Quem atingiu a idade adulta antes ou durante a década de 70 do século passado recorda-se, por certo, da enorme carga semântica então associada à expressão "ano 2000." O ano 2000 era o futuro, e era nele que projectávamos todas as nossas esperanças e os nossos medos; e praticamente ninguém resistia à tentação de fazer as suas previsões para essa data. Foi nessa altura que apareceu a profissão de "futurólogo", hoje parcialmente desacreditada, e foi nesta altura que as grandes empresas começaram a financiar think tanks mandatados para reflectir sobre aquilo a que se poderia chamar, com a devida vénia a Vieira e a Heinlein, a História do Futuro. Tão presente estava a ideia de futuro na década de setenta, e tão associada ao número mágico do fim do milénio, que ainda hoje algumas pessoas sofrem, como eu, duma espécie de dissociação cognitiva: o ano 2000 já pertence ao passado, mas apesar disto ainda simboliza vestigialmente o futuro.
Lembrei-me disto ao ler o que escreveram sobre o futuro - o futuro de hoje, e não o de há quarenta anos - dois reputadíssimos economistas: Gregory Clark e Paul Krugman. Nenhum deles é mais imune que qualquer de nós à tentação de fazer futurologia, embora ambos resistam a estabelecer como data mágica o ano 2100.
O que achei curioso nos dois textos, mas não surpreendente, foi o facto de preverem dois futuros quase opostos. Previsões contraditórias não são nada a que eu não estivesse habituado: a diferença, para mim, está em que agora sou mais velho e não me sinto na obrigação intelectual de arbitrar entre as duas.
Clark leva-se mais a sério que Krugman. O seu artigo parece dizer nas entrelinhas que, ou as coisas se passam como ele prevê, ou a alternativa é demasiado horrível para se imaginar. E o que prevê Clark? Basicamente, o fim do trabalho. Neste futuro só uma minoria qualificada terá acesso ao emprego. A maioria, inútil do ponto de vista económico mas não negligenciável do ponto de vista da sua capacidade disruptora, terá que ser subsidiada (outros diriam subornada) pelos que têm acesso ao trabalho ou à riqueza. Isto implicará um aumento inexorável dos impostos a que nem a sociedade americana, fundada sobre a resistência a estes, poderá resistir. Deste modo caberá ao capitalismo realizar, de um modo faseado e subreptício, a promessa comunista: de cada um conforme as suas capacidades, a cada um conforme as suas necessidades.
O artigo de Krugman, supostamente escrito em 2096, apresenta-nos um futuro radicalmente diferente deste, desde logo porque se apresenta como um exercício lúdico, relevante do puro prazer da especulação intelectual. O Século XXI, para Krugman, caracterizar-se-á por um crescente aumento do preço das matérias primas e pela crescente privatização e mercantilização de bens até agora comuns, como o ar e a água. Os governos venderão às empresas, e as empresas umas às outras, direitos sobre a poluição e sobre as externalidades negativas da sua actividade. As receitas desta venda tornar-se-ão tão vultuosas que o imposto sobre o rendimento acabará por ser abolido - exactamente ao contrário do que prevê Clark.
O preço da mobilidade individual crescerá tanto que as pessoas terão de novo necessidade de viver perto do lugar de trabalho. Consequentemente, as cidades voltarão a crescer.
Não haverá "sociedade da informação" nem "economia do conhecimento": a informação será tão fácil de produzir, manipular e distribuir que perderá a maior parte do seu valor de mercado e dará lugar, como hoje a agricultura, a muito poucos empregos. Este facto, conjugado com o facto de os seres humanos concretos não consumirem directamente informação, mas sim bens materiais, levará a uma perda de estatuto social e económico para os académicos e os letrados (incluindo os economistas) e ao correspondente ganho de estatuto para o trabalho manual qualificado, como o de canalizador, prestador de serviços domésticos ou auxiliar de lar de idosos.
Haverá, sim, uma "economia da celebridade". Os criadores culturais e científicos não derivarão os seus rendimentos dos seus direitos de autor - a facilidade da cópia tornará isto impossível - mas dos seus direitos de imagem, que utilizarão para vender produtos que não terão nada ou quase nada a ver com o que produziram directamente. (Não podemos deixar de pensar, a propósito desta previsão, no papel de Cristiano Ronaldo como vendedor de T-shirts.) Nem todos, é claro, terão acesso à celebridade, mas este facto desagradável será mitigado pela enorme diversidade social que levará à formação de inúmeras micro-sociedades dentro das quais muitas pessoas poderão ser célebres.
Qual é a probabilidade de a previsão de Krugman, ou a de Clark, se tornar realidade? Diminuta, direi eu. E aqui volto ao tema do "futuro passado" com que iniciei este texto: em que medida se cumpriram as previsões dos futurólogos e dos think tanks?
Os telefones portáteis, considerados uma impossibilidade física devido às limitações do espectro rádio-eléctrico, estão aí. Os computadores pessoais também: não custam fortunas, não ocupam enormes salas climatizadas e não são operados por técnicos de bata branca. A semana de trabalho de oito ou dez horas, prevista quase como uma inevitabilidade, não se materializou (ainda hoje não compreendo porquê). A União Soviética implodiu (talvez seja esta uma das razões). O petróleo e as outras matérias-primas não se esgotaram como previa o Clube de Roma. A percentagem de seres humanos com fome ainda é escandalosa, mas diminuiu em vez de aumentar. Não só ainda não chegámos a Marte, como nem sequer voltámos à Lua. A Aldeia Global de McLuhan está atomizada por clãs que se desconhecem e odeiam, e a Terceira Vaga de Toffler parece que afinal não dispensa a continuação da segunda.
Olhando para trás, vemos que os economistas, os cientistas sociais e os participantes nos think tanks erraram em quase tudo. Quem errou muito menos foram os romancistas, e no caso deles estamos a falar em previsões feitas, não nos anos 70, mas nos 40. Arthur C. Clarke previu, num conto de Ficção Científica, o satélite de comunicações geoestacionário; e quem hoje olhar à sua volta não terá dificuldade em encontrar no mundo actual numerosos elementos, quer do Nineteen Eighty-Four de Orwell, quer do Brave New World de Aldous Huxley. Menos óbvia, porém presente, é a realização parcial doutras distopias menos conhecidas, como Facial Justice de J. P. Hartley ou 1985 de Anthony Burgess. É estranho que nem Orwell nem Huxley tivessem previsto as armas nucleares ou a Guerra Fria, quando dispunham de elementos para isso; mas esta omissão é menor comparada com o muito em que acertaram.
Hoje, as melhores previsões do futuro (o que não significa as mais acertadas) podem talvez ser encontradas em narrativas cyberpunk como as de Neal Stephenson.
Quer isto dizer que não compensa ler os artigos de Clark e Krugman? Nem por sombras: como previsões, falharão quase de certeza; mas enquanto não falham são extremamente gratificantes de ler. De entre os dois, apostaria mais facilmente no de Krugman: não por ele ser necessariamente melhor economista, mas por ser, pelo menos neste texto, mais escritor.
Àqueles que mesmo assim ainda querem ter uma ideia do que nos espera, atrevo-me a dar este conselho: não percam tempo a ler os futurólogos; leiam antes os poetas.
(Reformulado às 22:25)
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1 comentário:
Excelente post. Os futurólogos erram quase sempre. O futuro é imprevisível. A história não evolui em linha recta.
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