Costuma ser um trabalho mobilizador.
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