Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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sábado, 28 de novembro de 2009
Novo excerto traduzido de J. M. Coetzee
Sobre Tony Blair
A história de Tony Blair podia ter sido tirada inteirinha de Tácito. Um rapazinho como tantos outros da classe média com todas as atitudes correctas (os ricos têm o dever de subsidiar os pobres, as forças armadas devem ser mantidas sob controlo, os direitos civis têm que ser defendidos contra a intrusão do estado) mas sem bases filosóficas e reduzida capacidade de introspecção, e sem outra bússula que não seja a ambição pessoal, embarca na viagem da política, com todas as distorções a que esta sujeita quem a faz, e acaba por se tornar um entusiasta da ganância empresarial e um pau-mandado dos seus senhores em Washington, fingindo lealmente que não vê nada (não ver o mal, não ouvir o mal) enquanto os seus agentes na sombra assassinam, torturam e "desaparecem" pessoas sem quaisquer entraves.
Em privado homens como Blair defendem as suas acções dizendo que os seus críticos (sempre designados como críticos de sofá) se esquecem que neste mundo longe do ideal a política é a arte do possível. E vão mais longe: a política não é para maricas, dizem, entendendo-se por maricas quaisquer pessoas que revelem relutância em comprometer os seus princípios morais. Por natureza a política é incompatível com a verdade, dizem eles, ou pelo menos com a prática de dizer a verdade em todas as circunstâncias. A História há-de dar-lhes razão, concluem - a História com a sua visão de longo prazo.
Tem acontecido pessoas recém-chegadas ao poder jurarem a si próprias praticar uma política de verdade, ou pelo menos uma política que evite a mentira. É possível que Fidel Castro tenha sido em tempos uma destas pessoas. Mas como é breve o tempo até as exigências da vida política tornarem impossível ao homem no poder distinguir a mentira da verdade!
Tal como Blair, Fidel dirá em privado: É muito fácil para os críticos fazer julgamentos lá do alto, mas não sabem a que pressões eu estava sujeito. O que estas pessoas aduzem sempre é o chamado princípio da realidade; as críticas que lhes são feitas são sempre utópicas, irrealistas.
O que as pessoas normais se cansam de ouvir aos seus governantes são declarações que nunca são exactamente a verdade: um pouco aquém da verdade, ou então um pouco ao lado da verdade, ou então a verdade com um efeito que a faz sair da trajectória. As pessoas estão ansiosas por alguma coisa que as livre destas ambiguidades incessantes. Daqui a sua fome (uma fome moderada, devemos admitir) de ouvir o que outras pessoas capazes de se exprimirem articuladamente e exteriores ao mundo político - académicos, homens de igreja, cientistas ou escritores - pensam sobre os negócios públicos.
Mas como pode esta fome ser saciada por um mero escritor (para falar só de escritores) quando o domínio dos factos ao seu dispor é geralmente incompleto ou incerto, quando até o seu acesso aos chamados factos se faz através dos media integrados no campo de forças da política, e quando, muitas vezes, e devido à sua vocação, está mais interessado no mentiroso e na psicologia da mentira do que na verdade dos factos?
(Nota minha: Este Tony Blair não faz lembrar ninguém no panorama político português?)
Engenheiros ou classicistas?
Uma coisa é dizer que precisamos de mais engenheiros que classicistas; outra é dizer que precisamos mais de engenheiros que de classicistas. A diferença entre estas duas afirmações está em que a primeira releva do bom senso e a segunda da mais completa falta de visão.
De engenheiros, precisamos aos milhares (se alguns deles forem, além de engenheiros por profissão, classicistas por gosto, tanto melhor: serão certamente melhores engenheiros). De classicistas, talvez só precisemos de umas dezenas.
Mas oito alunos a aprender Grego no Secundário, só oito a nível nacional, parece-me muito pouco. Poderá dar-se o caso de o País estar em dificuldades mais por falta de classicistas, historiadores e filósofos do que por falta de engenheiros?
De engenheiros, precisamos aos milhares (se alguns deles forem, além de engenheiros por profissão, classicistas por gosto, tanto melhor: serão certamente melhores engenheiros). De classicistas, talvez só precisemos de umas dezenas.
Mas oito alunos a aprender Grego no Secundário, só oito a nível nacional, parece-me muito pouco. Poderá dar-se o caso de o País estar em dificuldades mais por falta de classicistas, historiadores e filósofos do que por falta de engenheiros?
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
Universidade Lda.
Este excerto, apressadamente traduzido, de Diary of a Bad Year de J. M. Coatzee foi publicado originalmente como comentário a este artigo do João Rodrigues, a que cheguei através do Ladrões de Bicicletas.
Sempre foi um pouco mentira que as universidades fossem instituições que se governam a si mesmas. Não obstante, o que aconteceu às universidades nas décadas de 80 e 90 não deixou de ser vergonhoso, já que, sob a ameaça de verem cortados os seus financiamentos, aceitaram ser transformadas em empresas comerciais, nas quais os professores que anteriormente desempenhavam as suas funções em soberana liberdade se transformaram em funcionários, assediados pela obrigação de cumprir quotas sob a vigilância de gestores profissionais. A questão de os antigos poderes do professorado poderem vir a ser recuperados suscita as maiores dúvidas.
No tempo em que a Polónia estava sob o regime comunista, havia dissidentes que davam aulas à noite em suas casas, realizando seminários sobre escritores e filósofos excluídos do cânone oficial (por exemplo, Platão). Não circulava dinheiro, embora possam ter tido lugar outras formas de pagamento. Se quisermos que o espírito da universidade sobreviva, algo de semelhante terá de se realizar nos países em que o ensino terciário foi inteiramente subordinado à lógica dos negócios. Por outras palavras, a verdadeira universidade poderá ter que se mudar para os lugares onde habitam as pessoas e conferir graus académicos cuja única sustentação esteja nos nomes de quem assinar os certificados.
Comentário meu: Excluir Platão do cânone não é muito diferente de excluir John Maynard Keynes; estaremos a chegar a um mundo em que as verdadeiras universidades sejam clandestinas?
Sempre foi um pouco mentira que as universidades fossem instituições que se governam a si mesmas. Não obstante, o que aconteceu às universidades nas décadas de 80 e 90 não deixou de ser vergonhoso, já que, sob a ameaça de verem cortados os seus financiamentos, aceitaram ser transformadas em empresas comerciais, nas quais os professores que anteriormente desempenhavam as suas funções em soberana liberdade se transformaram em funcionários, assediados pela obrigação de cumprir quotas sob a vigilância de gestores profissionais. A questão de os antigos poderes do professorado poderem vir a ser recuperados suscita as maiores dúvidas.
No tempo em que a Polónia estava sob o regime comunista, havia dissidentes que davam aulas à noite em suas casas, realizando seminários sobre escritores e filósofos excluídos do cânone oficial (por exemplo, Platão). Não circulava dinheiro, embora possam ter tido lugar outras formas de pagamento. Se quisermos que o espírito da universidade sobreviva, algo de semelhante terá de se realizar nos países em que o ensino terciário foi inteiramente subordinado à lógica dos negócios. Por outras palavras, a verdadeira universidade poderá ter que se mudar para os lugares onde habitam as pessoas e conferir graus académicos cuja única sustentação esteja nos nomes de quem assinar os certificados.
Comentário meu: Excluir Platão do cânone não é muito diferente de excluir John Maynard Keynes; estaremos a chegar a um mundo em que as verdadeiras universidades sejam clandestinas?
domingo, 22 de novembro de 2009
Vale a pena este blogue
Nuno Anjos Pereira é outros dos muitos bloggers que provam que há, fora do Ministério e das ESE's, quem saiba pensar a educação em profundidade e sem recorrer a ideologias pré-formatadas.
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
Corrupção
Permitam-me a auto-citação: a corrupção é um imposto, e os portugueses só a toleram (por vezes até a admiram) porque não se dão conta que o pagam.
O tema está em discussão há tempo suficiente para se ter estabelecido na sociedade, nos meios de comunicação e na classe política um esboço de consenso sobre os três pilares em que tem que assentar um combate efectivo à corrupção: fim do segredo bancário, criminalização do enriquecimento ilícito e impedimento de os ex-titulares de poder político exercerem cargos em empresas afectadas pelas suas decisões anteriores.
Todos sabemos a luta que tem representado a eliminação do segredo bancário, e o pouco que se avançou nesta matéria.
Conhecemos também a resistência determinada e desesperada do PS à criminalização do enriquecimento ilícito, resistência esta para que não encontra melhor argumento do que uma alegada inconstitucionalidade resultante duma alegada inversão do ónus da prova. Desculpa esfarrapada, esta, sobejamente desmontada por vários juristas, e de entre eles, de forma particularmente clara, por Magalhães e Silva no «i» do passado dia 12 de Novembro. Passo a citar:
Ora o crime de enriquecimento ilícito pode ser formulado nos seguintes termos: é punido com a pena de x anos de prisão o agente público que adquirir bens em manifesta desconformidade com os rendimentos fiscalmente declarados e sem que se conheça outro meio de aquisição lícito. E caberá ao Ministério Público fazer prova de tudo: (i) dos bens adquiridos e seu valor, (ii) dos rendimentos fiscalmente declarados, (iii) da manifesta desconformidade entre uns e outros, (iv) de não ser conhecido outro meio de aquisição lícito. O acusado terá o ónus de provar que, afinal, existe uma causa lícita de aquisição que não era conhecida - herança, bolsa, totoloto, euromilhões.
Ora o ónus de prova, em matéria criminal, sempre se distribuiu assim: a acusação prova o ilícito e a culpa, o acusado os factos que possam excluir uma coisa ou outra - provado o homicídio, é o arguido quem tem de provar a legítima defesa; provado o furto, é o acusado quem tem de provar o estado de necessidade.
Onde, então, a inversão do ónus de prova?!
(Só tenho uma objecção à formulação proposta: porquê restringir a lei a "qualquer agente público"? Porque não "qualquer cidadão"? Não há por aí muitos agentes privados com fortunas inexplicadas?)
Mas adiante: pergunta a seguir o cronista de que tem medo, afinal, o PS, sabendo que a lei nunca seria retroactiva. Respondo eu: se o PS não tem razão para temer o passado, só pode temer o futuro; e isto diz-nos tudo sobre a forma como tenciona governar-nos enquanto for poder.
Mas não podemos esperar melhor do PSD. Vejamos o que tem o seu líder parlamentar a dizer à Focus sobre aquilo a que chamo acima o terceiro pilar do combate à corrupção. Pergunta-lhe o entrevistador se o PSD não faz associação entre a tutela governativa e a colocação de dirigentes partidários nas empresas [que estão a ser investigadas no processo Face Oculta]. Aguiar Branco responde no seu melhor politiquês:
A questão que deve ser debatida é a da responsabilidade política de quem nomeia para funções tuteladas e que deve ter depois a atitude consequente, quando se verifica que os nomeados têm actuações contrárias à transparência e às funções que exercem.
Traduzindo para português vernáculo: as nomeações são para continuar e quando alguma manigância se tornar especialmente escandalosa arranja-se um bode expiatório. Suponho que o PS e o CDS não poderiam estar mais de acordo com isto.
A legislatura ainda mal começou e já temos um elemento de avaliação pare ela: o Bloco Central tudo fará para combater a corrupção desde que não a combata.
O tema está em discussão há tempo suficiente para se ter estabelecido na sociedade, nos meios de comunicação e na classe política um esboço de consenso sobre os três pilares em que tem que assentar um combate efectivo à corrupção: fim do segredo bancário, criminalização do enriquecimento ilícito e impedimento de os ex-titulares de poder político exercerem cargos em empresas afectadas pelas suas decisões anteriores.
Todos sabemos a luta que tem representado a eliminação do segredo bancário, e o pouco que se avançou nesta matéria.
Conhecemos também a resistência determinada e desesperada do PS à criminalização do enriquecimento ilícito, resistência esta para que não encontra melhor argumento do que uma alegada inconstitucionalidade resultante duma alegada inversão do ónus da prova. Desculpa esfarrapada, esta, sobejamente desmontada por vários juristas, e de entre eles, de forma particularmente clara, por Magalhães e Silva no «i» do passado dia 12 de Novembro. Passo a citar:
Ora o crime de enriquecimento ilícito pode ser formulado nos seguintes termos: é punido com a pena de x anos de prisão o agente público que adquirir bens em manifesta desconformidade com os rendimentos fiscalmente declarados e sem que se conheça outro meio de aquisição lícito. E caberá ao Ministério Público fazer prova de tudo: (i) dos bens adquiridos e seu valor, (ii) dos rendimentos fiscalmente declarados, (iii) da manifesta desconformidade entre uns e outros, (iv) de não ser conhecido outro meio de aquisição lícito. O acusado terá o ónus de provar que, afinal, existe uma causa lícita de aquisição que não era conhecida - herança, bolsa, totoloto, euromilhões.
Ora o ónus de prova, em matéria criminal, sempre se distribuiu assim: a acusação prova o ilícito e a culpa, o acusado os factos que possam excluir uma coisa ou outra - provado o homicídio, é o arguido quem tem de provar a legítima defesa; provado o furto, é o acusado quem tem de provar o estado de necessidade.
Onde, então, a inversão do ónus de prova?!
(Só tenho uma objecção à formulação proposta: porquê restringir a lei a "qualquer agente público"? Porque não "qualquer cidadão"? Não há por aí muitos agentes privados com fortunas inexplicadas?)
Mas adiante: pergunta a seguir o cronista de que tem medo, afinal, o PS, sabendo que a lei nunca seria retroactiva. Respondo eu: se o PS não tem razão para temer o passado, só pode temer o futuro; e isto diz-nos tudo sobre a forma como tenciona governar-nos enquanto for poder.
Mas não podemos esperar melhor do PSD. Vejamos o que tem o seu líder parlamentar a dizer à Focus sobre aquilo a que chamo acima o terceiro pilar do combate à corrupção. Pergunta-lhe o entrevistador se o PSD não faz associação entre a tutela governativa e a colocação de dirigentes partidários nas empresas [que estão a ser investigadas no processo Face Oculta]. Aguiar Branco responde no seu melhor politiquês:
A questão que deve ser debatida é a da responsabilidade política de quem nomeia para funções tuteladas e que deve ter depois a atitude consequente, quando se verifica que os nomeados têm actuações contrárias à transparência e às funções que exercem.
Traduzindo para português vernáculo: as nomeações são para continuar e quando alguma manigância se tornar especialmente escandalosa arranja-se um bode expiatório. Suponho que o PS e o CDS não poderiam estar mais de acordo com isto.
A legislatura ainda mal começou e já temos um elemento de avaliação pare ela: o Bloco Central tudo fará para combater a corrupção desde que não a combata.
terça-feira, 17 de novembro de 2009
Em contra-mão na autoestrada
Suponhamos, por um voo louco da imaginação, que o governo da República Portuguesa tinha uma política educativa. Uma tal política resultaria de uma opção sobre o que melhor serve o bem comum: deve o sistema educativo ser sobretudo um sistema de ensino, como querem muitos professores e uma parte significativa da sociedade civil? Deve ser uma fábrica de mão-de-obra, como sugerem muitos empresários e alguns economistas? Deve ser um instrumento de engenharia social, como querem, e têm conseguido impor, os tecno-burocratas do ministério?
Imaginemos em segundo lugar que o governo optava por uma destas hipóteses, ou por uma combinação das três que fosse clara, coerente e explícita. Imaginemos ainda que esta opção dava à componente "ensino" a prioridade que o bom-senso lhe atribui. A primeira questão prática que surgiria seria: o que fazer para que os alunos aprendessem melhor?
Mas ao fazermos esta pergunta verificaríamos que ainda havia decisões políticas a tomar. Com efeito, quando dizemos "os alunos" estamos a falar duma média, e esta média tanto pode melhorar actuando sobre a parte como actuando sobre o todo. Esta decisão não é técnica, mas política, e implica a opção por um de três cenários: um a que chamarei "elitista", outro "populista" e outro "exigente".
No cenário "elitista" tratar-se-á de melhorar significativamente as aprendizagens dos alunos que já aprendem bem, cuidando de não piorar demasiadamente as dos outros. No cenário "populista" tratar-se-á de melhorar as aprendizagens dos que aprendem mal, empurrando os outros para fora da escola pública. No cenário "exigente" tratar-se-á, ainda mais que no "populista", de reduzir a diferença entre os melhores e os piores; assumindo porém a obrigação de melhorar também as aprendizagens dos melhores.
Para termos melhores aprendizagens precisaremos, entre outras coisas, de melhores escolas. Sublinho: entre outras coisas. E para termos melhores escolas precisaremos, mais uma vez entre outras coisas, de melhores professores.
Deixo para outra ocasião a qualidade das escolas e as outras condições que referi e trato aqui apenas da qualidade dos professores. Nesta fase do processo já estará resolvida a questão do que se entende por um bom professor: bom professor é o que ensina bem. Esta definição decorrerá naturalmente duma opção política que dê prioridade ao ensino. Mesmo a questão de ser melhor elevar a média actuando sobre os melhores (ou, em "empresarialês", promovendo a "excelência"); ou actuando sobre os piores; ou actuando sobre todos - decorrerá da decisão política paralela já tomada em relação aos alunos.
Para obter melhores professores seria necessário agir em sede de formação, de recrutamento e de motivação; para aferir os resultados desta acção seria necessário uma avaliação adequada aos fins estabelecidos. Não precisamos de um modelo perfeito: os modelos perfeitos não existem. Precisamos, sim, de um processo de avaliação que seja um meio e não um fim em si mesmo, e de um modelo de avaliação que seja um ponto de chegada e não um ponto de partida. A esta avaliação e a este modelo de avaliação eu não chamaria, se existissem, "moda" nem "fetiche".
Isabel Alçada parece ser muito mais sensata e simpática do que Maria de Lurdes Rodrigues; mas do velhinho que anda em contra-mão na autoestrada eu não quero saber se é simpático e sensato ou antipático e estouvado: quero, sim, medir o perigo que representa para os outros condutores.
Imaginemos em segundo lugar que o governo optava por uma destas hipóteses, ou por uma combinação das três que fosse clara, coerente e explícita. Imaginemos ainda que esta opção dava à componente "ensino" a prioridade que o bom-senso lhe atribui. A primeira questão prática que surgiria seria: o que fazer para que os alunos aprendessem melhor?
Mas ao fazermos esta pergunta verificaríamos que ainda havia decisões políticas a tomar. Com efeito, quando dizemos "os alunos" estamos a falar duma média, e esta média tanto pode melhorar actuando sobre a parte como actuando sobre o todo. Esta decisão não é técnica, mas política, e implica a opção por um de três cenários: um a que chamarei "elitista", outro "populista" e outro "exigente".
No cenário "elitista" tratar-se-á de melhorar significativamente as aprendizagens dos alunos que já aprendem bem, cuidando de não piorar demasiadamente as dos outros. No cenário "populista" tratar-se-á de melhorar as aprendizagens dos que aprendem mal, empurrando os outros para fora da escola pública. No cenário "exigente" tratar-se-á, ainda mais que no "populista", de reduzir a diferença entre os melhores e os piores; assumindo porém a obrigação de melhorar também as aprendizagens dos melhores.
Para termos melhores aprendizagens precisaremos, entre outras coisas, de melhores escolas. Sublinho: entre outras coisas. E para termos melhores escolas precisaremos, mais uma vez entre outras coisas, de melhores professores.
Deixo para outra ocasião a qualidade das escolas e as outras condições que referi e trato aqui apenas da qualidade dos professores. Nesta fase do processo já estará resolvida a questão do que se entende por um bom professor: bom professor é o que ensina bem. Esta definição decorrerá naturalmente duma opção política que dê prioridade ao ensino. Mesmo a questão de ser melhor elevar a média actuando sobre os melhores (ou, em "empresarialês", promovendo a "excelência"); ou actuando sobre os piores; ou actuando sobre todos - decorrerá da decisão política paralela já tomada em relação aos alunos.
Para obter melhores professores seria necessário agir em sede de formação, de recrutamento e de motivação; para aferir os resultados desta acção seria necessário uma avaliação adequada aos fins estabelecidos. Não precisamos de um modelo perfeito: os modelos perfeitos não existem. Precisamos, sim, de um processo de avaliação que seja um meio e não um fim em si mesmo, e de um modelo de avaliação que seja um ponto de chegada e não um ponto de partida. A esta avaliação e a este modelo de avaliação eu não chamaria, se existissem, "moda" nem "fetiche".
Isabel Alçada parece ser muito mais sensata e simpática do que Maria de Lurdes Rodrigues; mas do velhinho que anda em contra-mão na autoestrada eu não quero saber se é simpático e sensato ou antipático e estouvado: quero, sim, medir o perigo que representa para os outros condutores.
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
Intersecções de interesses
Precisamos dos sindicatos, mas não podemos deixar que sejam eles a ditar as regras do jogo. Temos que ver muito bem onde é que os interesses deles se intersectam com os dos professores, onde se intersectam com os do Ministério e onde se intersectam com os dos partidos (que não incluí no esquema acima para não complicar).
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
Rosebud
Não sei se foi pelos anos ou pelo Natal. Tinha eu oito ou nove anos quando o meu pai me ofereceu uma história em doze volumes de Henry Dalton & Philip Gray sobre as "autênticas façanhas de Anton Ogareff, o maior aventureiro eslavo". Um dos meus irmãos recebeu uma obra em quinze volumes dos mesmos autores: A Volta ao Mundo por Dois Aventureiros.
Não sei quantas vezes li e reli as duas histórias ao longo da minha puberdade. Quando eu e o meu irmão adquirimos alguma capacidade de crítica literária e deixámos de lhes dar importância, foram-se perdendo volume a volume até pouco restar delas quando saímos de casa.
Há dias, passei por um alfarrabista e descobri que tinham a colecção completa do Anton Ogareff e que era muito provável que conseguissem arranjar a da Volta ao Mundo. Foi um encanto.
Comparo-me agora, meio século depois, com a criança que tinha aprendido com estas leituras que em tempos, na Rússia, houvera senhores cruéis e mujiques oprimidos; que os Balcãs eram uma região politicamente perturbada (certo) e que a Libéria era um oásis de liberdade e progresso num continente miserável (errado); que havia no mundo a Legião Estrangeira, a selva amazónica, antros de ópio na China, piratas na Malásia e Tugues, seguidores de Khali, na Índia.
Agora, ao reler as aventuras do russo, verifico com alguma surpresa que me lembrava razoavelmente das peripécias violentas, mas de nenhuma peripécia amorosa E são pelo menos dois sub-enredos amorosos; convencionais, sentimentais, rudimentares, mas sub-enredos. Não me lembrava sequer do nome de nenhuma personagem feminina a não ser de uma, Nadia, que depois de chicoteada por ordem do tirano consegue exercer sobre ele uma terrível vingança.
Não sei se saltei as páginas em que se narravam os sofrimentos e as alegrias dos apaixonados, ou se as li sem que se gravassem no meu espírito. A aventura empolgava-me, mas o amor passava-me ao lado.
Pergunto a mim mesmo se hoje alguém daria a ler histórias como estas a uma criança de nove anos. Estou em crer que não. Seria politicamente incorrecto mostrar a violência tão de perto e apresentar como herói uma personagem que é, pelos padrões de hoje, um terrorista - ainda que a nobreza do seu carácter seja imensa, e profunda a baixeza do príncipe, contra quem se revolta de armas na mão. E seria pedagogicamente incorrecto confrontar uma criança com noções - neste caso o enamoramento - que ela ainda não é capaz de compreender.
Mas a verdade é que estas histórias não me fizeram, que eu saiba, mal nenhum. Aquilo que não compreendia, ignorei-o, ou interpretei-o à minha maneira: não me fez confusão. Mas compreendi muito bem que a tirania é execrável, e que o derrube dos tiranos pela força é um direito dos homens.
Não sei quantas vezes li e reli as duas histórias ao longo da minha puberdade. Quando eu e o meu irmão adquirimos alguma capacidade de crítica literária e deixámos de lhes dar importância, foram-se perdendo volume a volume até pouco restar delas quando saímos de casa.
Há dias, passei por um alfarrabista e descobri que tinham a colecção completa do Anton Ogareff e que era muito provável que conseguissem arranjar a da Volta ao Mundo. Foi um encanto.
Comparo-me agora, meio século depois, com a criança que tinha aprendido com estas leituras que em tempos, na Rússia, houvera senhores cruéis e mujiques oprimidos; que os Balcãs eram uma região politicamente perturbada (certo) e que a Libéria era um oásis de liberdade e progresso num continente miserável (errado); que havia no mundo a Legião Estrangeira, a selva amazónica, antros de ópio na China, piratas na Malásia e Tugues, seguidores de Khali, na Índia.
Agora, ao reler as aventuras do russo, verifico com alguma surpresa que me lembrava razoavelmente das peripécias violentas, mas de nenhuma peripécia amorosa E são pelo menos dois sub-enredos amorosos; convencionais, sentimentais, rudimentares, mas sub-enredos. Não me lembrava sequer do nome de nenhuma personagem feminina a não ser de uma, Nadia, que depois de chicoteada por ordem do tirano consegue exercer sobre ele uma terrível vingança.
Não sei se saltei as páginas em que se narravam os sofrimentos e as alegrias dos apaixonados, ou se as li sem que se gravassem no meu espírito. A aventura empolgava-me, mas o amor passava-me ao lado.
Pergunto a mim mesmo se hoje alguém daria a ler histórias como estas a uma criança de nove anos. Estou em crer que não. Seria politicamente incorrecto mostrar a violência tão de perto e apresentar como herói uma personagem que é, pelos padrões de hoje, um terrorista - ainda que a nobreza do seu carácter seja imensa, e profunda a baixeza do príncipe, contra quem se revolta de armas na mão. E seria pedagogicamente incorrecto confrontar uma criança com noções - neste caso o enamoramento - que ela ainda não é capaz de compreender.
Mas a verdade é que estas histórias não me fizeram, que eu saiba, mal nenhum. Aquilo que não compreendia, ignorei-o, ou interpretei-o à minha maneira: não me fez confusão. Mas compreendi muito bem que a tirania é execrável, e que o derrube dos tiranos pela força é um direito dos homens.
domingo, 1 de novembro de 2009
O que aprendi com as críticas
Era minha intenção escrever hoje um texto em que explicitasse e desenvolvesse a referência ao neotaylorismo que faço no título da minha proposta de avaliação. Fica para depois.
Para já, quero agradecer as críticas que recebi - tanto as negativas como as positivas, tanto as que me parecem acertadas como as que me parecem ao lado, tanto as que me parecem mais viscerais como as que me parecem mais reflectidas. Nenhuma me pareceu ofensiva ou mal intencionada e todas me foram úteis.
Uma crítica recorrente foi a imperfeita correspondência entre a secção inicial do texto e o restante articulado. O demónio, já se sabe, está nos pormenores; e fiquei a saber que, se a minha intenção fosse fazer vingar politicamente a proposta que faço, teria que trabalhar muito para conciliar melhor os princípios de que parto com a sua aplicação concreta.
A segunda lição, decorrente desta, é que é muito mais fácil obter a concordância dos outros em matéria de princípios abstractos do que na sua aplicação concreta. Esta é uma lição importante, não só para mim, como para qualquer pessoa que intervenha no debate educativo. É na transição entre a teoria e a prática que as dissensões aparecem e as solidariedades se desfazem. O governo sabe disto, e não foi por acaso que Francisco Assis se foi colocando em posição de atacar aquilo a que chamou "coligações negativas". A defesa contra estas tácticas implica a obediência a um lema: rigidez e radicalidade no abstracto, flexibilidade e moderação no concreto; e isto especialmente no debate com quem está do nosso lado. Rigidez e radicalidade para que as nossas posições não percam coerência nem sentido; flexibilidade e moderação para que não se criem fracturas onde não as há.
Terceira lição: qualquer referência aos alunos como possíveis avaliadores, mesmo que envolta em todas as precauções e salvaguardas possíveis, toca um nervo sensível dos professores. É natural que assim seja: as feridas que sofremos são demasiado recentes e ainda estão abertas; o nervo está ainda exposto; e nem sequer está garantido que o processo de cura esteja em vias de começar. Continuo a acreditar que este debate deve ser feito, mas talvez seja sensato deixá-lo para mais tarde. Para já, deixo apenas, relacionada com este tema, uma proposta de reflexão: já que nenhum avaliador pode ser totalmente idóneo, que tal alargar o mais possível o leque de avaliadores, criando do mesmo passo um sistema de freios e contrapesos que os condicione a todos?
A última lição, que aprendi por via indirecta e por processos mentais mais inconscientes que deliberados, nasce da oposição entre adequação e perfeição que fui levado a estabelecer, e desagua na solução duma perplexidade para a qual ainda não tinha encontrado resposta satisfatória: de onde nasceram os monstros do modelo de avaliação e do ECD? Como foi possível inscrever na realidade dois objectos tão desconformes a ela?
Uma das respostas aventadas por Santana Castilho - a abismal ignorância de uma ministra que nem sequer sabe o que é uma escola nem para que serve - é sem dúvida correcta, mas não chega. Se lhe adicionarmos a propensão tecnocrática de José Sócrates, o seu fascínio bacoco com os meios em detrimento dos fins, ter-nos-emos aproximado mais um pouco da solução, mas continuaremos longe dela. A vassalagem da nossa classe política a corporações que nada têm a ver com o propalado interesse público (como a indústria das ESE's e o lóbi dos editores) é mais uma explicação. A moda de que tudo deve funcionar "como as empresas" - quando nem as empresas funcionam "como as empresas" - é outra peça do puzzle. O poder das burocracias intermédias do Ministério, e a torre de marfim em que vivem e se multiplicam, é outra.
A peça que me faltava é aquilo a que Goya chamou "o sonho da razão", que "engendra monstros". Maria de Lurdes Rodrigues deixou-se envolver num sonho de perfeição e de absoluto; quis medir tudo até à última casa decimal; pensou, como pensam os astrólogos, que o rigor dos números e a complexidade dos cálculos podem compensar o absurdo das premissas. Em vez de procurar remédios adequados para todos os males do ensino, tentou impor uma solução impossivelmente perfeita para apenas um - que apresentou como se fosse o único.
O sonho da razão engendra monstros, com efeito. O próprio rigor pode entrar em delírio. Mas isto é matéria para outro texto: o tal que tinha previsto escrever sobre o neotaylorismo.
Para já, quero agradecer as críticas que recebi - tanto as negativas como as positivas, tanto as que me parecem acertadas como as que me parecem ao lado, tanto as que me parecem mais viscerais como as que me parecem mais reflectidas. Nenhuma me pareceu ofensiva ou mal intencionada e todas me foram úteis.
Uma crítica recorrente foi a imperfeita correspondência entre a secção inicial do texto e o restante articulado. O demónio, já se sabe, está nos pormenores; e fiquei a saber que, se a minha intenção fosse fazer vingar politicamente a proposta que faço, teria que trabalhar muito para conciliar melhor os princípios de que parto com a sua aplicação concreta.
A segunda lição, decorrente desta, é que é muito mais fácil obter a concordância dos outros em matéria de princípios abstractos do que na sua aplicação concreta. Esta é uma lição importante, não só para mim, como para qualquer pessoa que intervenha no debate educativo. É na transição entre a teoria e a prática que as dissensões aparecem e as solidariedades se desfazem. O governo sabe disto, e não foi por acaso que Francisco Assis se foi colocando em posição de atacar aquilo a que chamou "coligações negativas". A defesa contra estas tácticas implica a obediência a um lema: rigidez e radicalidade no abstracto, flexibilidade e moderação no concreto; e isto especialmente no debate com quem está do nosso lado. Rigidez e radicalidade para que as nossas posições não percam coerência nem sentido; flexibilidade e moderação para que não se criem fracturas onde não as há.
Terceira lição: qualquer referência aos alunos como possíveis avaliadores, mesmo que envolta em todas as precauções e salvaguardas possíveis, toca um nervo sensível dos professores. É natural que assim seja: as feridas que sofremos são demasiado recentes e ainda estão abertas; o nervo está ainda exposto; e nem sequer está garantido que o processo de cura esteja em vias de começar. Continuo a acreditar que este debate deve ser feito, mas talvez seja sensato deixá-lo para mais tarde. Para já, deixo apenas, relacionada com este tema, uma proposta de reflexão: já que nenhum avaliador pode ser totalmente idóneo, que tal alargar o mais possível o leque de avaliadores, criando do mesmo passo um sistema de freios e contrapesos que os condicione a todos?
A última lição, que aprendi por via indirecta e por processos mentais mais inconscientes que deliberados, nasce da oposição entre adequação e perfeição que fui levado a estabelecer, e desagua na solução duma perplexidade para a qual ainda não tinha encontrado resposta satisfatória: de onde nasceram os monstros do modelo de avaliação e do ECD? Como foi possível inscrever na realidade dois objectos tão desconformes a ela?
Uma das respostas aventadas por Santana Castilho - a abismal ignorância de uma ministra que nem sequer sabe o que é uma escola nem para que serve - é sem dúvida correcta, mas não chega. Se lhe adicionarmos a propensão tecnocrática de José Sócrates, o seu fascínio bacoco com os meios em detrimento dos fins, ter-nos-emos aproximado mais um pouco da solução, mas continuaremos longe dela. A vassalagem da nossa classe política a corporações que nada têm a ver com o propalado interesse público (como a indústria das ESE's e o lóbi dos editores) é mais uma explicação. A moda de que tudo deve funcionar "como as empresas" - quando nem as empresas funcionam "como as empresas" - é outra peça do puzzle. O poder das burocracias intermédias do Ministério, e a torre de marfim em que vivem e se multiplicam, é outra.
A peça que me faltava é aquilo a que Goya chamou "o sonho da razão", que "engendra monstros". Maria de Lurdes Rodrigues deixou-se envolver num sonho de perfeição e de absoluto; quis medir tudo até à última casa decimal; pensou, como pensam os astrólogos, que o rigor dos números e a complexidade dos cálculos podem compensar o absurdo das premissas. Em vez de procurar remédios adequados para todos os males do ensino, tentou impor uma solução impossivelmente perfeita para apenas um - que apresentou como se fosse o único.
O sonho da razão engendra monstros, com efeito. O próprio rigor pode entrar em delírio. Mas isto é matéria para outro texto: o tal que tinha previsto escrever sobre o neotaylorismo.
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