Uma mulher não é amada porque é bela, é bela porque é amada. Numa mulher que é amada, qualquer pequena coisa é uma perfeição absoluta: o azul das veias à transparência duma pele clara, um reflexo dourado e fugaz numa pele escura, um secreto sorriso, a unha roída, a prega na cinta quando roda o torso, o mamilo molhado que o bebé largou.
Isto, quanto ao principal. Depois, muito depois, vêm as preferências: o gosto de andar descalça, a entrega do corpo à música, o gosto de cozinhar e de comer, a capacidade de comer sem culpa, a gargalhada franca, o cabelo livre, a pose coquette que já nasceu sabendo ou, pelo contrário, a ausência completa de pose.
E é claro: o ser mulher.
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Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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domingo, 1 de dezembro de 2013
sábado, 16 de novembro de 2013
As Esquerdas e a Soberania, ou: O Trilema de Rodrik no Debate Político Europeu
Acumulam-se os tratados internacionais - o Tratado de Lisboa é apenas um deles - negociados secretamente, sem o acordo dos povos soberanos e mesmo contra a sua vontade presumida ou expressa.
Alegadamente, as disposições destes tratados prevalecem sobre a ordem interna dos Estados signatários e mesmo sobre a sua ordem constitucional. Torna-se assim possível a uma empresa multinacional processar um Estado Soberano por lucros esperados e não realizados em consequência da aplicação das leis.
Apesar do esforço enorme por parte dos governos e dos seus juristas para dar a estes normativos internacionais uma aparência de legitimidade - mormente por meio duma desnecessária complexidade nos articulados e duma propositada ambiguidade dos conceitos - é perfeitamente evidente que nada disto é, ou pode remotamente ser, legítimo.
Em bom rigor, tudo isto é nulo desde a génese; se e quando os povos recuperarem, por via democrática ou de armas na mão, a soberania que lhes tem sido sistematicamente usurpada, poderão declarar esta nulidade com efeitos a partir da data da assinatura sem que com isto violem o princípio da não-retroactividade das leis.
A questão da soberania é hoje central no debate político. Infelizmente tem sido a extrema-direita nacionalista que a tem posto na ordem do dia (a isto devendo, atrevo-me a presumir, o seu espectacular crescimento em vários países europeus). Mas tem-na abordado, perversamente, em nome duma Nação sacralizada que disputa às empresas o direito de dispor arbitrariamente da vida das pessoas.
Cabe às esquerdas enfrentar a extrema-direita neste terreno. A questão da soberania é incontornável e tem que ser posta. Mas tem que ser posta em termos democráticos. A soberania nacional tem que ser defendida com denodo - mas na medida, e só na medida, em que decorre da soberania popular, e não, como quer a extrema-direita, de uma qualquer metafísica nacionalista.
terça-feira, 20 de agosto de 2013
As máscaras caem
Os dois governos na vanguarda do neo-feudalismo financeiro - os EUA e o Reino Unido - já nem se dão ao trabalho de esconder a mão depois de atirar a pedra. Este artigo do PÚBLICO é elucidativo.
domingo, 11 de agosto de 2013
Ser Republicano - de "res publica," pois claro
O Republicanismo - no sentido original, hoje pervertido, que presidiu à criação do Partido Republicano dos Estados Unidos da América - é uma doutrina política que se define, não pela oposição à monarquia, mas pela defesa e aperfeiçoamento da "coisa pública". Pode haver um Republicanismo monárquico, mas não pode haver, sem fraude, um Republicanismo anti-democrático, nem tampouco um Republicanismo que não reconheça e valorize a existência de uma esfera pública na sociedade; esfera esta distinta, quer da esfera privada, quer da esfera estatal. O Republicanismo não se reconhece, nem nos Mercados Absolutos que sacralizam a posse, nem nos Estados Absolutos que sacralizam o poder.
Quem conheça a "Coisa" que hoje se faz passar por Partido Republicano nos Estados Unidos da América achará incompreensível que um partido com este nome se tenha batido no século XIX, contra o Partido Democrático, pela abolição da escravatura. Mas esta é uma luta perfeitamente compatível com a idiossincrasia Republicana, que não reconhece valor absoluto à propriedade privada que os esclavagistas invocavam como plataforma moral.
A mesma idiossincrasia é hoje avessa - mais ou menos em consciência e em maior ou menor grau - à mercantilização do trabalho, à quase obrigatoriedade do trabalho assalariado e à servidão daqueles, e somos quase todos, para quem o aluguer de si próprio é condição de sobrevivência. Já aqui o escrevi: o trabalho assalariado, tal como hoje o conhecemos, é demasiadas vezes uma prostituição como qualquer outra. Numa "Polis" funcional, numa República decente, numa Democracia liberal prostitui-se quem quer, mas ninguém deve ser compelido, pela força de outrem ou pela necessidade das circunstâncias, a prostituir-se.
A propriedade privada é, diz-se com razão, condição necessária da liberdade. Mas o mesmo se dirá, por maioria de razão, do rendimento incondicional. Não se trata de abolir o trabalho: trata-se de instituir, de acordo com o mais autêntico espírito Republicano, o trabalho livre.
Quem conheça a "Coisa" que hoje se faz passar por Partido Republicano nos Estados Unidos da América achará incompreensível que um partido com este nome se tenha batido no século XIX, contra o Partido Democrático, pela abolição da escravatura. Mas esta é uma luta perfeitamente compatível com a idiossincrasia Republicana, que não reconhece valor absoluto à propriedade privada que os esclavagistas invocavam como plataforma moral.
A mesma idiossincrasia é hoje avessa - mais ou menos em consciência e em maior ou menor grau - à mercantilização do trabalho, à quase obrigatoriedade do trabalho assalariado e à servidão daqueles, e somos quase todos, para quem o aluguer de si próprio é condição de sobrevivência. Já aqui o escrevi: o trabalho assalariado, tal como hoje o conhecemos, é demasiadas vezes uma prostituição como qualquer outra. Numa "Polis" funcional, numa República decente, numa Democracia liberal prostitui-se quem quer, mas ninguém deve ser compelido, pela força de outrem ou pela necessidade das circunstâncias, a prostituir-se.
A propriedade privada é, diz-se com razão, condição necessária da liberdade. Mas o mesmo se dirá, por maioria de razão, do rendimento incondicional. Não se trata de abolir o trabalho: trata-se de instituir, de acordo com o mais autêntico espírito Republicano, o trabalho livre.
sábado, 10 de agosto de 2013
Um dia alguém há-de pagar por isto
O neoliberalismo tem guerras permanentes. O neoliberalismo tem baixas colaterais. O neoliberalismo tem campos de concentração, como o nazismo. O neoliberalismo tem torcionários, presos políticos e gulags. O neoliberalismo tem prisões secretas e tribunais secretos, como o Antigo Regime. Tem homens com máscaras de ferro. O neoliberalismo tem leis secretas, como os imperadores chineses e os ministros de Henrique VIII. O neoliberalismo tem assassinos profissionais. O neoliberalismo tem uma aristocracia sem nenhuns deveres e com todos os direitos: as oligarquias financeiras e as corporações multinacionais.
O neoliberalismo tem até um clero: os economistas. O neoliberalismo tem o seu Santo Ofício, os seus Savonarolas e os seus Torquemadas. O neoliberalismo ainda se há-se sentar no banco dos réus.
O neoliberalismo tem até um clero: os economistas. O neoliberalismo tem o seu Santo Ofício, os seus Savonarolas e os seus Torquemadas. O neoliberalismo ainda se há-se sentar no banco dos réus.
quarta-feira, 24 de julho de 2013
Life of Pi (Excerto)
"I must say a word about fear. It is life's only true opponent. Only fear can defeat life. It is a clever, treacherous adversary, how well I know. It has no decency, respects no law or convention, shows no mercy. It goes for your weakest spot, which it finds with unerring ease. It begins in your mind, always. One moment you are feeling calm, self-possessed, happy. Then fear, disguised in the garb of mild-mannered doubt, slips into your mind like a spy. Doubt meets disbelief and disbelief tries to push it out. But disbelief is a poorly armed foot soldier. Doubt does away with it with little trouble. You become anxious. Reason comes to do battle for you. You are reassured. Reason is fully equipped with the latest weapons technology. But, to your amazement, despite superior tactics and a number of undeniable victories, reason is laid low. You feel yourself weakening, wavering. Your anxiety becomes dread.
Fear next turns fully to your body, which is already aware that something terribly wrong is going on. Already your lungs have flown away like a bird and your guts have slithered away like a snake. Now your tongue drops dead like an opossum, while your jaw begins to gallop on the spot. Your ears go deaf. Your muscles begin to shiver as if they had malaria and your knees to shake as though they were dancing. Your heart strains too hard, while your sphincter relaxes too much. And so with the rest of your body. Every part of you, in the manner most suited to it, falls apart. Only your eyes work well. They always pay proper attention to fear.
Quickly you make rash decisions. You dismiss your last allies: hope and trust. There, you've defeated yourself. Fear, which is but an impression, has triumphed over you."
Fear next turns fully to your body, which is already aware that something terribly wrong is going on. Already your lungs have flown away like a bird and your guts have slithered away like a snake. Now your tongue drops dead like an opossum, while your jaw begins to gallop on the spot. Your ears go deaf. Your muscles begin to shiver as if they had malaria and your knees to shake as though they were dancing. Your heart strains too hard, while your sphincter relaxes too much. And so with the rest of your body. Every part of you, in the manner most suited to it, falls apart. Only your eyes work well. They always pay proper attention to fear.
Quickly you make rash decisions. You dismiss your last allies: hope and trust. There, you've defeated yourself. Fear, which is but an impression, has triumphed over you."
terça-feira, 16 de julho de 2013
Mecânica quântica
quinta-feira, 4 de julho de 2013
Não são os mercados, estúpido, é um cartel!
Lloyd C. Blankfein, Goldman Sachs |
Os mercados são um dado objectivo da realidade. Deles fazem parte os trabalhadores, os consumidores, os contribuintes, os empresários, os profissionais liberais, os investidores, os depositantes, em suma: todos nós. E aqui encontramos a primeira contradição do discurso oficial: se os decisores políticos querem conquistar para "Portugal" a confiança dos mercados, como se explica que suscitem por sistema a desconfiança, não só de quem constitui "Portugal", como de quem constitui os mercados?
Não se trata dos mercados em geral, dirão, mas sim dos mercados financeiros isoladamente. Mesmo assim, a narrativa não bate certo. Os mercados financeiros podem ser considerados isoladamente, mas não existem isoladamente. Os seus actores podem procurar, e procuram, uma situação de hegemonia sobre a economia real, mas nem por isso deixam de olhar para ela. É do seu interesse reinar, mas não reinar sobre o deserto. Quando os mercados a sério olham para um país, olham para as suas contas mas também olham para a sua economia, para a sua sociedade e para a qualidade da sua governação. Portugal está a falhar em todos estes critérios, incluindo aquele a que tudo o resto foi sacrificado, que é a simples contabilidade.
Alguém acredita, com efeito, que o mundo, o mesmo mundo que olha com tanta atenção para os nossos défices, não olhe com igual atenção para o nosso sistema educativo, para a nossa justiça, para a nossa indústria, para a nossa agricultura, para a inanidade do nosso centrão político ou para as espantosas piruetas e palhaçadas dos nossos governantes?
Temos, dizem, "objectivos" a cumprir. Se os cumprimos, somos recompensados (dizem); se não os cumprimos, somos punidos. Mas nem essa recompensa nem essa punição fazem sentido económico, ou sequer financeiro. Se fazem algum sentido, é político, e a política não trata da distribuição da riqueza a não ser na medida em que ela se reflecte na distribuição do poder, que é o seu verdadeiro e único objecto. Se há alguém no mundo, e há, que nos castiga e recompensa, esse alguém não pode ser os mercados. Restam duas hipóteses: ou estamos a ser condicionados por uma entidade política (digamos, fantasiando um pouco, por um projecto imperial), ou por uma entidade económica, exterior aos mercados, que os distorce ou destrói.
Ou seja, por um cartel. E as reacções de um cartel, ao contrário das dos mercados, são previsíveis: não admira o ar de convicção absoluta com que o comentariado económico nos transmite as ameaças dos "mercados" caso exerçamos de modo "irresponsável" a nossa soberania política.
Nada do que condiciona a acção do governo resulta do funcionamento livre dos mercados. Tudo (excepto certas oscilações de curto prazo) é concertado entre um número elevado, mas finito, de decisores com nome e com cara. Os juros que pagamos à banca e à troika são politicamente determinados: podem e devem ser politicamente combatidos. O próprio montante da dívida resulta de um cálculo baseado em escolhas políticas: só assim se compreende que ela nunca tenha sido auditada e que as auditorias não oficiais deparem com tanta resistência por parte de quem teria, formalmente, o dever de as promover. O que estas escolhas políticas têm em comum, desde há mais de 30 anos, é a vontade de redistribuir maciçamente a riqueza de baixo para cima; e isto, não tanto pelo interesse que os beneficiários desta distribuição possam ter na riqueza em si (há um limite para o número de jactos privados que um bilionário possa desejar) mas muito mais pelo poder político - poder sobre a vida dos outros - que a riqueza extrema e a desigualdade extrema conferem. Não são os mercados, são os cartéis; não é a riqueza, é o domínio feudal.
terça-feira, 2 de julho de 2013
Querem a confiança de quem? (Versão actualizada)
Mercado do Bolhão, Porto |
A isto seguiram-se violações cada vez mais graves e mais visíveis do Princípio da Confiança e da não retroactividade. Baixaram-se salários - e selectivamente, para mais - tentou-se menorizar o Tribunal Constitucional e defraudar a sua autoridade, retiraram-se direitos consagrados na lei - adquiridos, pois claro! - e, pior que tudo, retira-se a confiança de toda uma população num futuro, qualquer que ele seja.
Emprego estável? Não pode ser, porque o que é preciso é "flexibilidade" e "o emprego para a vida é uma coisa do passado", só desejada por aqueles seres inferiores que são "avessos à mudança". Perspectivas de rendimento crescente? Nem pensar: "a antiguidade não pode ser um posto" e a única coisa que conta é o "mérito", medido não se sabe como mas minuto a minuto. Carreira profissional? Só para quem queira e possa andar a saltar de empresa para empresa, de cidade em cidade, de país em país, à cata de salários cada vez melhores que se revelam, não poucas vezes, cada vez piores. Ter os filhos que se deseja? Mas como, se cada filho representa um compromisso a décadas e o próprio contrato social é a meses?
Sendo assim, cabe perguntar aos nossos economistas, aos nossos governantes, aos nossos filósofos morais, aos nossos polítólogos, aos nossos jornalistas: que confiança é essa que é tão necessário merecer? Queremos a confiança de quem?
Queremos preservar a confiança dos mercados, respondem os sacerdotes do senso comum em coro com os ideólogos do regime.
Mas esquecem-se que os mercados somos nós: os consumidores, os trabalhadores, os depositantes, os contribuintes, os empresários; e a nossa confiança já a perderam há muito tempo. Não a perderam só porque falharam em todas as previsões financeiras que fizeram, mas também porque a corrupção aumentou, as desigualdades se aprofundaram, a qualidade dos nossos decisores se degradou, o espectáculo político se tornou cada vez mais sórdido, as classes profissionais - tão necessárias à construção de qualquer futuro viável - foram enxovalhadas, a natalidade diminuiu, os jovens qualificados estão a emigrar, e nada disto inspira confiança.
E há os mercados externos, igualmente constituídos por pessoas de carne e osso, trabalhadores, aforradores, investidores, empresas - mercados estes cujo comportamento, tal como o do mercado interno, não pode ser previsto com exactidão mas que também veem e leem notícias sobre o que se passa em Portugal. Notícias que não lhes inspiram grande confiança, como a não inspiram aos portugueses. Tal como os portugueses, olham muito mais para o desempenho visível da economia real e das instituições sociais do que para os números, sempre manipuláveis, dos equilíbrios financeiros.
Há ainda os "mercados financeiros", que supostamente só olham para os equilíbrios contabilísticos mas desviam da economia real os olhos pudibundos. Por mim, duvido que não a espreitem pelo menos pelo canto do olho.
Há finalmente (mas estes não fazem parte doutros mercados que não sejam o das ideias) os fazedores de opinião, os economistas de todo o mundo que têm repetidamente afirmado que as políticas austeritárias não funcionam e apresentam o exemplo de Portugal como prova disto. Não é tampouco a confiança destes que os nossos decisores políticos esperam merecer.
Querem manter, então, a confiança de quem? De um grupo relativamente pequeno de pessoas e instituições a que abusivamente chamam "Mercados". Este grupo é constituído por três agências de rating, uns quantos grandes bancos internacionais, as direcções de uns tantos partidos das direitas europeias, o BCE, duas ou três burocracias da UE e o suserano alemão.
Não são os mercados, é um cartel. É a confiança desse cartel que "é preciso manter". Mas estão rotundamente enganados: ao contrário do que nos dizem, o que é realmente preciso é retirar de vez a confiança a esse cartel.
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sábado, 15 de junho de 2013
VAI ESTUDAR, TAVARES!
«Os professores são irresponsáveis porque não sabem que Portugal faliu.»
Quando alguém se depara com o cálculo - uma impossibilidade contabilística, mas é o que resulta dos cálculos existentes - de o total da dívida mundial exceder em 40 milhões de milhões de dólares o total dos créditos, só se for muito parvo é que não conclui que essa "dívida" é uma soma de embustes; e só se for muito crédulo é que não suspeita que a dívida portuguesa, sendo parcela dessa soma, é ela própria, com toda a probabilidade, um embuste.
Uma das coisas que os professores fizeram e continuam a fazer desde há três anos é olhar para os números e estudar economia. Para ver se essa falência tão conveniente que os economistas lhes anunciavam era um facto ou mera propaganda. Não se tornaram economistas, mas tornaram-se, muitos deles, leigos bem informados. Não foram só os professores, foram os médicos, os enfermeiros, praticamente todos os portugueses capazes de estudo autónomo. Até alguns jornalistas, com excepção daqueles, como Miguel de Sousa Tavares, que não precisam de estudar coisa nenhuma porque a sua superioridade inata lhes confere a prerrogativa de já saber tudo.
E concluíram, como qualquer português informado já concluiu, que nem Portugal nem nenhum país da União Europeia está falido (se é que um país pode falir, questão que divide os estudiosos); e se alguns países chegaram lá perto foi porque alguém - não os professores, certamente - assim o quis e para lá os empurrou. Essa treta do país falido é mais uma repetição do "não há dinheiro". Ao menos inventem mentiras novas, porque as velhas já não pegam.
domingo, 28 de abril de 2013
Porque não voto PS
Há personalidades do PS, ou a ele ligadas, pelas quais sinto a maior e mais sincera admiração. Gente honesta, lutadora, culta, com fome e sede de justiça e consciente de que o actual regime político, em Portugal e na Europa, releva da barbárie e não pode conduzir senão a mais barbárie.
O meu problema com o PS é que isto não basta. A história do PS institucional é uma história de coligações à direita e de aceitação acrítica do debate nos termos que a direita define. O PS institucional parece mais preocupado com a liberdade dos mercados do que com a escravidão das pessoas. É um partido de blairs e schröders que soa mais sincero quando defende a austeridade do que quando a denuncia. Enquanto o Partido Comunista, para bem ou para mal, nunca renegou Marx, o PS renegou John Maynard Keynes - cuja visão da Economia é ainda hoje o "estado da arte", apesar (ou precisamente por causa) da fraude intelectual que o neoliberalismo perpetrou, por encomenda, contra ela.
O PS institucional não pode ter ideias, projecto ou consistência ideológica enquanto no seu debate interno, ou no que dele transparece para fora, Keynes continuar a ser Aquele Cujo Nome Não Pode Ser Dito.
Acresce a isto que o chamado "arco da governabilidade" ou "do poder" coincide em Portugal, como noutros países, com o "arco da corrupção." Não quero aqui fazer juízos morais sobre as pessoas ou sobre os seus vícios privados, mas sim referir o sistema de incentivos que resulta dos nossos vícios institucionais e torna inevitável esta coincidência. O problema central da organização social e política portuguesa é a presença hegemónica de uma oligarquia rentista hereditária que não só acumula riqueza sem a produzir, como entrava muitas vezes a sua produção. A esta oligarquia interessa, por exemplo, a persistência de um sistema de justiça lento e ineficaz e duma burocracia complexa em que só se possa movimentar quem herdou uma rede e uma estratégia de influências. Interessa-lhe também sangue novo, que vai buscar ao mundo da política, criando assim um incentivo perverso a que o PS institucional não pode, naturalmente, estar imune.
Não admira, assim, que eu, cidadão eleitor, não saiba sobre o PS institucional aquilo que preciso de saber, ainda que saiba o que pensam este ou aquele dos seus membros. Implicando a luta política consensos e rupturas, não sei a que consensos e a que rupturas está disposto o PS. Há, hoje mais do que nunca, linhas que não devem ser ultrapassadas; mas eu, eleitor, não sei onde o PS traça as suas. Em relação a muitas matérias de interesse vital para Portugal e para a Europa, sei o que o PS deseja, mas não sei o que ele exige - e muito menos se continuará a exigi-lo caso se torne poder.
Não falo de pessoas. Falo de agendas e de ideias. E também, confesso, de fantasmas. Não voto num PS ainda hoje assombrado, como outros partidos sociais-democratas ou trabalhistas europeus, pelo espectro sorridente e esquivo de Tony Blair.
O meu problema com o PS é que isto não basta. A história do PS institucional é uma história de coligações à direita e de aceitação acrítica do debate nos termos que a direita define. O PS institucional parece mais preocupado com a liberdade dos mercados do que com a escravidão das pessoas. É um partido de blairs e schröders que soa mais sincero quando defende a austeridade do que quando a denuncia. Enquanto o Partido Comunista, para bem ou para mal, nunca renegou Marx, o PS renegou John Maynard Keynes - cuja visão da Economia é ainda hoje o "estado da arte", apesar (ou precisamente por causa) da fraude intelectual que o neoliberalismo perpetrou, por encomenda, contra ela.
O PS institucional não pode ter ideias, projecto ou consistência ideológica enquanto no seu debate interno, ou no que dele transparece para fora, Keynes continuar a ser Aquele Cujo Nome Não Pode Ser Dito.
Acresce a isto que o chamado "arco da governabilidade" ou "do poder" coincide em Portugal, como noutros países, com o "arco da corrupção." Não quero aqui fazer juízos morais sobre as pessoas ou sobre os seus vícios privados, mas sim referir o sistema de incentivos que resulta dos nossos vícios institucionais e torna inevitável esta coincidência. O problema central da organização social e política portuguesa é a presença hegemónica de uma oligarquia rentista hereditária que não só acumula riqueza sem a produzir, como entrava muitas vezes a sua produção. A esta oligarquia interessa, por exemplo, a persistência de um sistema de justiça lento e ineficaz e duma burocracia complexa em que só se possa movimentar quem herdou uma rede e uma estratégia de influências. Interessa-lhe também sangue novo, que vai buscar ao mundo da política, criando assim um incentivo perverso a que o PS institucional não pode, naturalmente, estar imune.
Não admira, assim, que eu, cidadão eleitor, não saiba sobre o PS institucional aquilo que preciso de saber, ainda que saiba o que pensam este ou aquele dos seus membros. Implicando a luta política consensos e rupturas, não sei a que consensos e a que rupturas está disposto o PS. Há, hoje mais do que nunca, linhas que não devem ser ultrapassadas; mas eu, eleitor, não sei onde o PS traça as suas. Em relação a muitas matérias de interesse vital para Portugal e para a Europa, sei o que o PS deseja, mas não sei o que ele exige - e muito menos se continuará a exigi-lo caso se torne poder.
Não falo de pessoas. Falo de agendas e de ideias. E também, confesso, de fantasmas. Não voto num PS ainda hoje assombrado, como outros partidos sociais-democratas ou trabalhistas europeus, pelo espectro sorridente e esquivo de Tony Blair.
segunda-feira, 15 de abril de 2013
Apenas um devaneio
Ninguém que tenha visto Casablanca se pode esquecer da cena d'A Marselhesa. Durante muito tempo uma das minhas fantasias foi poder cantá-la nas fuças da Thatcher, ou do Reagan, ou de um dos presidentes Bush. Porque cantar é em si mesmo um acto revolucionário. Uma pessoa como eu, que "não sabe cantar" mas acompanha nas manifestações o Coro de Intervenção do Porto depressa se dá conta que o acto físico de abrir o peito e a voz constitui uma propedêutica para a atitude mental que possibilita a revolta.
Assim aprendi a cantar na rua a Grândola, a Maria da Fonte, o Acordai. Mas não me livrei da minha velha fantasia sobre A Marselhesa. E, se num dia de visita da troika, nos reuníssemos no Terreiro do Paço, em frente ao Ministério das Finanças - coros, bandas, pessoas que como eu não sabem cantar - e lhes cantássemos a Marselhesa? De maneira que eles pudessem ouvir? Talvez com altifalantes, sei lá... Chegariam as imagens às televisões francesas? E às alemãs? E como seriam lidas numa margem e na outra do Reno?
E, já que estou em maré de devaneio: porque não boinas frígias, pés nus, peitos à mostra?
Não, não creio que isto vá acontecer. Já basta o ter que cantar em francês... Mas lá que seria lindo, seria.
quinta-feira, 4 de abril de 2013
Nós e a História
A tragédia do ser humano imerso na História é a impossibilidade de distinguir entre os modismos do presente e as traves-mestras do futuro.
terça-feira, 2 de abril de 2013
O neoliberalismo quer fazer crer que não existe.
Os neoliberais dizem que não sabem o que é o neoliberalismo. O neoliberalismo é a doutrina segundo a qual a liberdade é incompatível com a igualdade, e portanto uma sociedade é tanto mais livre quanto mais desigual.
A doutrina é falaciosa, porque faz decorrer duma premissa que só é válida se definirmos "liberdade" e "igualdade" em termos abstractos e absolutos uma conclusão que se pretende válida em termos concretos e relativos.
A doutrina é contrária aos factos: a "liberdade possível" - a única a que podemos aspirar - não só permite, como exige, a "igualdade possível". A desigualdade extrema só se pode impor pela força e os seus beneficiários procuram, mais do que a riqueza, o domínio sobre os outros. Com excepção de uns poucos, que são conhecidos e se manifestam, qualquer bilionário preferia ser um pouco menos rico num mundo mais desigual do que um pouco mais rico num mundo mais igual.
Basta olharmos à nossa volta, especificamente para a história dos Estados Unidos da América e da Europa desde 1980, para confirmarmos que o neoliberalismo existe, e que não funciona a não ser em benefício de muito poucos. O neoliberalismo não aumentou a liberdade de ninguém a não ser a de quem já tinha poder a mais; pelo contrário, diminuiu a liberdade de quase todos face ao Estado, face às corporações, face às oligarquias e face às máfias.
E, se olharmos para os últimos seis anos, veremos mais: veremos que a doutrina neoliberal é extremista, revolucionária, violenta e tão perigosa, ou mais, como qualquer das outras ideologias totalitárias que marcaram o século XX. Se o maior trunfo do Diabo está em fazer crer que não existe, o nosso maior trunfo está em apontar-lhe o dedo.
A doutrina é falaciosa, porque faz decorrer duma premissa que só é válida se definirmos "liberdade" e "igualdade" em termos abstractos e absolutos uma conclusão que se pretende válida em termos concretos e relativos.
A doutrina é contrária aos factos: a "liberdade possível" - a única a que podemos aspirar - não só permite, como exige, a "igualdade possível". A desigualdade extrema só se pode impor pela força e os seus beneficiários procuram, mais do que a riqueza, o domínio sobre os outros. Com excepção de uns poucos, que são conhecidos e se manifestam, qualquer bilionário preferia ser um pouco menos rico num mundo mais desigual do que um pouco mais rico num mundo mais igual.
Basta olharmos à nossa volta, especificamente para a história dos Estados Unidos da América e da Europa desde 1980, para confirmarmos que o neoliberalismo existe, e que não funciona a não ser em benefício de muito poucos. O neoliberalismo não aumentou a liberdade de ninguém a não ser a de quem já tinha poder a mais; pelo contrário, diminuiu a liberdade de quase todos face ao Estado, face às corporações, face às oligarquias e face às máfias.
E, se olharmos para os últimos seis anos, veremos mais: veremos que a doutrina neoliberal é extremista, revolucionária, violenta e tão perigosa, ou mais, como qualquer das outras ideologias totalitárias que marcaram o século XX. Se o maior trunfo do Diabo está em fazer crer que não existe, o nosso maior trunfo está em apontar-lhe o dedo.
O último campo de concentração alemão é o Euro. Chipre vai liderar a evasão?
Chipre Vai Liderar a Evasão da Eurozona
--- Christopher T. Mahoney
"A economia de Chipre vai agora atravessar um longo e doloroso período de ajustamento. Mas depois pagará o empréstimo quando assentar numa sólida fundação económica."
---Wolfgang Schauble, ministro das finanças alemão
Os economistas anglófonos têm advogado a saída do euro dos países periféricos da Eurozona desde o início da crise há três anos. Recomendam a saída porque a "desvalorização interna" é incomparavelmente mais destrutiva do que a desvalorização externa, e porque esses países precisam de inflação e não de deflação. O contra-argumento da Europa tem sido que a saída provocaria o caos, somado à ameaça de interromper os fluxos oficiais. Os países excluídos da generosidade da UE teriam supostamente que equilibrar de um dia para o outro as suas contas correntes. Também se argumenta que, à medida que a nova divisa vá perdendo valor, a dívida denominada em euros aumente tanto em termos nominais como reais.
Os argumentos europeus contra as saídas do euro são feitos em causa própria: os credores nunca aconselham os seus clientes a reduzir as suas dívidas. Quanto mais dívida a Europa conseguir carregar sobre esses países, mais provável se torna que os fluxos se invertam, e maiores serão as vantagens do incumprimento para os devedores. Todos os países periféricos deviam ter abandonado o euro quando a crise começou, antes de incorrerem em dívidas enormes e infligirem miséria a si próprios sem qualquer vantagem. No fim, todos os países periféricos serão forçados pela dívida a deixar o euro, a menos que o Banco Central Europeu esteja disposto a abrir as comportas monetárias imediatamente. Todo o desemprego e bancarrota em que estão a incorrer é pura perda. No fim, os países periféricos terão que sofrer a dor da desvalorização interna acumulada com a da saída do euro e do incumprimento.
A destruição estouvada que este processo implica é profundamente desanimadora. Milhões de vidas estão a ser sacrificadas no altar duma ideia mal reflectida, a noção da Europa como um "país" É um pouco irónico que a Europa capitalista tenha conseguiddo uma vitória sobre o comunismo só para tropeçar vinte anos mais tarde nas suas contradições internas. A contradição interna é a crença protestante de que todos os países precisam de divisas fortes, ou que as devem ter em todo o caso mesmo que nãao precisem delas.
Os credores não gostam da bancarrotas, e fazem tudo o que podem para a evitar, incluindo emprestar dinheiro ao devedor para pagar juros (ex., a América Latina nos anos 80). Além disso, ameaçam o devedor com consequências funestas no caso de não cumprir. Não querem que o Devedor #1 vejo o Devedor #2 livrar-se das suas dívidas e começar uma vida nova. Em vez disso, tentam negociar com o Devedor #1 de maneira que ele não entre em bancarrota. Os credores não fazem estas coisas para ajudar o devedor; fazem-nas para proteger o seu próprio capital.
O fim do jogo para os países periféricos virá quando a dor da depressão perpétua exceder o medo da saída. Para alguns países, esse dia chegará daqui a um ano ou dois. Para um país o dia já chegou: nomeadamente, Chipre. Até Chipre, a mensagem da Europa era "se saíres, deitamos fogo às tuas colheitas e ao teu celeiro". Mas para Chipre, a Europa já deitou fogo às suas colheitas e ao seu celeiro. Não sobra nada que possa ser salvo, e portanto não sobra razão nenhuma para entregar mais um tostão que seja aos extorcionistas.
Os cipriotas estão em plena catástrofe nacional que os vai forçar a escolhas difíceis num futuro muito próximo. Não vão demorar muito a pegar nas calculadoras e fazer as contas. Têm duas opções: (1) ficar na Eurozona e carregar uma dívida insuportável até à eternidade; ou (2) sair do euro, não pagar a dívida e restaurar a sua soberania monetária. Uma vez que vão ter que se declarar em incumprimento aconteça o que acontecer, mais vale que o façam agora e recolham em simultâneo o benefício da desvalorização.
A situação de Chipre é semelhante à da Argentina, mas não exactamente. A Argentina escapou de um fardo de dívida insustentável repudiando unilateralmente a sua dívida. As coisas passaram a correr-lhe muito melhor em resultados disto, mas continua a ser um país fora-da-lei, perseguido em todo o mundo por credores furiosos. Chipre não precisa de repudiar a sua dívida de um modo tão atabalhoado.
Para começar, a maior parte da dívida de Chipre é para com a Europa, não para com investidores privados. Chipre pode reduzir esta dívida recorrendo ao método que os devedores consagraram ao longo do tempo: “Dá-me qualquer coisa ou não levas nada”. A troika não tem grande poder nesta negociação, a menos que esteja a planear enviar as suas canhoneiras para Limassol. Os investidores podem ser tratados da mesma maneira (ver a Grécia). Qualquer dívida contratada sob a lei cipriota pode ser re-denominada e/ou re-escalonada por decreto. Isto é eminentemente praticável.
A razão por que a Europa "resgatou" Chipre foi impedi-lo de se evadir da Eurozona e dar um mau exemplo aos outros reclusos. Se Chipre escapar e ficar impune, a Grécia segui-lo-á a breve prazo. Os portugueses são "bons europeus", mas a solidariedade regional começa rapidamente a cheirar a velho para quem está a morrer à fome. Portugal vai acabar por sair assim que outros tenham aberto o caminho. (Afinal, Bruxelas não pode declarar Guerra a meia Europa.)
Esperemos que, antes que a podridão se instale com demasiada profundidade no coração da Eurozona (i.e., Espanha e Itália), o Banco Central Europeu veja a luz e reinflacione o continente, evitando deste modo o Armagedão. Para já, a probabilidade é de 50%.
Ler mais em http://www.project-syndicate.org/blog/cyprus-will-lead-the-eurozone-prison-break-by-christopher-t--mahoney#WeJfT78iMqKa1Ocj.99
sexta-feira, 29 de março de 2013
Demos
Estou convencido de que estamos em plena guerra e que Portugal não é o principal campo de batalha, nem aquele em que sairemos, isoladamente, vitoriosos ou derrotados. Não há solução para Portugal que não faça parte duma solução para a Europa e para a América do Norte.
Há lutas locais a travar, evidentemente - demitir o governo actual é uma delas - mas estas lutas valem mais pela repercussão que possam ter na Europa e no Mundo do que pelos seus efeitos imediatos na vida dos portugueses.
O que está em causa é permitirmos ou não que se instale no Mundo um fascismo global. Uso a palavra fascismo conscientemente e no seu sentido próprio: segundo a definição de Mussolini, o regime em que o poder do Estado se funde com o poder das corporações. Tal como o projecto fascista global, também a resistência anti-fascista tem que ser exercida de forma coordenada; e talvez sejam os activistas norte-americanos, de entre todos os resistentes, os que mais sucintamente capturam o espírito desta luta: "Corporations Are Not People".
Na Europa, a luta é antes de mais pela democracia. Desde logo porque nem a CEE, nem a UE foram alguma vez, nem sequer formalmente, espaços democráticos. Fundada na expectativa de que a democracia viesse por acréscimo e por consequência da união económica e da prosperidade partilhada, a União Europeia esbarrou, na sequência da crise financeira mundial de 2007/2008, no muro até então invisível que é a ausência de um "Demos" europeu que pudesse ser titular duma soberania europeia que por sua vez legitimasse democraticamente uma governação.
Pois bem: o "Demos" europeu, que não foi construído a partir de cima, pode estar a emergir da luta anti-fascista em curso na Europa. "Todos somos cipriotas", grita-se na Alemanha; e este grito, vindo embora duma minoria activista, é ouvido pelas classes médias de toda a Europa - que entenderam, desde a primeira hora, que aquilo que os seus ministros das finanças decidiram por unanimidade fazer às contas bancárias dos cipriotas abre um precedente que nos afecta a todos. Somos todos cipriotas, somos todos gregos, somos todos espanhóis, somos todos até - quem diria! - luxemburgueses. "Nós" quer dizer cada vez menos "nós, os portugueses" ou "nós, os alemães" e cada vez mais "nós, os 99%" - como na América - contra "eles, os fascistas financeiros."
É por isso que tudo faço - dentro das minhas modestíssimas capacidades, e pedindo desculpa pelo atrevimento - por puxar os meus compatriotas para fora de Portugal e para o centro da Europa. Não para que desistam da sua luta cá, que é imprescindível, mas para que saibam que não estão - não estamos - sozinhos contra o Mundo.
Há lutas locais a travar, evidentemente - demitir o governo actual é uma delas - mas estas lutas valem mais pela repercussão que possam ter na Europa e no Mundo do que pelos seus efeitos imediatos na vida dos portugueses.
O que está em causa é permitirmos ou não que se instale no Mundo um fascismo global. Uso a palavra fascismo conscientemente e no seu sentido próprio: segundo a definição de Mussolini, o regime em que o poder do Estado se funde com o poder das corporações. Tal como o projecto fascista global, também a resistência anti-fascista tem que ser exercida de forma coordenada; e talvez sejam os activistas norte-americanos, de entre todos os resistentes, os que mais sucintamente capturam o espírito desta luta: "Corporations Are Not People".
Na Europa, a luta é antes de mais pela democracia. Desde logo porque nem a CEE, nem a UE foram alguma vez, nem sequer formalmente, espaços democráticos. Fundada na expectativa de que a democracia viesse por acréscimo e por consequência da união económica e da prosperidade partilhada, a União Europeia esbarrou, na sequência da crise financeira mundial de 2007/2008, no muro até então invisível que é a ausência de um "Demos" europeu que pudesse ser titular duma soberania europeia que por sua vez legitimasse democraticamente uma governação.
Pois bem: o "Demos" europeu, que não foi construído a partir de cima, pode estar a emergir da luta anti-fascista em curso na Europa. "Todos somos cipriotas", grita-se na Alemanha; e este grito, vindo embora duma minoria activista, é ouvido pelas classes médias de toda a Europa - que entenderam, desde a primeira hora, que aquilo que os seus ministros das finanças decidiram por unanimidade fazer às contas bancárias dos cipriotas abre um precedente que nos afecta a todos. Somos todos cipriotas, somos todos gregos, somos todos espanhóis, somos todos até - quem diria! - luxemburgueses. "Nós" quer dizer cada vez menos "nós, os portugueses" ou "nós, os alemães" e cada vez mais "nós, os 99%" - como na América - contra "eles, os fascistas financeiros."
É por isso que tudo faço - dentro das minhas modestíssimas capacidades, e pedindo desculpa pelo atrevimento - por puxar os meus compatriotas para fora de Portugal e para o centro da Europa. Não para que desistam da sua luta cá, que é imprescindível, mas para que saibam que não estão - não estamos - sozinhos contra o Mundo.
segunda-feira, 18 de março de 2013
Um mistério profundo
Se a crise se deve à irresponsabilidade dos devedores, como se explica que os credores estejam cada vez mais ricos?
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
A Sabedoria do Povo Italiano
Para que quer um povo a governabilidade sabendo à partida que a governação se fará contra ele?
sábado, 16 de fevereiro de 2013
Joseph E. Stiglitz, The Price of Inequality
Londres: Allen Lane, Penguin Books, 2012
(Citação: p. 231. Tradução minha)
Poderíamos pensar que os que advogam a austeridade tivessem aprendido com a plétora de experiências anteriores em que a austeridade teve consequências desastrosas. A austeridade de Herbert Hoover converteu o crash bolsista de 1929 na Grande Depressão, a austeridade do FMI converteu os resultados negativos no Leste Asiático e na América Latina em recessões e depressões; A austeridade forçada ou auto-imposta em vários países europeus (Reino Unido, Letónia, Grécia, Portugal) está agora a ter exactamente o mesmo efeito. Mas os advogados da austeridade parecem não ser capazes de lidar com esta evidência avassaladora. Como os médicos medievais que acreditavam em sangrar o doente, mas quando os doentes não melhoravam argumentavam que o que eles precisavam era de nova sangria, os sangradores da economia do século XXI não se desviam da linha estabelecida. Exigirão sempre mais austeridade, e encontrarão sempre uma miríade de desculpas para a primeira dose não ter funcionado como previsto. Entretanto, o desemprego continuará a aumentar, os salários continuarão a descer, e os programas públicos em que se apoiam as classes médias e os pobres continuarão a definhar.
Em contraste, a despesa pública tem sido bem sucedida. Em última análise, foram as despesas públicas efectuadas para preparar a II Grande Guerra que puxaram o país para fora da Grande Depressão. Embora o New Deal providenciasse algum estímulo, e e ajudasse a economia a recuperar entre 1933 e 1936, esse estímulo não foi suficiente para compensar o efeito combinado da contracção da despesa a nível local e estadual e da fraqueza do sector agrícola (os rendimentos das pessoas neste sector, que constituíam um quarto da população, caíram dramaticamente neste período - 50% só entre 1929 e 1932). E no fim do primeiro mandato de Roosevelt, em 1936, a preocupação com o défice e as pressões dos conservadores em matéria fiscal induziram-no a cortar nas despesas federais. A recuperação da economia parou e o crescimento tornou-se negativo.
(Joseph E. Stiglitz foi Economista-Chefe do Banco Mundial até 2000. É actualmente Professor na Columbia Business School e preside ao Conselho de Administração do Brooks World Poverty Institute da Universidade de Manchester, no qual desempenha também as funções de director dos programas de Verão para graduados. Ganhou o Prémio Nobel da Economia em 2001 e é o autor dos êxitos de vendas Globalization and Its Discontents, The Roaring Nineties, Making Globalization Work e Freefall.)
(Citação: p. 231. Tradução minha)
Poderíamos pensar que os que advogam a austeridade tivessem aprendido com a plétora de experiências anteriores em que a austeridade teve consequências desastrosas. A austeridade de Herbert Hoover converteu o crash bolsista de 1929 na Grande Depressão, a austeridade do FMI converteu os resultados negativos no Leste Asiático e na América Latina em recessões e depressões; A austeridade forçada ou auto-imposta em vários países europeus (Reino Unido, Letónia, Grécia, Portugal) está agora a ter exactamente o mesmo efeito. Mas os advogados da austeridade parecem não ser capazes de lidar com esta evidência avassaladora. Como os médicos medievais que acreditavam em sangrar o doente, mas quando os doentes não melhoravam argumentavam que o que eles precisavam era de nova sangria, os sangradores da economia do século XXI não se desviam da linha estabelecida. Exigirão sempre mais austeridade, e encontrarão sempre uma miríade de desculpas para a primeira dose não ter funcionado como previsto. Entretanto, o desemprego continuará a aumentar, os salários continuarão a descer, e os programas públicos em que se apoiam as classes médias e os pobres continuarão a definhar.
Em contraste, a despesa pública tem sido bem sucedida. Em última análise, foram as despesas públicas efectuadas para preparar a II Grande Guerra que puxaram o país para fora da Grande Depressão. Embora o New Deal providenciasse algum estímulo, e e ajudasse a economia a recuperar entre 1933 e 1936, esse estímulo não foi suficiente para compensar o efeito combinado da contracção da despesa a nível local e estadual e da fraqueza do sector agrícola (os rendimentos das pessoas neste sector, que constituíam um quarto da população, caíram dramaticamente neste período - 50% só entre 1929 e 1932). E no fim do primeiro mandato de Roosevelt, em 1936, a preocupação com o défice e as pressões dos conservadores em matéria fiscal induziram-no a cortar nas despesas federais. A recuperação da economia parou e o crescimento tornou-se negativo.
(Joseph E. Stiglitz foi Economista-Chefe do Banco Mundial até 2000. É actualmente Professor na Columbia Business School e preside ao Conselho de Administração do Brooks World Poverty Institute da Universidade de Manchester, no qual desempenha também as funções de director dos programas de Verão para graduados. Ganhou o Prémio Nobel da Economia em 2001 e é o autor dos êxitos de vendas Globalization and Its Discontents, The Roaring Nineties, Making Globalization Work e Freefall.)
terça-feira, 12 de fevereiro de 2013
Polícia vs. Política
Quando um banco comete uma fraude, é um caso de polícia. Quando muitos bancos cometem a mesma fraude, é um caso de política.
domingo, 10 de fevereiro de 2013
Vencer a crise
Dizem-nos que vencer esta crise é muito difícil, muito demorado, que só está ao alcance de alguns economistas geniais que trabalharam quase todos, por coincidência, no banco de investimentos Goldman Sachs. Dizem-nos que é necessário seguir à letra as prescrições destes, e não de outros, economistas. Dizem-nos que temos que fazer "sacrifícios" (palavra deliciosamente horrível!) e suportar doses cavalares de "austeridade" (palavra horrivelmente deliciosa!) durante anos ou décadas. Dizem-nos que temos que trabalhar mais horas por semana, mais dias por ano e mais anos ao longo da vida - quando ao nosso lado vemos o vizinho sem emprego.
Tretas.
A crise vence-se tirando o poder a quem ganha com ela e devolvendo-o aos povos soberanos a quem foi usurpado. Seguindo as políticas que economistas como Paul Krugman e Joseph Stiglitz andam a propor com veemência desde que ela começou.
E também punindo os que a provocaram e obrigando-os a devolver os ganhos indevidos. Não estou a falar em justiça revolucionária: tudo isto poderia ser feito ao abrigo das leis actualmente em vigor. Começando por Wall Street e continuando por toda a América do Norte e Europa - com excepção da Islândia, onde já se fez o que era preciso - teriam que se abandonar as doutrinas do too big to fail e too big to jail. Ainda mais difícil que isto seria abandonar a paralisia do too many to jail, já que os crimes cometidos, que foram da fraude ao perjúrio, passando pela falsificação de documentos, cobriram quase toda a gama que as diferentes ordens jurídicas prevêem e punem; e os responsáveis não são só os banqueiros de topo, mas também inúmeros quadros intermédios, auditores, contabilistas certificados, juristas e políticos. São muitos milhares de pessoas que ficariam sujeitas, pela repetição dos ilícitos criminais, a cúmulos jurídicos que resultariam, nos EUA, em várias penas de prisão perpétua para cada uma. Mesmo na Europa, onde a Justiça é muito mais branda, os responsáveis pela crise não se livrariam de décadas de cadeia.
Mais importante que punir os culpados, seria ressarcir as vítimas. Como indemnizar os milhões de pessoas que perderam as suas habitações e os seus empregos, ou viram as suas famílias desagregar-se, na sequência do que talvez seja a maior fraude financeira da História humana? Ver caso a caso quem ficou prejudicado, e em quanto, e entregar a cada um(a) um cheque nesse valor, seria impraticável do ponto de vista logístico. Recorrer à metáfora do helicopter money de Milton Friedman, enviando a cada cidadão da UE um cheque de (por exemplo) mil euros, e a cada cidadão dos EUA um cheque de mil dólares, acabaria com a vertente económica da "crise" de um dia para o outro, mas seria preciso impor regras que obrigassem a oligarquia financeira mundial a assumir prejuízos enormes e a impedissem de voltar a roubar esse dinheiro.
Há passos importantes que estão a ser dados na direcção certa. Em Portugal, um destes passos é a Auditoria Cidadã à Dívida, e um pouco por toda a Europa as várias iniciativas semelhantes.Seria bom que se pegasse pela outra ponta nos países "credores", auditando especificamente os créditos. E, como não podemos contar para isto nem com os governos, nem com a troika, nem com o BCE, teremos que o fazer contra eles. Sem compromissos nem paragens a meio do salto.
Tretas.
A crise vence-se tirando o poder a quem ganha com ela e devolvendo-o aos povos soberanos a quem foi usurpado. Seguindo as políticas que economistas como Paul Krugman e Joseph Stiglitz andam a propor com veemência desde que ela começou.
E também punindo os que a provocaram e obrigando-os a devolver os ganhos indevidos. Não estou a falar em justiça revolucionária: tudo isto poderia ser feito ao abrigo das leis actualmente em vigor. Começando por Wall Street e continuando por toda a América do Norte e Europa - com excepção da Islândia, onde já se fez o que era preciso - teriam que se abandonar as doutrinas do too big to fail e too big to jail. Ainda mais difícil que isto seria abandonar a paralisia do too many to jail, já que os crimes cometidos, que foram da fraude ao perjúrio, passando pela falsificação de documentos, cobriram quase toda a gama que as diferentes ordens jurídicas prevêem e punem; e os responsáveis não são só os banqueiros de topo, mas também inúmeros quadros intermédios, auditores, contabilistas certificados, juristas e políticos. São muitos milhares de pessoas que ficariam sujeitas, pela repetição dos ilícitos criminais, a cúmulos jurídicos que resultariam, nos EUA, em várias penas de prisão perpétua para cada uma. Mesmo na Europa, onde a Justiça é muito mais branda, os responsáveis pela crise não se livrariam de décadas de cadeia.
Mais importante que punir os culpados, seria ressarcir as vítimas. Como indemnizar os milhões de pessoas que perderam as suas habitações e os seus empregos, ou viram as suas famílias desagregar-se, na sequência do que talvez seja a maior fraude financeira da História humana? Ver caso a caso quem ficou prejudicado, e em quanto, e entregar a cada um(a) um cheque nesse valor, seria impraticável do ponto de vista logístico. Recorrer à metáfora do helicopter money de Milton Friedman, enviando a cada cidadão da UE um cheque de (por exemplo) mil euros, e a cada cidadão dos EUA um cheque de mil dólares, acabaria com a vertente económica da "crise" de um dia para o outro, mas seria preciso impor regras que obrigassem a oligarquia financeira mundial a assumir prejuízos enormes e a impedissem de voltar a roubar esse dinheiro.
Há passos importantes que estão a ser dados na direcção certa. Em Portugal, um destes passos é a Auditoria Cidadã à Dívida, e um pouco por toda a Europa as várias iniciativas semelhantes.Seria bom que se pegasse pela outra ponta nos países "credores", auditando especificamente os créditos. E, como não podemos contar para isto nem com os governos, nem com a troika, nem com o BCE, teremos que o fazer contra eles. Sem compromissos nem paragens a meio do salto.
quarta-feira, 16 de janeiro de 2013
Assembleia Constituinte clandestina?
No Palácio Foz, a "Sociedade Civil" revê a Constituição prepara um golpe refunda o Estado Social. Mas só quem foi convidado. E os que não foram convidados são o quê? Helotas?
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
Sonhar não custa
Imaginemos - sonhar não custa - que um futuro governo português decidia nacionalizar toda a banca privada. Naturalmente, fá-lo-ia no escrupuloso respeito pelo direito à propriedade, isto é, pagaria por cada banco o seu valor de mercado. E naturalmente deduziria desse valor aquilo que cada banco já custou, desde a sua fundação, aos contribuintes portugueses.
O saldo a pagar seria em muitos casos muito baixo, noutros casos nulo, e noutros até negativo: para receber na totalidade ou em parte os valores de que ficaria credor, o Estado teria de responsabilizar pessoalmente os gestores actuais ou passados, bem como os responsáveis políticos actuais ou passados, cujas decisões tivessem contribuído, sem cobertura legal suficiente, para os saldos negativos detectados.
É de esperar que a maior parte desta dívida da banca ao Estado tivesse que ser eliminada por impossibilidade de prova ou por prescrição. Mas mesmo assim a situação financeira do Estado e dos contribuintes registaria uma enorme evolução positiva.
Se isto não se faz, não é por impossibilidade legal, moral, técnica ou económica. É por vontade política e cegueira ideológica por parte das extremas-direitas neoliberais que governam Portugal e a União Europeia. É por isso que é vital que os europeus votem massivamente nos partidos mais à esquerda do espectro político, reformando radicalmente os "arcos do poder" que se têm degradado a olhos vistos em "arcos da corrupção".
Não vamos estar à espera dos outros para fazer isto. De Portugal cuidam os portugueses. E qualquer passo nesta direcção, por pouco poderoso que seja o país que o der, terá repercussões à escala da União Europeia numa proporção muito superior à da simples relação de forças.
.
O saldo a pagar seria em muitos casos muito baixo, noutros casos nulo, e noutros até negativo: para receber na totalidade ou em parte os valores de que ficaria credor, o Estado teria de responsabilizar pessoalmente os gestores actuais ou passados, bem como os responsáveis políticos actuais ou passados, cujas decisões tivessem contribuído, sem cobertura legal suficiente, para os saldos negativos detectados.
É de esperar que a maior parte desta dívida da banca ao Estado tivesse que ser eliminada por impossibilidade de prova ou por prescrição. Mas mesmo assim a situação financeira do Estado e dos contribuintes registaria uma enorme evolução positiva.
Se isto não se faz, não é por impossibilidade legal, moral, técnica ou económica. É por vontade política e cegueira ideológica por parte das extremas-direitas neoliberais que governam Portugal e a União Europeia. É por isso que é vital que os europeus votem massivamente nos partidos mais à esquerda do espectro político, reformando radicalmente os "arcos do poder" que se têm degradado a olhos vistos em "arcos da corrupção".
Não vamos estar à espera dos outros para fazer isto. De Portugal cuidam os portugueses. E qualquer passo nesta direcção, por pouco poderoso que seja o país que o der, terá repercussões à escala da União Europeia numa proporção muito superior à da simples relação de forças.
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sábado, 5 de janeiro de 2013
Cidadania
Eu vou a manifestações. Dizem-me que não serve de nada, e provavelmente têm razão, mas eu vou.
Eu voto. Provavelmente não serve de nada, mas eu voto. Eu falo e escrevo. Provavelmente não serve de nada, mas eu falo e escrevo. Eu desobedeço quando posso, às vezes sozinho. Pode não servir de nada, mas desobedeço. Eu informo-me. Pode não servir de nada, mas informo-me.
Sei que há outras pessoas a fazer como eu. Não sei se são muitas ou se são poucas, mas sei que as há, e por todo o mundo. Muitas delas bem mais dedicadas e eficazes do que eu.
E por fim tudo serve para alguma coisa, até o desprezadíssimo voto. Porque aquilo a que chamam nada é afinal apenas quase nada, e os quase nadas somam-se.
Eu voto. Provavelmente não serve de nada, mas eu voto. Eu falo e escrevo. Provavelmente não serve de nada, mas eu falo e escrevo. Eu desobedeço quando posso, às vezes sozinho. Pode não servir de nada, mas desobedeço. Eu informo-me. Pode não servir de nada, mas informo-me.
Sei que há outras pessoas a fazer como eu. Não sei se são muitas ou se são poucas, mas sei que as há, e por todo o mundo. Muitas delas bem mais dedicadas e eficazes do que eu.
E por fim tudo serve para alguma coisa, até o desprezadíssimo voto. Porque aquilo a que chamam nada é afinal apenas quase nada, e os quase nadas somam-se.
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