Há décadas que somos governados por uma pequena clique - umas centenas, no máximo uns poucos milhares de pessoas - que se vai revezando nos órgãos de soberania, na banca, na comunicação social, na alta burocracia, na construção civil, nos grandes escritórios de advogados e no futebol. Esta clique está representada politicamente, num jogo permanente de rivalidades e alianças, pelos dois partidos do Bloco Central dos Interesses: o PSD e o PS (e muito residualmente por um ou outro nome do CDS/PP).
Isto justificaria por si só, para qualquer cidadão a quem incomode sentir no pescoço a pata alheia, a recusa liminar de votar em qualquer destes partidos.
Não obstante, quero entregar-me agora, num exercício lúdico de pura especulação, à discussão das condições em que poderia, como homem da esquerda democrática, votar PS.
Imaginemos, por exemplo, que o PS se comprometia, com objectivos quantificados e com a competente calendarização, a reduzir substancialmente os falsos recibos verdes. Seria louvável; mas como poderia eu acreditar na sinceridade deste compromisso quando a própria Administração Pública se obstina em dar o mau exemplo? Ou que se comprometia, mais uma vez com números e com prazos, a reforçar significativamente os poderes e os meios da Inspecção do Trabalho: como poderia eu confiar nisto, quando este organismo comete ele próprio as ilegalidades que lhe compete combater?
Suponhamos ainda que o próximo governo se comprometia a deixar em paz a "educação" e se propunha melhorar o ensino; que se comprometia a medir o êxito desta política pelo que os alunos efectivamente aprendessem e não pela manipulação de estatísticas; que ouvia a voz e aceitava a ajuda dos professores, muitos dos quais estão disponíveis, para melhorar o nível cultural dos portugueses, em vez de transformar em inimigos aliados que seriam preciosos para levar a bom termo essa política. Que foi feito da confiança recíproca que isto pressupõe?
Ou que diminuía substancialmente as custas judiciais de modo a que os litígios não estivessem ganhos à partida pelos mais ricos; ou que confiava a acção legislativa ao Parlamento, que é quem tem legitimidade para ela, em vez de encomendar as leis a escritórios de advogados que as cozinham em seu próprio benefício; que apresentava um plano calendarizado, claro e credível para combater a litigação fútil ou abusiva, especialmente por parte do próprio Estado, que litiga à borla. Alguém acredita que os dirigentes e os candidatos do PSD/PS são santos, dispostos a sacrificar pelo bem da República os seus próprios rendimentos, poder e estatuto?
Ah, mas há a governabilidade. Ah, mas há o perigo de a direita subir ao poder. É o que dizem os propagandistas do PS. Sobre a chantagem da governabilidade, estamos conversados: nenhum governo, por mais maioritário que seja, por mais que esteja aliado à oligarquia, consegue governar por muito tempo contra a sociedade civil. Este que agora termina o mandato é prova disto. Em contrapartida, qualquer governo que tenha do seu lado a sociedade civil consegue governar, mesmo em minoria, se se dispuser a fazê-lo da maneira mais democrática e menos cómoda, ou seja: negociando.
Quanto ao perigo da direita, é outra chantagem ainda mais patética. O que nos dizem, com efeito, é: "nós somos maus, mas os outros são piores". É verdade que uma vitória do PSD seria má, muito má; mas não tão má que o medo dela me leve a votar PS. Desta vez não escolho o mal menor, até porque a diferença, a existir, é mínima; nem me resigno a que o óptimo seja inimigo do bom ou o mau inimigo do péssimo.
Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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domingo, 30 de agosto de 2009
sábado, 29 de agosto de 2009
O legado de Maria de Lurdes Rodrigues
O mandato de Maria de Lurdes Rodrigues no ministério da educação teve a característica, aparentemente paradoxal, de ser simultaneamente de continuidade e de ruptura. Esta é mais fácil de descrever do que aquela, uma vez que consistiu basicamente em duas políticas, ambas com raízes extrínsecas à educação e visando fins políticos fora desta área.
A primeira destas políticas - a demonização dos professores - serviu sobretudo o projecto político pessoal de José Sócrates. Tratava-se de arranjar um inimigo interno para congregar a população em torno de um líder supostamente forte (refira-se, a talhe de foice, que expressões como "população" e "opinião pública", relevantes da geografia, da sociologia, da comunicação e do marketing político, calham melhor ao estilo deste governo que a palavra "cidadãos", relevante da política na sua vertente nobre).
A segunda política de aparente ruptura foi, por um lado, uma política de "o que parece é", e por outro uma política de favorecimento económico e político a diversas clientelas. Refiro-me às chamadas reformas, tecnológicas ou administrativas, que não tiveram nem estão a ter outro efeito que não seja dar dinheiro a ganhar aos parceiros do Centrão no regime de crony capitalism que se está a consolidar no nosso país. Vejam-se, a título de exemplo, as manigâncias com o Magalhães e as adjudicações referentes à requalificação do parque escolar - negócios de muitos milhões a que só alguns eleitos têm acesso. Noutra vertente, a política, o novo modelo de gestão veio satisfazer os apetites de caciques locais, de quem se espera agora, como contrapartida, um maior empenho político no enraizamento do PSD e do PS por via da multiplicação de comissariados políticos.
De tudo isto, só a melhoria das condições de conforto nas escolas se poderá traduzir num melhor ensino, mas mesmo assim muito menos do aconteceria que se os projectos de engenharia e arquitectura tivessem sido distribuídos a mais empresas e mais pequenas, de um modo mais transparente, e obedecendo a cadernos de encargos na elaboração dos quais tivessem participado os profissionais no terreno, que são quem melhor sabe o que faz falta.
Mas a melhoria do ensino nunca fez parte dos objectivos destas políticas; e mesmo a melhoria da "educação" foi, quando muito, um objectivo subsidiário.
Se as reformas e as rupturas tiveram origens e perseguiram objectivos exteriores ao sistema educativo, as políticas de continuidade nasceram dentro do sistema e tiveram como objectivo agir sobre ele. Maria de Lurdes Rodrigues nunca rompeu com o gigantismo do seu Ministério, nunca afrontou os interesses duma burocracia que tem que produzir sempre mais leis e regulamentos, sem cuidar da sua qualidade, utilidade, coerência ou racionalidade, para manter os empregos (nos escalões mais baixos da hierarquia) ou o poder (nos escalões mais altos). Manteve, sem quaisquer modificações, uma política de manuais escolares que não serve os alunos, os pais ou os professores, mas se enquadra perfeitamente nos interesses dos editores e livreiros. Promoveu e reforçou as correntes pedagogistas mais convenientes ao interesse das Escolas Superiores de Educação privadas.
Na sua complacência criminosa com o gigantismo burocrático, com o delírio pedagógico e com o incivismo que grassa nas escolas, Maria De Lurdes Rodrigues não se distinguiu substancialmente de muitos dos seus antecessores. A diferença decisiva está em que estes, embora criados no caldo de cultura das ESE's e do sociologismo, tinham ligações culturais e conceptuais ao exterior deste mundo, ligações estas que lhes permitiam reconhecer pelo menos a existência de algo para além dele. Maria de Lurdes Rodrigues, pelo contrário, só existe neste pequeno mundo e não acredita que haja alguma coisa fora dele. E, não conhecendo outro mundo, também não conhece o seu. Nunca afrontaria a Nomenklatura tecnoburocrática do seu ministério porque nem sequer se dá conta da sua existência - tal como um peixe não se dá conta da água.
Por isso foi capaz de assinar um Estatuto da Carreira Docente em que as palavras "ensino" e "ensinar" não aparecem uma única vez - nem sequer na parte em que são enumeradas as vinte e nove tarefas e competências dos professores.
O que deixa Maria de Lurdes Rodrigues para o futuro? Que dirá dela a História?
Dirá, provavelmente, que introduziu mais irracionalidade num sistema que já era irracional. Que se propôs recompensar os bons professores e penalizar os maus, mas impôs para isso uma ferramenta que tem precisamente o efeito oposto. De futuro, se se mantiver o sistema de avaliação e de carreiras que inventou (ou foi copiar ao Chile), os professores beneficiados serão os mais burocratas, os mais carreiristas, os mais chico-espertos, os mais ignorantes, e sobretudo os mais integrados nas redes locais e nacionais de tráfico de influências.
Dirá a História, provavelmente, que foi ela quem abriu aos bárbaros as portas da cidade, entregando nas mãos dos Isaltinos e dos Ferreira Torres uma das últimas instituições públicas portuguesas que ainda estavam relativamente imunes ao caciquismo e à corrupção. Se a civilização é, como se diz, uma corrida entre a escola e a barbárie, Maria de Lurdes Rodrigues será a ministra que pôs peias e freios à escola. Não foi ministra da educação, foi ministra da barbárie.
A primeira destas políticas - a demonização dos professores - serviu sobretudo o projecto político pessoal de José Sócrates. Tratava-se de arranjar um inimigo interno para congregar a população em torno de um líder supostamente forte (refira-se, a talhe de foice, que expressões como "população" e "opinião pública", relevantes da geografia, da sociologia, da comunicação e do marketing político, calham melhor ao estilo deste governo que a palavra "cidadãos", relevante da política na sua vertente nobre).
A segunda política de aparente ruptura foi, por um lado, uma política de "o que parece é", e por outro uma política de favorecimento económico e político a diversas clientelas. Refiro-me às chamadas reformas, tecnológicas ou administrativas, que não tiveram nem estão a ter outro efeito que não seja dar dinheiro a ganhar aos parceiros do Centrão no regime de crony capitalism que se está a consolidar no nosso país. Vejam-se, a título de exemplo, as manigâncias com o Magalhães e as adjudicações referentes à requalificação do parque escolar - negócios de muitos milhões a que só alguns eleitos têm acesso. Noutra vertente, a política, o novo modelo de gestão veio satisfazer os apetites de caciques locais, de quem se espera agora, como contrapartida, um maior empenho político no enraizamento do PSD e do PS por via da multiplicação de comissariados políticos.
De tudo isto, só a melhoria das condições de conforto nas escolas se poderá traduzir num melhor ensino, mas mesmo assim muito menos do aconteceria que se os projectos de engenharia e arquitectura tivessem sido distribuídos a mais empresas e mais pequenas, de um modo mais transparente, e obedecendo a cadernos de encargos na elaboração dos quais tivessem participado os profissionais no terreno, que são quem melhor sabe o que faz falta.
Mas a melhoria do ensino nunca fez parte dos objectivos destas políticas; e mesmo a melhoria da "educação" foi, quando muito, um objectivo subsidiário.
Se as reformas e as rupturas tiveram origens e perseguiram objectivos exteriores ao sistema educativo, as políticas de continuidade nasceram dentro do sistema e tiveram como objectivo agir sobre ele. Maria de Lurdes Rodrigues nunca rompeu com o gigantismo do seu Ministério, nunca afrontou os interesses duma burocracia que tem que produzir sempre mais leis e regulamentos, sem cuidar da sua qualidade, utilidade, coerência ou racionalidade, para manter os empregos (nos escalões mais baixos da hierarquia) ou o poder (nos escalões mais altos). Manteve, sem quaisquer modificações, uma política de manuais escolares que não serve os alunos, os pais ou os professores, mas se enquadra perfeitamente nos interesses dos editores e livreiros. Promoveu e reforçou as correntes pedagogistas mais convenientes ao interesse das Escolas Superiores de Educação privadas.
Na sua complacência criminosa com o gigantismo burocrático, com o delírio pedagógico e com o incivismo que grassa nas escolas, Maria De Lurdes Rodrigues não se distinguiu substancialmente de muitos dos seus antecessores. A diferença decisiva está em que estes, embora criados no caldo de cultura das ESE's e do sociologismo, tinham ligações culturais e conceptuais ao exterior deste mundo, ligações estas que lhes permitiam reconhecer pelo menos a existência de algo para além dele. Maria de Lurdes Rodrigues, pelo contrário, só existe neste pequeno mundo e não acredita que haja alguma coisa fora dele. E, não conhecendo outro mundo, também não conhece o seu. Nunca afrontaria a Nomenklatura tecnoburocrática do seu ministério porque nem sequer se dá conta da sua existência - tal como um peixe não se dá conta da água.
Por isso foi capaz de assinar um Estatuto da Carreira Docente em que as palavras "ensino" e "ensinar" não aparecem uma única vez - nem sequer na parte em que são enumeradas as vinte e nove tarefas e competências dos professores.
O que deixa Maria de Lurdes Rodrigues para o futuro? Que dirá dela a História?
Dirá, provavelmente, que introduziu mais irracionalidade num sistema que já era irracional. Que se propôs recompensar os bons professores e penalizar os maus, mas impôs para isso uma ferramenta que tem precisamente o efeito oposto. De futuro, se se mantiver o sistema de avaliação e de carreiras que inventou (ou foi copiar ao Chile), os professores beneficiados serão os mais burocratas, os mais carreiristas, os mais chico-espertos, os mais ignorantes, e sobretudo os mais integrados nas redes locais e nacionais de tráfico de influências.
Dirá a História, provavelmente, que foi ela quem abriu aos bárbaros as portas da cidade, entregando nas mãos dos Isaltinos e dos Ferreira Torres uma das últimas instituições públicas portuguesas que ainda estavam relativamente imunes ao caciquismo e à corrupção. Se a civilização é, como se diz, uma corrida entre a escola e a barbárie, Maria de Lurdes Rodrigues será a ministra que pôs peias e freios à escola. Não foi ministra da educação, foi ministra da barbárie.
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
De como o aproveitamento escolar foi sorrateiramente transformado em "sucesso" (actualizado)
O meu saudoso Professor Paulo Quintela costumava dizer, a quem lhe falasse em sucesso, que "sucesso" é acontecimento ou parto; na outra acepção diz-se, em português, "êxito".
Cultor erudito das línguas, literaturas, artes e pensamento dos países germânicos e anglo-saxónicos, não deixava por isso Paulo Quintela de exigir de si próprio e dos seus discípulos um uso correcto, económico e exacto da língua portuguesa. Imagino o sarcasmo de que cobriria, se fosse vivo, as importações para o jargão empresarial e político português do já de si paupérrimo inglês tecnoburocrata. Imagino a opinião que teria - ele, um socialista de sempre - do Engº José Sócrates e da Drª. Maria de Lurdes Rodrigues.
Mas Paulo Quintela talvez se enganasse. A palavra "sucesso" não significava exactamente, já então, o mesmo que êxito. Quem tem êxito, tem-no em alguma coisa; tem-no num empreendimento qualquer, seja ele a subida do Evereste, seja a obtenção de um doutoramento, seja o fecho vantajoso de um negócio. Já o sucesso pode ser obtido sem outra referência que não seja o próprio sucesso. No nosso mundo intransitivo - alguns chamar-lhe-iam Sociedade do Espectáculo - o sucesso consiste em ter sucesso.
Não admira, assim, que no mundo do ensino o conceito de "aproveitamento" tenha sido paulatinamente substituído pelo de "sucesso". Nos diplomas e nos certificados escrevia-se que determinado aluno tinha frequentado com aproveitamento o ano tal de tal curso. Isto subentendia um contrato entre o Estado e o aluno: uma parte fornecia ensino gratuito ou quase, a outra comprometia-se a aproveitar esta oferta. E o ensino aproveita-se aprendendo.
O sucesso não é tão exigente, nem em matéria do bem fornecido pelo Estado, nem das contrapartidas que se esperam do aluno. O Estado já não ensina: educa. E ao aluno não se pede que contribua para este esforço com outra coisa que não seja a presença física em pelo menos algumas "actividades".
E desta matéria se fazem as estatísticas. No balanço que José Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues fizeram da política educativa na legislatura que agora termina, o "combate ao insucesso" apareceu de novo estreitamente ligado ao combate ao abandono escolar.
Compreende-se que assim seja: no mundo virtual e intransitivo deste governo, o sucesso escolar de um aluno consiste e esgota-se em permanecer na escola.
Cultor erudito das línguas, literaturas, artes e pensamento dos países germânicos e anglo-saxónicos, não deixava por isso Paulo Quintela de exigir de si próprio e dos seus discípulos um uso correcto, económico e exacto da língua portuguesa. Imagino o sarcasmo de que cobriria, se fosse vivo, as importações para o jargão empresarial e político português do já de si paupérrimo inglês tecnoburocrata. Imagino a opinião que teria - ele, um socialista de sempre - do Engº José Sócrates e da Drª. Maria de Lurdes Rodrigues.
Mas Paulo Quintela talvez se enganasse. A palavra "sucesso" não significava exactamente, já então, o mesmo que êxito. Quem tem êxito, tem-no em alguma coisa; tem-no num empreendimento qualquer, seja ele a subida do Evereste, seja a obtenção de um doutoramento, seja o fecho vantajoso de um negócio. Já o sucesso pode ser obtido sem outra referência que não seja o próprio sucesso. No nosso mundo intransitivo - alguns chamar-lhe-iam Sociedade do Espectáculo - o sucesso consiste em ter sucesso.
Não admira, assim, que no mundo do ensino o conceito de "aproveitamento" tenha sido paulatinamente substituído pelo de "sucesso". Nos diplomas e nos certificados escrevia-se que determinado aluno tinha frequentado com aproveitamento o ano tal de tal curso. Isto subentendia um contrato entre o Estado e o aluno: uma parte fornecia ensino gratuito ou quase, a outra comprometia-se a aproveitar esta oferta. E o ensino aproveita-se aprendendo.
O sucesso não é tão exigente, nem em matéria do bem fornecido pelo Estado, nem das contrapartidas que se esperam do aluno. O Estado já não ensina: educa. E ao aluno não se pede que contribua para este esforço com outra coisa que não seja a presença física em pelo menos algumas "actividades".
E desta matéria se fazem as estatísticas. No balanço que José Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues fizeram da política educativa na legislatura que agora termina, o "combate ao insucesso" apareceu de novo estreitamente ligado ao combate ao abandono escolar.
Compreende-se que assim seja: no mundo virtual e intransitivo deste governo, o sucesso escolar de um aluno consiste e esgota-se em permanecer na escola.
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Janela de Overton, ou: O Centro Conquista-se nos Extremos
O meu primeiro contacto com o conceito que dá o título a este artigo é muito recente: data ainda deste ano. Penso que encontrei a referência no blogue de Paul Krugman, The Conscience of a Liberal; mas ao pesquisar neste blogue não consegui encontrá-la de novo.
Segundo a Wikipedia, 'A Janela de Overton é um conceito de teoria política a que foi dado o nome do seu criador, Jack Overton, antigo Vice-Presidente do Mackinac Center for Public Policy. Este conceito descreve uma "janela" no conjunto de reacções da opinião pública às ideias presentes no discurso político, num espectro de todas as opções públicas possíveis sobre qualquer questão.
Overton descreve um método que permite deslocar esta janela de modo a colocar no âmbito da discussão possível ideias anteriormente excluídas, excluindo ao mesmo tempo ideias previamente aceitáveis. A técnica consiste em promover ideias ainda mais inaceitáveis do que as anteriormente tidas por marginais. Isto faz com que as ideias anteriormente marginais pareçam menos extremas, e consequentemente aceitáveis.
A escala de aceitação pública duma dada ideia pode ser descrita aproximadamente deste modo:
Impensável
Radical
Aceitável
Sensata
Consensual
Determinante de políticas públicas.'
Procurando no Google referências em português a este conceito, a mais recente que encontrei estava num blogue brasileiro, O Hermenauta e datava do fim de 2007. As outras duas referências encontram-se, como o próprio site faz notar, em dois blogues portugueses: a primeira, de Julho de 2006, no Designorado; e a segunda, de Maio de 2007, no Peão.
Outras leituras úteis, indicadas pela Wikipedia e/ou pelos blogues referidos, são:
An Introduction to the Overton Window of Political Possibilities
Daily Kos article on the Overton window
W3C and the Overton window - includes a clear explanation
The Overton Window, Illustrated
É pena que o conceito não seja mais utilizado em Portugal e no Brasil, tendo em conta a sua utilidade para explicar certos fenómenos intrigantes, como o estatuto de "sabedoria convencional" de que gozam certos delírios neoliberais, como a privatização de tudo o que é público, a desregulação radical do mercado de trabalho e a emergência aparentemente pacífica dum "capitalismo de expropriação" que não defende, antes ataca, o direito à propriedade privada (para já não falar na pública); ou a misteriosa identificação do PS com a "esquerda", ou a do BE com a "extrema-esquerda utópica" quando as suas propostas não vão muito mais longe do que as medidas muito pragmáticas, de índole social-democrata, que foram aplicadas na generalidade dos países democráticos no período posterior à 2ª Grande Guerra, conduzindo ao período de crescimento e prosperidade conhecido como "os Trinta Anos Gloriosos."
As técnicas fundadas na Janela de Overton têm sido utilizadas sobretudo pela direita para fabricar um novo centro. O êxito desta operação pode medir-se pelo número de políticas públicas anteriormente impensáveis e hoje consensuais, sem que deste consenso resulte qualquer benefício para o interesse público.
Mas se o centro político pôde ser deslocado para a direita, isto significa que também pode ser deslocado para a esquerda. Para tal é necessária uma estratégia de defesa - denunciar e combater o radicalismo de direita - e uma estratégia de ataque - definir um novo radicalismo de esquerda. No more Mr. Nice Guy. Diz a direita que a esquerda é utópica demais; cabe à esquerda decidir se não será, pelo contrário e para sua desvantagem, insuficientemente utópica.
Segundo a Wikipedia, 'A Janela de Overton é um conceito de teoria política a que foi dado o nome do seu criador, Jack Overton, antigo Vice-Presidente do Mackinac Center for Public Policy. Este conceito descreve uma "janela" no conjunto de reacções da opinião pública às ideias presentes no discurso político, num espectro de todas as opções públicas possíveis sobre qualquer questão.
Overton descreve um método que permite deslocar esta janela de modo a colocar no âmbito da discussão possível ideias anteriormente excluídas, excluindo ao mesmo tempo ideias previamente aceitáveis. A técnica consiste em promover ideias ainda mais inaceitáveis do que as anteriormente tidas por marginais. Isto faz com que as ideias anteriormente marginais pareçam menos extremas, e consequentemente aceitáveis.
A escala de aceitação pública duma dada ideia pode ser descrita aproximadamente deste modo:
Impensável
Radical
Aceitável
Sensata
Consensual
Determinante de políticas públicas.'
Procurando no Google referências em português a este conceito, a mais recente que encontrei estava num blogue brasileiro, O Hermenauta e datava do fim de 2007. As outras duas referências encontram-se, como o próprio site faz notar, em dois blogues portugueses: a primeira, de Julho de 2006, no Designorado; e a segunda, de Maio de 2007, no Peão.
Outras leituras úteis, indicadas pela Wikipedia e/ou pelos blogues referidos, são:
An Introduction to the Overton Window of Political Possibilities
Daily Kos article on the Overton window
W3C and the Overton window - includes a clear explanation
The Overton Window, Illustrated
É pena que o conceito não seja mais utilizado em Portugal e no Brasil, tendo em conta a sua utilidade para explicar certos fenómenos intrigantes, como o estatuto de "sabedoria convencional" de que gozam certos delírios neoliberais, como a privatização de tudo o que é público, a desregulação radical do mercado de trabalho e a emergência aparentemente pacífica dum "capitalismo de expropriação" que não defende, antes ataca, o direito à propriedade privada (para já não falar na pública); ou a misteriosa identificação do PS com a "esquerda", ou a do BE com a "extrema-esquerda utópica" quando as suas propostas não vão muito mais longe do que as medidas muito pragmáticas, de índole social-democrata, que foram aplicadas na generalidade dos países democráticos no período posterior à 2ª Grande Guerra, conduzindo ao período de crescimento e prosperidade conhecido como "os Trinta Anos Gloriosos."
As técnicas fundadas na Janela de Overton têm sido utilizadas sobretudo pela direita para fabricar um novo centro. O êxito desta operação pode medir-se pelo número de políticas públicas anteriormente impensáveis e hoje consensuais, sem que deste consenso resulte qualquer benefício para o interesse público.
Mas se o centro político pôde ser deslocado para a direita, isto significa que também pode ser deslocado para a esquerda. Para tal é necessária uma estratégia de defesa - denunciar e combater o radicalismo de direita - e uma estratégia de ataque - definir um novo radicalismo de esquerda. No more Mr. Nice Guy. Diz a direita que a esquerda é utópica demais; cabe à esquerda decidir se não será, pelo contrário e para sua desvantagem, insuficientemente utópica.
domingo, 23 de agosto de 2009
Prémio Seu blog é viciante
O Rui Herbon, d'A Escada de Penrose, acaba de me atribuir o prémio representado por este selo. As regras que o prémio acarreta são as seguintes:
1- Colocar o selo no blogue;
2- Indicar 10 blogues que considero viciantes;
3- Informar os indicados;
4- Publicar no blogue três coisas que pretendo fazer no futuro.
Três coisas que pretendo fazer no futuro:
1) inflectir pouco a pouco a orientação do blogue para a intenção inicial, que consistia em falar de leituras;
2) sem prejuízo do que disse acima, continuar a reflectir sobre política e educação numa perspectiva radical, ou seja, partindo de posições de princípio e distanciando-me um pouco das polémicas correntes;
3) dedicar alguma atenção à temática do ambiente, ligando-a à da racionalidade e do pensamento crítico.
Os blogues que nomeio são, por ordem alfabética, os seguintes:
A Natureza do Mal
Ao Longe os Barcos de Flores
Câmara dos Lordes
Da Minha Profunda Ignorância
Delito de Opinião
Diz que não gosta de música clássica?
Está de Velho!
Ladrões de Bicicletas
O Bengalão
Vade Retro
1- Colocar o selo no blogue;
2- Indicar 10 blogues que considero viciantes;
3- Informar os indicados;
4- Publicar no blogue três coisas que pretendo fazer no futuro.
Três coisas que pretendo fazer no futuro:
1) inflectir pouco a pouco a orientação do blogue para a intenção inicial, que consistia em falar de leituras;
2) sem prejuízo do que disse acima, continuar a reflectir sobre política e educação numa perspectiva radical, ou seja, partindo de posições de princípio e distanciando-me um pouco das polémicas correntes;
3) dedicar alguma atenção à temática do ambiente, ligando-a à da racionalidade e do pensamento crítico.
Os blogues que nomeio são, por ordem alfabética, os seguintes:
A Natureza do Mal
Ao Longe os Barcos de Flores
Câmara dos Lordes
Da Minha Profunda Ignorância
Delito de Opinião
Diz que não gosta de música clássica?
Está de Velho!
Ladrões de Bicicletas
O Bengalão
Vade Retro
Moralismo, moral e tecnocracia
A tecnocracia é a ditadura dos meios. Contrariamente ao que vulgarmente se pensa, o tecnocrata não é um realista pragmático; não pensa que os fins justificam os meios; pensa, sim, que os fins são irrelevantes, ou indetermináveis, ou que consistem na perpétua e circular optimização dos meios. Neste sentido, o tecnocrata é um pós-moderno e um relativista radical.
Para o tecnocrata, a acção esgota-se na técnica e os instrumentos esgotam-se na sua operação. Diz o tecnocrata: é preciso ligar todas as escolas à Internet. Para quê? Ora, para quê! (surpreende-se o tecnocrata.) Para ficarem ligadas! Diz o tecnocrata que as empresas servem para produzir riqueza, isto é, valor útil; mas o que lhe interessa não é o valor, mas sim a expressão abstracta do valor, mesmo que inútil: ou seja, o lucro. Mesmo que virtual.
O universo do tecnocrata é abstracto e intransitivo: os valores que reconhece são instrumentais e não têm objecto. Nada vale por si mesmo. O tecnocrata dá valor à eficácia independentemente do propósito e à produção independentemente do produto. Por isso desvaloriza a política, actividade que lhe parece irrelevante porque é de sua natureza estabelecer, em vez de objectivos determinados pela técnica, fins determinados pela vontade, pela moral e pelo desejo.
Por isso o tecnocrata chama aos activistas políticos, especialmente aos de esquerda, voluntaristas, moralistas e utópicos. Voluntaristas, porque prosseguem resultados que avultam, não da cega operação dos meios, mas da vontade dos governantes e dos povos; moralistas, porque avaliam a acção em função do que consideram ser o maior bem do maior número, e não em função da sua eficácia absoluta; e utópicos porque têm em conta o desejo.
O tecnocrata não tem desejos autênticos, porque para ele todo o desejo autêntico é, por definição, impossível de satisfazer. O êxito do tecnocrata consiste em acumular instrumentos a que nunca dará uso; e o próprio dinheiro, que é o instrumento por excelência, serve apenas para ganhar mais dinheiro. Ou poder, que é outro instrumento; mas isto, para o tecnocrata, já é uma perversão - uma intromissão da sociedade no mercado.
Por isso, o tecnocrata nunca pára e nunca quer que os outros parem. Orgulha-se de ser um homem de acção e despreza os de reflexão. Se alguém lhe diz que a vida sem reflexão não é digna de ser vivida, o aforismo pouco o impressiona: para ele, a vida não é para ser vivida, mas sim para ser rentabilizada. E o ócio, precisamente porque vale por si mesmo, é para ele um desvalor.
Para o tecnocrata, a acção esgota-se na técnica e os instrumentos esgotam-se na sua operação. Diz o tecnocrata: é preciso ligar todas as escolas à Internet. Para quê? Ora, para quê! (surpreende-se o tecnocrata.) Para ficarem ligadas! Diz o tecnocrata que as empresas servem para produzir riqueza, isto é, valor útil; mas o que lhe interessa não é o valor, mas sim a expressão abstracta do valor, mesmo que inútil: ou seja, o lucro. Mesmo que virtual.
O universo do tecnocrata é abstracto e intransitivo: os valores que reconhece são instrumentais e não têm objecto. Nada vale por si mesmo. O tecnocrata dá valor à eficácia independentemente do propósito e à produção independentemente do produto. Por isso desvaloriza a política, actividade que lhe parece irrelevante porque é de sua natureza estabelecer, em vez de objectivos determinados pela técnica, fins determinados pela vontade, pela moral e pelo desejo.
Por isso o tecnocrata chama aos activistas políticos, especialmente aos de esquerda, voluntaristas, moralistas e utópicos. Voluntaristas, porque prosseguem resultados que avultam, não da cega operação dos meios, mas da vontade dos governantes e dos povos; moralistas, porque avaliam a acção em função do que consideram ser o maior bem do maior número, e não em função da sua eficácia absoluta; e utópicos porque têm em conta o desejo.
O tecnocrata não tem desejos autênticos, porque para ele todo o desejo autêntico é, por definição, impossível de satisfazer. O êxito do tecnocrata consiste em acumular instrumentos a que nunca dará uso; e o próprio dinheiro, que é o instrumento por excelência, serve apenas para ganhar mais dinheiro. Ou poder, que é outro instrumento; mas isto, para o tecnocrata, já é uma perversão - uma intromissão da sociedade no mercado.
Por isso, o tecnocrata nunca pára e nunca quer que os outros parem. Orgulha-se de ser um homem de acção e despreza os de reflexão. Se alguém lhe diz que a vida sem reflexão não é digna de ser vivida, o aforismo pouco o impressiona: para ele, a vida não é para ser vivida, mas sim para ser rentabilizada. E o ócio, precisamente porque vale por si mesmo, é para ele um desvalor.
terça-feira, 18 de agosto de 2009
A necessidade e o perigo da educação sexual nas escolas
A ignorância mata.
Quem não souber Física suficiente para compreender a energia cinética num automóvel em movimento tem mais probabilidades de conduzir em excesso de velocidade. Quem não souber o suficiente de teoria das probabilidades para discutir racionalmente o uso do cinto de segurança tem mais probabilidades de não o utilizar.
E, mesmo quando não mata, a ignorância põe-nos em desvantagem: quem não souber detectar uma falácia no discurso dum político ou dum jornalista, ou num anúncio publicitário, arrisca-se a votar em quem o prejudica ou a comprar caro e mau.
Em poucas matérias a ignorância é mais perigosa do que na sexualidade. Uma pessoa que acredita que a pílula anticoncepcional protege contra a SIDA; ou que não é possível engravidar na primeira relação; ou que o sexo ocasional é suficiente para assegurar uma vida plena no campo amoroso; ou que todos os homens são, por natureza, predadores e todas as mulheres, por natureza, vítimas - esta pessoa corre no máximo o risco de morrer precocemente, e no mínimo o de levar uma vida emocionalmente pobre.
É por isso que a educação sexual é necessária na família, e subsidiariamente nas escolas. Trata-se de evitar sofrimento e morte.
Mas a educação sexual nas escolas pode constituir ela própria um perigo se for ideologizada - isto é, se a coberto de uma qualquer pedagogia "dos valores" for usada como pretexto para impor, de forma acrítica e sem possibilidade de contraditório, um qualquer moralismo - seja ele, à direita, o moralismo anti-sexual do judeo-cristianismo, ou à esquerda o ideal andrógino do politicamente correcto. A única moral que cabe nesta disciplina é a do consenso; e a única ética é uma ética prudencial que assegure que cada um sabe o que faz quando toma decisões no plano sexual. Os nossos jovens precisam desesperadamente de conhecer os factos, mas não precisam para nada de lavagens ao cérebro.
Quem não souber Física suficiente para compreender a energia cinética num automóvel em movimento tem mais probabilidades de conduzir em excesso de velocidade. Quem não souber o suficiente de teoria das probabilidades para discutir racionalmente o uso do cinto de segurança tem mais probabilidades de não o utilizar.
E, mesmo quando não mata, a ignorância põe-nos em desvantagem: quem não souber detectar uma falácia no discurso dum político ou dum jornalista, ou num anúncio publicitário, arrisca-se a votar em quem o prejudica ou a comprar caro e mau.
Em poucas matérias a ignorância é mais perigosa do que na sexualidade. Uma pessoa que acredita que a pílula anticoncepcional protege contra a SIDA; ou que não é possível engravidar na primeira relação; ou que o sexo ocasional é suficiente para assegurar uma vida plena no campo amoroso; ou que todos os homens são, por natureza, predadores e todas as mulheres, por natureza, vítimas - esta pessoa corre no máximo o risco de morrer precocemente, e no mínimo o de levar uma vida emocionalmente pobre.
É por isso que a educação sexual é necessária na família, e subsidiariamente nas escolas. Trata-se de evitar sofrimento e morte.
Mas a educação sexual nas escolas pode constituir ela própria um perigo se for ideologizada - isto é, se a coberto de uma qualquer pedagogia "dos valores" for usada como pretexto para impor, de forma acrítica e sem possibilidade de contraditório, um qualquer moralismo - seja ele, à direita, o moralismo anti-sexual do judeo-cristianismo, ou à esquerda o ideal andrógino do politicamente correcto. A única moral que cabe nesta disciplina é a do consenso; e a única ética é uma ética prudencial que assegure que cada um sabe o que faz quando toma decisões no plano sexual. Os nossos jovens precisam desesperadamente de conhecer os factos, mas não precisam para nada de lavagens ao cérebro.
segunda-feira, 17 de agosto de 2009
O Futuro Passado e o Futuro Futuro
Quem atingiu a idade adulta antes ou durante a década de 70 do século passado recorda-se, por certo, da enorme carga semântica então associada à expressão "ano 2000." O ano 2000 era o futuro, e era nele que projectávamos todas as nossas esperanças e os nossos medos; e praticamente ninguém resistia à tentação de fazer as suas previsões para essa data. Foi nessa altura que apareceu a profissão de "futurólogo", hoje parcialmente desacreditada, e foi nesta altura que as grandes empresas começaram a financiar think tanks mandatados para reflectir sobre aquilo a que se poderia chamar, com a devida vénia a Vieira e a Heinlein, a História do Futuro. Tão presente estava a ideia de futuro na década de setenta, e tão associada ao número mágico do fim do milénio, que ainda hoje algumas pessoas sofrem, como eu, duma espécie de dissociação cognitiva: o ano 2000 já pertence ao passado, mas apesar disto ainda simboliza vestigialmente o futuro.
Lembrei-me disto ao ler o que escreveram sobre o futuro - o futuro de hoje, e não o de há quarenta anos - dois reputadíssimos economistas: Gregory Clark e Paul Krugman. Nenhum deles é mais imune que qualquer de nós à tentação de fazer futurologia, embora ambos resistam a estabelecer como data mágica o ano 2100.
O que achei curioso nos dois textos, mas não surpreendente, foi o facto de preverem dois futuros quase opostos. Previsões contraditórias não são nada a que eu não estivesse habituado: a diferença, para mim, está em que agora sou mais velho e não me sinto na obrigação intelectual de arbitrar entre as duas.
Clark leva-se mais a sério que Krugman. O seu artigo parece dizer nas entrelinhas que, ou as coisas se passam como ele prevê, ou a alternativa é demasiado horrível para se imaginar. E o que prevê Clark? Basicamente, o fim do trabalho. Neste futuro só uma minoria qualificada terá acesso ao emprego. A maioria, inútil do ponto de vista económico mas não negligenciável do ponto de vista da sua capacidade disruptora, terá que ser subsidiada (outros diriam subornada) pelos que têm acesso ao trabalho ou à riqueza. Isto implicará um aumento inexorável dos impostos a que nem a sociedade americana, fundada sobre a resistência a estes, poderá resistir. Deste modo caberá ao capitalismo realizar, de um modo faseado e subreptício, a promessa comunista: de cada um conforme as suas capacidades, a cada um conforme as suas necessidades.
O artigo de Krugman, supostamente escrito em 2096, apresenta-nos um futuro radicalmente diferente deste, desde logo porque se apresenta como um exercício lúdico, relevante do puro prazer da especulação intelectual. O Século XXI, para Krugman, caracterizar-se-á por um crescente aumento do preço das matérias primas e pela crescente privatização e mercantilização de bens até agora comuns, como o ar e a água. Os governos venderão às empresas, e as empresas umas às outras, direitos sobre a poluição e sobre as externalidades negativas da sua actividade. As receitas desta venda tornar-se-ão tão vultuosas que o imposto sobre o rendimento acabará por ser abolido - exactamente ao contrário do que prevê Clark.
O preço da mobilidade individual crescerá tanto que as pessoas terão de novo necessidade de viver perto do lugar de trabalho. Consequentemente, as cidades voltarão a crescer.
Não haverá "sociedade da informação" nem "economia do conhecimento": a informação será tão fácil de produzir, manipular e distribuir que perderá a maior parte do seu valor de mercado e dará lugar, como hoje a agricultura, a muito poucos empregos. Este facto, conjugado com o facto de os seres humanos concretos não consumirem directamente informação, mas sim bens materiais, levará a uma perda de estatuto social e económico para os académicos e os letrados (incluindo os economistas) e ao correspondente ganho de estatuto para o trabalho manual qualificado, como o de canalizador, prestador de serviços domésticos ou auxiliar de lar de idosos.
Haverá, sim, uma "economia da celebridade". Os criadores culturais e científicos não derivarão os seus rendimentos dos seus direitos de autor - a facilidade da cópia tornará isto impossível - mas dos seus direitos de imagem, que utilizarão para vender produtos que não terão nada ou quase nada a ver com o que produziram directamente. (Não podemos deixar de pensar, a propósito desta previsão, no papel de Cristiano Ronaldo como vendedor de T-shirts.) Nem todos, é claro, terão acesso à celebridade, mas este facto desagradável será mitigado pela enorme diversidade social que levará à formação de inúmeras micro-sociedades dentro das quais muitas pessoas poderão ser célebres.
Qual é a probabilidade de a previsão de Krugman, ou a de Clark, se tornar realidade? Diminuta, direi eu. E aqui volto ao tema do "futuro passado" com que iniciei este texto: em que medida se cumpriram as previsões dos futurólogos e dos think tanks?
Os telefones portáteis, considerados uma impossibilidade física devido às limitações do espectro rádio-eléctrico, estão aí. Os computadores pessoais também: não custam fortunas, não ocupam enormes salas climatizadas e não são operados por técnicos de bata branca. A semana de trabalho de oito ou dez horas, prevista quase como uma inevitabilidade, não se materializou (ainda hoje não compreendo porquê). A União Soviética implodiu (talvez seja esta uma das razões). O petróleo e as outras matérias-primas não se esgotaram como previa o Clube de Roma. A percentagem de seres humanos com fome ainda é escandalosa, mas diminuiu em vez de aumentar. Não só ainda não chegámos a Marte, como nem sequer voltámos à Lua. A Aldeia Global de McLuhan está atomizada por clãs que se desconhecem e odeiam, e a Terceira Vaga de Toffler parece que afinal não dispensa a continuação da segunda.
Olhando para trás, vemos que os economistas, os cientistas sociais e os participantes nos think tanks erraram em quase tudo. Quem errou muito menos foram os romancistas, e no caso deles estamos a falar em previsões feitas, não nos anos 70, mas nos 40. Arthur C. Clarke previu, num conto de Ficção Científica, o satélite de comunicações geoestacionário; e quem hoje olhar à sua volta não terá dificuldade em encontrar no mundo actual numerosos elementos, quer do Nineteen Eighty-Four de Orwell, quer do Brave New World de Aldous Huxley. Menos óbvia, porém presente, é a realização parcial doutras distopias menos conhecidas, como Facial Justice de J. P. Hartley ou 1985 de Anthony Burgess. É estranho que nem Orwell nem Huxley tivessem previsto as armas nucleares ou a Guerra Fria, quando dispunham de elementos para isso; mas esta omissão é menor comparada com o muito em que acertaram.
Hoje, as melhores previsões do futuro (o que não significa as mais acertadas) podem talvez ser encontradas em narrativas cyberpunk como as de Neal Stephenson.
Quer isto dizer que não compensa ler os artigos de Clark e Krugman? Nem por sombras: como previsões, falharão quase de certeza; mas enquanto não falham são extremamente gratificantes de ler. De entre os dois, apostaria mais facilmente no de Krugman: não por ele ser necessariamente melhor economista, mas por ser, pelo menos neste texto, mais escritor.
Àqueles que mesmo assim ainda querem ter uma ideia do que nos espera, atrevo-me a dar este conselho: não percam tempo a ler os futurólogos; leiam antes os poetas.
(Reformulado às 22:25)
Lembrei-me disto ao ler o que escreveram sobre o futuro - o futuro de hoje, e não o de há quarenta anos - dois reputadíssimos economistas: Gregory Clark e Paul Krugman. Nenhum deles é mais imune que qualquer de nós à tentação de fazer futurologia, embora ambos resistam a estabelecer como data mágica o ano 2100.
O que achei curioso nos dois textos, mas não surpreendente, foi o facto de preverem dois futuros quase opostos. Previsões contraditórias não são nada a que eu não estivesse habituado: a diferença, para mim, está em que agora sou mais velho e não me sinto na obrigação intelectual de arbitrar entre as duas.
Clark leva-se mais a sério que Krugman. O seu artigo parece dizer nas entrelinhas que, ou as coisas se passam como ele prevê, ou a alternativa é demasiado horrível para se imaginar. E o que prevê Clark? Basicamente, o fim do trabalho. Neste futuro só uma minoria qualificada terá acesso ao emprego. A maioria, inútil do ponto de vista económico mas não negligenciável do ponto de vista da sua capacidade disruptora, terá que ser subsidiada (outros diriam subornada) pelos que têm acesso ao trabalho ou à riqueza. Isto implicará um aumento inexorável dos impostos a que nem a sociedade americana, fundada sobre a resistência a estes, poderá resistir. Deste modo caberá ao capitalismo realizar, de um modo faseado e subreptício, a promessa comunista: de cada um conforme as suas capacidades, a cada um conforme as suas necessidades.
O artigo de Krugman, supostamente escrito em 2096, apresenta-nos um futuro radicalmente diferente deste, desde logo porque se apresenta como um exercício lúdico, relevante do puro prazer da especulação intelectual. O Século XXI, para Krugman, caracterizar-se-á por um crescente aumento do preço das matérias primas e pela crescente privatização e mercantilização de bens até agora comuns, como o ar e a água. Os governos venderão às empresas, e as empresas umas às outras, direitos sobre a poluição e sobre as externalidades negativas da sua actividade. As receitas desta venda tornar-se-ão tão vultuosas que o imposto sobre o rendimento acabará por ser abolido - exactamente ao contrário do que prevê Clark.
O preço da mobilidade individual crescerá tanto que as pessoas terão de novo necessidade de viver perto do lugar de trabalho. Consequentemente, as cidades voltarão a crescer.
Não haverá "sociedade da informação" nem "economia do conhecimento": a informação será tão fácil de produzir, manipular e distribuir que perderá a maior parte do seu valor de mercado e dará lugar, como hoje a agricultura, a muito poucos empregos. Este facto, conjugado com o facto de os seres humanos concretos não consumirem directamente informação, mas sim bens materiais, levará a uma perda de estatuto social e económico para os académicos e os letrados (incluindo os economistas) e ao correspondente ganho de estatuto para o trabalho manual qualificado, como o de canalizador, prestador de serviços domésticos ou auxiliar de lar de idosos.
Haverá, sim, uma "economia da celebridade". Os criadores culturais e científicos não derivarão os seus rendimentos dos seus direitos de autor - a facilidade da cópia tornará isto impossível - mas dos seus direitos de imagem, que utilizarão para vender produtos que não terão nada ou quase nada a ver com o que produziram directamente. (Não podemos deixar de pensar, a propósito desta previsão, no papel de Cristiano Ronaldo como vendedor de T-shirts.) Nem todos, é claro, terão acesso à celebridade, mas este facto desagradável será mitigado pela enorme diversidade social que levará à formação de inúmeras micro-sociedades dentro das quais muitas pessoas poderão ser célebres.
Qual é a probabilidade de a previsão de Krugman, ou a de Clark, se tornar realidade? Diminuta, direi eu. E aqui volto ao tema do "futuro passado" com que iniciei este texto: em que medida se cumpriram as previsões dos futurólogos e dos think tanks?
Os telefones portáteis, considerados uma impossibilidade física devido às limitações do espectro rádio-eléctrico, estão aí. Os computadores pessoais também: não custam fortunas, não ocupam enormes salas climatizadas e não são operados por técnicos de bata branca. A semana de trabalho de oito ou dez horas, prevista quase como uma inevitabilidade, não se materializou (ainda hoje não compreendo porquê). A União Soviética implodiu (talvez seja esta uma das razões). O petróleo e as outras matérias-primas não se esgotaram como previa o Clube de Roma. A percentagem de seres humanos com fome ainda é escandalosa, mas diminuiu em vez de aumentar. Não só ainda não chegámos a Marte, como nem sequer voltámos à Lua. A Aldeia Global de McLuhan está atomizada por clãs que se desconhecem e odeiam, e a Terceira Vaga de Toffler parece que afinal não dispensa a continuação da segunda.
Olhando para trás, vemos que os economistas, os cientistas sociais e os participantes nos think tanks erraram em quase tudo. Quem errou muito menos foram os romancistas, e no caso deles estamos a falar em previsões feitas, não nos anos 70, mas nos 40. Arthur C. Clarke previu, num conto de Ficção Científica, o satélite de comunicações geoestacionário; e quem hoje olhar à sua volta não terá dificuldade em encontrar no mundo actual numerosos elementos, quer do Nineteen Eighty-Four de Orwell, quer do Brave New World de Aldous Huxley. Menos óbvia, porém presente, é a realização parcial doutras distopias menos conhecidas, como Facial Justice de J. P. Hartley ou 1985 de Anthony Burgess. É estranho que nem Orwell nem Huxley tivessem previsto as armas nucleares ou a Guerra Fria, quando dispunham de elementos para isso; mas esta omissão é menor comparada com o muito em que acertaram.
Hoje, as melhores previsões do futuro (o que não significa as mais acertadas) podem talvez ser encontradas em narrativas cyberpunk como as de Neal Stephenson.
Quer isto dizer que não compensa ler os artigos de Clark e Krugman? Nem por sombras: como previsões, falharão quase de certeza; mas enquanto não falham são extremamente gratificantes de ler. De entre os dois, apostaria mais facilmente no de Krugman: não por ele ser necessariamente melhor economista, mas por ser, pelo menos neste texto, mais escritor.
Àqueles que mesmo assim ainda querem ter uma ideia do que nos espera, atrevo-me a dar este conselho: não percam tempo a ler os futurólogos; leiam antes os poetas.
(Reformulado às 22:25)
domingo, 16 de agosto de 2009
José Sócrates não é Barack Obama
Um excerto dum artigo de Obama no New York Times: «We are already closer to achieving health-insurance reform than we have ever been. We have the American Nurses Association and the American Medical Association on board, because our nation’s nurses and doctors know firsthand how badly we need reform.»
Não seria bom que tivéssemos, em Portugal, um primeiro-ministro com menos autoritarismo e mais autoridade? Com autoridade suficiente para poder dizer sobre o Ensino e os professores o que Obama diz sobre a Saúde, os enfermeiros e os médicos?
Não seria bom que tivéssemos, em Portugal, um primeiro-ministro com menos autoritarismo e mais autoridade? Com autoridade suficiente para poder dizer sobre o Ensino e os professores o que Obama diz sobre a Saúde, os enfermeiros e os médicos?
sábado, 15 de agosto de 2009
Maria João Pires ou Tony Carreira?
Assente a poeira sobre a decisão da pianista Maria João Pires de abandonar Portugal e ir viver para o Brasil, é tempo de a abordar nalguns aspectos colaterais da discussão que se seguiu.
A pequena tempestade blogosférica que esta decisão suscitou iniciou-se, como estarão lembrados, pelo texto lamentável que um fedelho publicou n'O Insurgente e repercutiu-se noutros blogues entre eles o Arrastão, sendo que o texto de Daniel Oliveira para que remete esta hiperligação mereceu dos seus leitores 95 comentários.
Quando o número de comentários atinge esta ordem de grandeza, é inevitável que comecem a enveredar por questões laterais ao debate. Uma lateralidade que eu achei particularmente interessante foi a que dizia respeito ao mérito relativo de artistas como Maria João Pires e Tony Carreira. Uma afirmação repetida, especialmente pelos trolls de direita, é que é impossível dizer que aquela tem mais "qualidade" do que este.
Assinalo, de passagem, que é curioso que a direita, tão avessa ao relativismo moral, recorra no plano estético a argumentos relativistas; mas, como a coerência e a consistência nunca foram ponto forte dos trolls, e como nesta particular série de comentários não vi intervir outra direita, passo adiante.
Também eu sou um relativista, a verdade seja dita. Não um relativista absoluto, o que seria um oxímoro, nem um relativista estúpido, dos que estão convencidos que tudo é igual a tudo; mas relativista no sentido em que toda a convicção tem por referência um ou mais critérios. De modo que me proponho sugerir uma série de critérios pelos quais se poderá aferir se Maria João Pires pode ou não ser considerada superior a Tony Carreira.
Primeiro critério: qualidade industrial vs. perfeição artesanal
Quando andei a seguir os cursos e as conferências da Associação Portuguesa para a Qualidade, depressa me apercebi que o conceito de "qualidade" proposto se poderia resumir, simplificando, a algo como "conformidade com um caderno de encargos". Esta noção de qualidade é o que permite medi-la em pontos percentuais, mas é também o que a torna pouco útil para a minha actividade, que é o ensino. O ensino, como a arte, não é industrial, mas artesanal; o paradigma por que se rege não pode ser a "qualidade", mas a perfeição; e esta é inatingível. Tony Carreira, como produto industrial que é, pode perfeitamente atingir os 100% de qualidade, mas o preço que paga por isso é que a partir deste ponto já não pode melhorar. Mas a arte de Maria João Pires, como a de qualquer outro pianista, é sempre imperfeita, ou seja, pode sempre melhorar: daqui resulta, não uma inferioridade em relação a Tony Carreira, mas uma superioridade. (Uma empresa industrial pode sempre ter em conta, em adição ao paradigma da qualidade, o paradigma da perfeição; e isto pode mesmo constituir uma vantagem competitiva, como mostra a estratégia seguida pela Daimler-Benz na sequência do aparecimento do Lexus no mercado automóvel; mas isto setria matéria para outro texto.)
Segundo critério: a raridade
Não sei quantos bebés nascem anualmente em Portugal com a capacidade inata de virem a ser como Tony Carreira: um em dez? Um em cem? Um em mil? Nem sei quantos nascem com a potencialidade de serem como Maria João Pires: um em cem mil? Um num milhão? O que me arrisco a presumir, sem temer contradição séria, é que os segundos são muito mais raros que os primeiros. Se Maria João Pires se vai embora, a sua substituição por alguém de igual craveira é incerta e imprevisível: ninguém sabe se poderá ocorrer daqui a vinte anos ou daqui a cinquenta; e mesmo que apareça algum pianista tão bom como ela ou melhor, será sempre diferente dela porque nestas matérias não há estandardização possível.
Mas, se Tony Carreira desaparecer, a indústria discográfica não precisará de mais que uns meses para pôr no mercado um produto idêntico: umas semanas para o casting, umas lições rudimentares de canto, um tratamento para regularizar e branquear os dentes, um pouco de dieta e de ginásio, uma campanha publicitária, e já está. Se o raro e o único têm mais valor que o corriqueiro, Maria João Pires é superior.
Terceiro critério: trabalho e estudo
Por mais talento inato que tenha, ninguém atinge a craveira duma Maria João Pires sem muitos anos de estudo. É preciso começar na infância e continuar sem interrupções até à idade adulta; são precisos contactos com mestres dispostos a partilhar segredos (Sequeira Costa ainda hoje usa técnicas de dedilhação inventadas por Viana da Mota e que mais ninguém usa a não ser ele), são precisos workshops e pós-graduações; é preciso estudo diário ao longo de toda a vida; é preciso voltar periodicamente a ter lições para desfazer vícios de execução resultantes do peso dado a um determinado reportório. e tudo isto para conseguir, no máximo, o reconhecimento que uma dada interpretação duma dada obra é a referência canónica a nível mundial. (No caso de Sequeira Costa, para voltar a ele, esta obra é o 3º Concerto para Piano e Orquestra de Rachmaninoff; talvez ele gostasse que fosse a Sonata ao Luar de Beethoven, mas não é.)
Se valorizamos o esforço continuado e metódico sobre o localizado e rotineiro; ou o elaborado sobre o rudimentar; ou o extremamente difícil sobre o relativamente fácil, então Maria João Pires é superior a Tony Carreira. Muito superior. Assim como saber ouvir música clássica, por pressupor uma educação do ouvido que exige esforço, constitui uma superioridade sobre gostar de música pimba. Mas é claro que somos livres de não dar valor, nem à busca da perfeição, nem ao talento, nem à raridade, nem ao estudo, nem ao trabalho, nem ao esforço. Afinal de contas vivemos na era do relativismo.
A pequena tempestade blogosférica que esta decisão suscitou iniciou-se, como estarão lembrados, pelo texto lamentável que um fedelho publicou n'O Insurgente e repercutiu-se noutros blogues entre eles o Arrastão, sendo que o texto de Daniel Oliveira para que remete esta hiperligação mereceu dos seus leitores 95 comentários.
Quando o número de comentários atinge esta ordem de grandeza, é inevitável que comecem a enveredar por questões laterais ao debate. Uma lateralidade que eu achei particularmente interessante foi a que dizia respeito ao mérito relativo de artistas como Maria João Pires e Tony Carreira. Uma afirmação repetida, especialmente pelos trolls de direita, é que é impossível dizer que aquela tem mais "qualidade" do que este.
Assinalo, de passagem, que é curioso que a direita, tão avessa ao relativismo moral, recorra no plano estético a argumentos relativistas; mas, como a coerência e a consistência nunca foram ponto forte dos trolls, e como nesta particular série de comentários não vi intervir outra direita, passo adiante.
Também eu sou um relativista, a verdade seja dita. Não um relativista absoluto, o que seria um oxímoro, nem um relativista estúpido, dos que estão convencidos que tudo é igual a tudo; mas relativista no sentido em que toda a convicção tem por referência um ou mais critérios. De modo que me proponho sugerir uma série de critérios pelos quais se poderá aferir se Maria João Pires pode ou não ser considerada superior a Tony Carreira.
Primeiro critério: qualidade industrial vs. perfeição artesanal
Quando andei a seguir os cursos e as conferências da Associação Portuguesa para a Qualidade, depressa me apercebi que o conceito de "qualidade" proposto se poderia resumir, simplificando, a algo como "conformidade com um caderno de encargos". Esta noção de qualidade é o que permite medi-la em pontos percentuais, mas é também o que a torna pouco útil para a minha actividade, que é o ensino. O ensino, como a arte, não é industrial, mas artesanal; o paradigma por que se rege não pode ser a "qualidade", mas a perfeição; e esta é inatingível. Tony Carreira, como produto industrial que é, pode perfeitamente atingir os 100% de qualidade, mas o preço que paga por isso é que a partir deste ponto já não pode melhorar. Mas a arte de Maria João Pires, como a de qualquer outro pianista, é sempre imperfeita, ou seja, pode sempre melhorar: daqui resulta, não uma inferioridade em relação a Tony Carreira, mas uma superioridade. (Uma empresa industrial pode sempre ter em conta, em adição ao paradigma da qualidade, o paradigma da perfeição; e isto pode mesmo constituir uma vantagem competitiva, como mostra a estratégia seguida pela Daimler-Benz na sequência do aparecimento do Lexus no mercado automóvel; mas isto setria matéria para outro texto.)
Segundo critério: a raridade
Não sei quantos bebés nascem anualmente em Portugal com a capacidade inata de virem a ser como Tony Carreira: um em dez? Um em cem? Um em mil? Nem sei quantos nascem com a potencialidade de serem como Maria João Pires: um em cem mil? Um num milhão? O que me arrisco a presumir, sem temer contradição séria, é que os segundos são muito mais raros que os primeiros. Se Maria João Pires se vai embora, a sua substituição por alguém de igual craveira é incerta e imprevisível: ninguém sabe se poderá ocorrer daqui a vinte anos ou daqui a cinquenta; e mesmo que apareça algum pianista tão bom como ela ou melhor, será sempre diferente dela porque nestas matérias não há estandardização possível.
Mas, se Tony Carreira desaparecer, a indústria discográfica não precisará de mais que uns meses para pôr no mercado um produto idêntico: umas semanas para o casting, umas lições rudimentares de canto, um tratamento para regularizar e branquear os dentes, um pouco de dieta e de ginásio, uma campanha publicitária, e já está. Se o raro e o único têm mais valor que o corriqueiro, Maria João Pires é superior.
Terceiro critério: trabalho e estudo
Por mais talento inato que tenha, ninguém atinge a craveira duma Maria João Pires sem muitos anos de estudo. É preciso começar na infância e continuar sem interrupções até à idade adulta; são precisos contactos com mestres dispostos a partilhar segredos (Sequeira Costa ainda hoje usa técnicas de dedilhação inventadas por Viana da Mota e que mais ninguém usa a não ser ele), são precisos workshops e pós-graduações; é preciso estudo diário ao longo de toda a vida; é preciso voltar periodicamente a ter lições para desfazer vícios de execução resultantes do peso dado a um determinado reportório. e tudo isto para conseguir, no máximo, o reconhecimento que uma dada interpretação duma dada obra é a referência canónica a nível mundial. (No caso de Sequeira Costa, para voltar a ele, esta obra é o 3º Concerto para Piano e Orquestra de Rachmaninoff; talvez ele gostasse que fosse a Sonata ao Luar de Beethoven, mas não é.)
Se valorizamos o esforço continuado e metódico sobre o localizado e rotineiro; ou o elaborado sobre o rudimentar; ou o extremamente difícil sobre o relativamente fácil, então Maria João Pires é superior a Tony Carreira. Muito superior. Assim como saber ouvir música clássica, por pressupor uma educação do ouvido que exige esforço, constitui uma superioridade sobre gostar de música pimba. Mas é claro que somos livres de não dar valor, nem à busca da perfeição, nem ao talento, nem à raridade, nem ao estudo, nem ao trabalho, nem ao esforço. Afinal de contas vivemos na era do relativismo.
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
Externalidades
Antes da blogosfera eu não sabia o que eram externalidades. Os economistas que eu conhecia - ou seja, os que têm acesso aos media e desempenham cargos políticos - nunca falavam nelas. Se encerravam uma via férrea, por exemplo, apresentavam, como explicação suficiente, o facto de ela dar prejuízo. As perguntas que eu me punha, a que estes economistas nunca responderam, eram estas: davam prejuízo a quem? E a quem dava prejuízo o seu encerramento? E qual dos dois prejuízos era maior?
Falavam-me em racionalidade económica e diziam-me que esta exigia que se procedesse em todos os casos a uma análise custo-benefício; mas parecia-me evidente que a selecção que faziam dos custos e dos benefícios a considerar era ideológica e política e não técnica ou científica.
E era assim que eu pensava que todos os economistas pensavam. E se a ciência económica era isto, então pouca diferença havia entre ela e a astrologia: era um sistema de crenças com a sua lógica própria e inegável consistência interna, mas capaz de subsistir apenas porque ignorava propositadamente a realidade exterior. E o pior é que esta espécie de superstição se arrogava o estatuto de explicação totalizante e única do Homem e do Mundo.
A blogosfera veio ensinar-me que havia alternativa a esta ideologia totalitária. Não só havia vida para lá da Economia, como havia Economia para lá do João Miranda.
Primeiro encontrei o Ladrões de Bicicletas, depois O Valor das Ideias, depois, por intermédio deste último, o Da Minha Profunda Ignorância. Tomei nota do Prémio Nobel de Joseph Stiglitz, das suas posições contrárias à doutrina hegemónica, e do aval dado por ele ao Disater Capitalism da jornalista Naomi Klein. Alfredo Saad Filho e Deborah Johnston deram-me a ler uma antologia de economistas heterodoxos. Henry A. Giroux mostrou-me que o neoliberalismo não conduzia à liberdade, mas exigia, pelo contrário, um sistema autoritário e anti-democrático que o impusesse aos povos. E David Harvey mostrou-me que a doutrina "definitiva" de Milton Friedman não passava, afinal, duma ideologia fabricada por encomenda e segundo um caderno de encargos para favorecer certos interesses bem definidos. Comecei a ler regularmente The Conscience of a Liberal de Paul Krugman - outro laureado com o Prémio Nobel.
Entretanto veio a crise do subprime e começou a estabelecer-se um novo consenso sobre a necessidade de o Estado investir e criar emprego. Em Portugal formou-se um partido a favor das obras públicas e outro contra elas. Neste último militam os economistas mediáticos, que por coincidência têm militado também no establishment político e financeiro. Continuam a recusar-se a ter em conta as externalidades, que são difíceis de calcular.
A isto respondem os primeiros que quem não tem em conta as externalidades é pura e simplesmente incompetente para fazer uma análise de custos/benefícios, especialmente no que toca a decisões que relevem de políticas públicas. E eu, cá da minha ignorância, dou-lhes razão. Há muitas coisas que não sei, mas sei o que são externalidades em economia.
E o que são elas, afinal? Tratando-se duma explicação de um leigo para outros leigos, o melhor é dar um exemplo concreto.
Anteontem visitei o Museu Guggenheim em Bilbau - exactamente o tipo de obra financiada com dinheiro dos contribuintes que causa urticária aos nossos economistas do regime. Paguei por dois bilhetes 25,00€, que constituíram um proveito directo para a instituição. De hotel e alimentação, paguei quatro vezes mais - que nunca pagaria se não tivesse interrompido a minha viagem com o propósito exclusivo de visitar o museu. Estes 100,00€ entram naquilo a que os economistas chamam uma externalidade positiva - um proveito difuso que é extremamente difícil de calcular com antecedência mas que pode exceder em muito o proveito directo.
Quem suportou os custos? Quem aufere os proveitos? Para ambas as perguntas a resposta é: acima de tudo, os contribuintes bascos e a cidade de Bilbau (a Fundação Solomon Guggenheim só entrou com a marca e com o know-how, pelo que de resto se fez pagar; e Madrid não pagou uma peseta que fosse).
Sem o Museu Guggenheim, a cadeia de hotéis que me alojou não se teria provavelmente instalado em Bilbau - ou teria construído um hotel em vez de dois, ou dois mais pequenos, gerando menos emprego; ou ter-se-ia instalado na mesma, gerando menos lucros.
Do ponto de vista dos custos e dos benefícios, a maior diferença entre o Guggenheim, por um lado, e por outro a Casa da Música ou o Centro Cultural de Belém está em que o primeiro foi construído dentro do prazo e do orçamento; mas isto é a excepção em qualquer parte do mundo.
De modo que a minha posição em relação às grandes obras públicas previstas para os próprios anos em Portugal não se centra na questão de deverem ser feitas ou não. Acho que devem ser feitas, com a possível excepção da terceira auto-estrada entre o Porto e Lisboa. A questão está, para mim, em evitar as derrapagens orçamentais e a corrupção que lhes está associada - diminuindo assim o risco de os benefícios, para a nossa geração e para as futuras, não cobrirem os custos.
Falavam-me em racionalidade económica e diziam-me que esta exigia que se procedesse em todos os casos a uma análise custo-benefício; mas parecia-me evidente que a selecção que faziam dos custos e dos benefícios a considerar era ideológica e política e não técnica ou científica.
E era assim que eu pensava que todos os economistas pensavam. E se a ciência económica era isto, então pouca diferença havia entre ela e a astrologia: era um sistema de crenças com a sua lógica própria e inegável consistência interna, mas capaz de subsistir apenas porque ignorava propositadamente a realidade exterior. E o pior é que esta espécie de superstição se arrogava o estatuto de explicação totalizante e única do Homem e do Mundo.
A blogosfera veio ensinar-me que havia alternativa a esta ideologia totalitária. Não só havia vida para lá da Economia, como havia Economia para lá do João Miranda.
Primeiro encontrei o Ladrões de Bicicletas, depois O Valor das Ideias, depois, por intermédio deste último, o Da Minha Profunda Ignorância. Tomei nota do Prémio Nobel de Joseph Stiglitz, das suas posições contrárias à doutrina hegemónica, e do aval dado por ele ao Disater Capitalism da jornalista Naomi Klein. Alfredo Saad Filho e Deborah Johnston deram-me a ler uma antologia de economistas heterodoxos. Henry A. Giroux mostrou-me que o neoliberalismo não conduzia à liberdade, mas exigia, pelo contrário, um sistema autoritário e anti-democrático que o impusesse aos povos. E David Harvey mostrou-me que a doutrina "definitiva" de Milton Friedman não passava, afinal, duma ideologia fabricada por encomenda e segundo um caderno de encargos para favorecer certos interesses bem definidos. Comecei a ler regularmente The Conscience of a Liberal de Paul Krugman - outro laureado com o Prémio Nobel.
Entretanto veio a crise do subprime e começou a estabelecer-se um novo consenso sobre a necessidade de o Estado investir e criar emprego. Em Portugal formou-se um partido a favor das obras públicas e outro contra elas. Neste último militam os economistas mediáticos, que por coincidência têm militado também no establishment político e financeiro. Continuam a recusar-se a ter em conta as externalidades, que são difíceis de calcular.
A isto respondem os primeiros que quem não tem em conta as externalidades é pura e simplesmente incompetente para fazer uma análise de custos/benefícios, especialmente no que toca a decisões que relevem de políticas públicas. E eu, cá da minha ignorância, dou-lhes razão. Há muitas coisas que não sei, mas sei o que são externalidades em economia.
E o que são elas, afinal? Tratando-se duma explicação de um leigo para outros leigos, o melhor é dar um exemplo concreto.
Anteontem visitei o Museu Guggenheim em Bilbau - exactamente o tipo de obra financiada com dinheiro dos contribuintes que causa urticária aos nossos economistas do regime. Paguei por dois bilhetes 25,00€, que constituíram um proveito directo para a instituição. De hotel e alimentação, paguei quatro vezes mais - que nunca pagaria se não tivesse interrompido a minha viagem com o propósito exclusivo de visitar o museu. Estes 100,00€ entram naquilo a que os economistas chamam uma externalidade positiva - um proveito difuso que é extremamente difícil de calcular com antecedência mas que pode exceder em muito o proveito directo.
Quem suportou os custos? Quem aufere os proveitos? Para ambas as perguntas a resposta é: acima de tudo, os contribuintes bascos e a cidade de Bilbau (a Fundação Solomon Guggenheim só entrou com a marca e com o know-how, pelo que de resto se fez pagar; e Madrid não pagou uma peseta que fosse).
Sem o Museu Guggenheim, a cadeia de hotéis que me alojou não se teria provavelmente instalado em Bilbau - ou teria construído um hotel em vez de dois, ou dois mais pequenos, gerando menos emprego; ou ter-se-ia instalado na mesma, gerando menos lucros.
Do ponto de vista dos custos e dos benefícios, a maior diferença entre o Guggenheim, por um lado, e por outro a Casa da Música ou o Centro Cultural de Belém está em que o primeiro foi construído dentro do prazo e do orçamento; mas isto é a excepção em qualquer parte do mundo.
De modo que a minha posição em relação às grandes obras públicas previstas para os próprios anos em Portugal não se centra na questão de deverem ser feitas ou não. Acho que devem ser feitas, com a possível excepção da terceira auto-estrada entre o Porto e Lisboa. A questão está, para mim, em evitar as derrapagens orçamentais e a corrupção que lhes está associada - diminuindo assim o risco de os benefícios, para a nossa geração e para as futuras, não cobrirem os custos.
domingo, 9 de agosto de 2009
Raul Solnado
'Morreu Raul Solnado. O Ingenhêro declarou: [Raul Solnado foi] "...um artista ímpar, um cidadão exemplar e um dos grandes vultos da cultura portuguesa."
Pobre Raul. Não merecias isto. Depois de uma vida como a tua, não merecias que um burocrata qualquer escrevesse, à atenção do Sua Excelência o Primeiro Ministro, um chorrilho de banalidades que te insulta.
Quando puderes, manda-me notícias do país dos poetas. Ainda havemos de nos rir muito.'(Publicado n'O Bengalão a 9 de Agosto de 2009)
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