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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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sábado, 15 de agosto de 2009

Maria João Pires ou Tony Carreira?

Assente a poeira sobre a decisão da pianista Maria João Pires de abandonar Portugal e ir viver para o Brasil, é tempo de a abordar nalguns aspectos colaterais da discussão que se seguiu.

A pequena tempestade blogosférica que esta decisão suscitou iniciou-se, como estarão lembrados, pelo texto lamentável que um fedelho publicou n'O Insurgente e repercutiu-se noutros blogues entre eles o Arrastão, sendo que o texto de Daniel Oliveira para que remete esta hiperligação mereceu dos seus leitores 95 comentários.

Quando o número de comentários atinge esta ordem de grandeza, é inevitável que comecem a enveredar por questões laterais ao debate. Uma lateralidade que eu achei particularmente interessante foi a que dizia respeito ao mérito relativo de artistas como Maria João Pires e Tony Carreira. Uma afirmação repetida, especialmente pelos trolls de direita, é que é impossível dizer que aquela tem mais "qualidade" do que este.

Assinalo, de passagem, que é curioso que a direita, tão avessa ao relativismo moral, recorra no plano estético a argumentos relativistas; mas, como a coerência e a consistência nunca foram ponto forte dos trolls, e como nesta particular série de comentários não vi intervir outra direita, passo adiante.

Também eu sou um relativista, a verdade seja dita. Não um relativista absoluto, o que seria um oxímoro, nem um relativista estúpido, dos que estão convencidos que tudo é igual a tudo; mas relativista no sentido em que toda a convicção tem por referência um ou mais critérios. De modo que me proponho sugerir uma série de critérios pelos quais se poderá aferir se Maria João Pires pode ou não ser considerada superior a Tony Carreira.

Primeiro critério: qualidade industrial vs. perfeição artesanal

Quando andei a seguir os cursos e as conferências da Associação Portuguesa para a Qualidade, depressa me apercebi que o conceito de "qualidade" proposto se poderia resumir, simplificando, a algo como "conformidade com um caderno de encargos". Esta noção de qualidade é o que permite medi-la em pontos percentuais, mas é também o que a torna pouco útil para a minha actividade, que é o ensino. O ensino, como a arte, não é industrial, mas artesanal; o paradigma por que se rege não pode ser a "qualidade", mas a perfeição; e esta é inatingível. Tony Carreira, como produto industrial que é, pode perfeitamente atingir os 100% de qualidade, mas o preço que paga por isso é que a partir deste ponto já não pode melhorar. Mas a arte de Maria João Pires, como a de qualquer outro pianista, é sempre imperfeita, ou seja, pode sempre melhorar: daqui resulta, não uma inferioridade em relação a Tony Carreira, mas uma superioridade. (Uma empresa industrial pode sempre ter em conta, em adição ao paradigma da qualidade, o paradigma da perfeição; e isto pode mesmo constituir uma vantagem competitiva, como mostra a estratégia seguida pela Daimler-Benz na sequência do aparecimento do Lexus no mercado automóvel; mas isto setria matéria para outro texto.)

Segundo critério: a raridade

Não sei quantos bebés nascem anualmente em Portugal com a capacidade inata de virem a ser como Tony Carreira: um em dez? Um em cem? Um em mil? Nem sei quantos nascem com a potencialidade de serem como Maria João Pires: um em cem mil? Um num milhão? O que me arrisco a presumir, sem temer contradição séria, é que os segundos são muito mais raros que os primeiros. Se Maria João Pires se vai embora, a sua substituição por alguém de igual craveira é incerta e imprevisível: ninguém sabe se poderá ocorrer daqui a vinte anos ou daqui a cinquenta; e mesmo que apareça algum pianista tão bom como ela ou melhor, será sempre diferente dela porque nestas matérias não há estandardização possível.

Mas, se Tony Carreira desaparecer, a indústria discográfica não precisará de mais que uns meses para pôr no mercado um produto idêntico: umas semanas para o casting, umas lições rudimentares de canto, um tratamento para regularizar e branquear os dentes, um pouco de dieta e de ginásio, uma campanha publicitária, e já está. Se o raro e o único têm mais valor que o corriqueiro, Maria João Pires é superior.

Terceiro critério: trabalho e estudo

Por mais talento inato que tenha, ninguém atinge a craveira duma Maria João Pires sem muitos anos de estudo. É preciso começar na infância e continuar sem interrupções até à idade adulta; são precisos contactos com mestres dispostos a partilhar segredos (Sequeira Costa ainda hoje usa técnicas de dedilhação inventadas por Viana da Mota e que mais ninguém usa a não ser ele), são precisos workshops e pós-graduações; é preciso estudo diário ao longo de toda a vida; é preciso voltar periodicamente a ter lições para desfazer vícios de execução resultantes do peso dado a um determinado reportório. e tudo isto para conseguir, no máximo, o reconhecimento que uma dada interpretação duma dada obra é a referência canónica a nível mundial. (No caso de Sequeira Costa, para voltar a ele, esta obra é o 3º Concerto para Piano e Orquestra de Rachmaninoff; talvez ele gostasse que fosse a Sonata ao Luar de Beethoven, mas não é.)

Se valorizamos o esforço continuado e metódico sobre o localizado e rotineiro; ou o elaborado sobre o rudimentar; ou o extremamente difícil sobre o relativamente fácil, então Maria João Pires é superior a Tony Carreira. Muito superior. Assim como saber ouvir música clássica, por pressupor uma educação do ouvido que exige esforço, constitui uma superioridade sobre gostar de música pimba. Mas é claro que somos livres de não dar valor, nem à busca da perfeição, nem ao talento, nem à raridade, nem ao estudo, nem ao trabalho, nem ao esforço. Afinal de contas vivemos na era do relativismo.

3 comentários:

Anónimo disse...

Recordo-me do António, anos 90, andava com duas loiras num BMW branco descapotável, trazia uma cassete no bolso e fazia playback enquanto atirava postais com a sua fotografia ao povo de Pinela no concelho de Bragança...enfim.

Colocar o nome de Maria João Pires ao lado do António, é um insulto à inteligência e bom gosto.

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Colocar lado a lado os nomes de Maria João Pires e Tony Carreira só é um insulto à inteligência e ao bom gosto se forem postos em pé de igualdade.

Foi isso o que fizeram alguns comentadores na blogosfera, e foi contra isso que me insurgi neste texto.

Anónimo disse...

«...se forem postos em pé de igualdade. Foi isso o que fizeram alguns comentadores na blogosfera...»

Não é este o país do Chico-esperto?
Tony, é o melhor retrato do país que somos. Não me surpreende. A mediocridade é-nos impingida como produto de altíssima qualidade. Afinal, o poder sempre fez uso dos mais variados métodos para imbecilizar as massas.