O texto seguinte foi publicado como comentário a um artigo de Hugo Mendes no Peão.
Caro Hugo:
Não me compete defender Francisco José Viegas, mas creio que onde você vê um ataque às Ciências da Educação não há ataque nenhum.
O que há é a ideia, que vai fazendo o seu caminho, que as inovações suscitadas por essas ciências devem ser aplicadas à prática concreta das escolas com a mesma extrema prudência com que são aplicadas à prática da medicina as descobertas da bioquímica e da farmacologia. Isto é exigir demais?
Também ninguém diz, que eu saiba, que a indisciplina e a violência são causadas pela pedagogia moderna. Agora que são facilitadas pelas pedagogias pós-modernas, lá isso são. A este propósito deixe-me discordar frontalmente da sua afirmação de que a violência e a indisciplina não são a mesma coisa. A indisciplina é sempre uma violência: exercida sobre os alunos que querem aprender e são impedidos pela força de o fazer.
Também não concordo com uma coisa que está implícita tanto no seu post como em alguns dos comentários: que os opositores das teorias pós-modernas da educação querem o regresso à escola autoritária do passado. Não querem tal; dão-se simplesmente conta que essa escola não foi substituída no presente pela escola democrática que todos queríamos mas por uma escola totalitária - e totalitária, desde logo, porque se arroga o direito e a missão de intervir sobre a «globalidade» do aluno. Uma escola verdadeiramente democrática terá que deslocar o seu foco da educação para o ensino. E se isto lhe parece demasiadamente conservador, responder-lhe-ei, com Hannah Arendt, que a escola, porque lhe compete antes de mais transmitir um património, tem em certa medida que ser conservadora para poder funcionar.
Concordo consigo quando diz que não vamos lá com mais reformas, mas tenho as minhas dúvidas de que possamos resolver a coisa com uma mudança de filosofia. Não é possível, numa sociedade complexa, basear uma política de ensino sobre uma filosofia única que seja suficientemente consensual para que as resistências geradas não a inviabilizem. A alternativa é estender a autonomia das escolas até ao ponto em que cada uma possa ter a sua própria filosofia educativa - o que implicaria a inexistência duma filosofia de ensino oficial imposta administrativamente; e isto implicaria, por sua vez, o quase desmantelamento da burocracia educativa que pesa sobre as escolas.
Finalmente: talvez você tenha razão sobre a percepção que existe de que as pedagogias modernas estão ligadas à esquerda. Mas essa percepção, se existe, não corresponde à realidade. O «pedagogicamente correcto», tal como o «politicamente correcto», é um falso humanismo e articula-se muito bem, como eu escrevi num post recente no meu blog, com as ideologias neoliberais que cultivam a desumanidade como estilo e como ética.
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2 comentários:
"A indisciplina é sempre uma violência: exercida sobre os alunos que querem aprender e são impedidos pela força de o fazer."
Não, é não - um exemplo: um aluno que, durante um teste, pega na sua folha de teste, a rasga e abandona a sala.
Isso é considerado "indisciplina", mas aonde é que impede quem quer de aprender.
Outro exemplo - 2 ou 3 alunos que, na fila de trás da sala, se põem a jogar à batalha naval. Provavelmente, também será considerado indisciplina, mas (a menos que digam "água" muito alto) não impede os outros de aprender.
Miguel:
Você acha que quando um aluno rasga a folha do teste e sai da sala, isto não tem repercussões sobre o resto da turma? Pois olhe que as tem, e a tantos níveis que não os posso enumerar todos. Desde logo pelas (várias) mensagens que este acto transmite; mas também pela inevitável desconcentração que provoca, e pelo stress acrescido que a hostilidade implícita no gesto (hostilidade à escola? ao professor? à matéria? ao conhecimento em geral? ao próprio teste? aos colegas?) causa aos outros alunos, que já estão sob tensão suficiente e não precisam de mais.
Uma alternativa mais cortês para com o professor e menos agressiva para com os outros alunos seria um pedido de licença para sair da sala.
E imagina você que quando dois ou três alunos se põem a jogar à batalha naval na fila de trás os da frente não se dão conta disto? E que não concluem naturalmente que jogar à batalha naval é uma opção? E que não se sentem injustiçados, mesmo que optem livremente por estar com atenção à aula, pelo facto de uns poderem jogar à batalha naval e outros não?
Não, meu caro. A violência na sala de aula vai muito para além da algazarra, do barulho e das agressões físicas. Pode ser muito mais subtil do que isto e nem por isso menos destrutiva.
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