Carlos Santos, n'O Valor das Ideias, faz a sua declaração de voto a favor do PS. O texto merece ser lido pela alto nível de reflexão que revela - que aliás é timbre do autor - pela honestidade intelectual da argumentação e pela articulação do discurso. Só discordo dele em duas matérias: a confiança que ele põe na pessoa de José Sócrates, e outra, crucial, que exporei adiante.
O meu voto vai ser na esquerda e na modernidade. Não vai ser no PS pelo seguinte:
1. O neoliberalismo
Carlos Santos declara-se consciente da «deriva» neoliberal do PS na legislatura que agora termina e declara-se contrário a ela. Eu não creio que se trate apenas duma deriva: foi muito mais do que isso, foi uma política. E, se é certo que as políticas podem mudar, eu não confio no PS, enredado que está na mesma teia de interesses que enreda o PSD e o CDS, como agente desta mudança.
2. O Tratado de Lisboa
O neoliberalismo é mais que uma deriva, é uma política; e, com o Tratado de Lisboa, será mais que uma política: será um regime que condicionará todas as políticas europeias. Pior ainda: será um regime imposto contra a vontade expressa dos eleitorados (se os irlandeses votarem «sim» no próximo referendo, como fazem prever as sondagens, será caso único e não fará esquecer que, em todas as outras ocasiões em que foi permitido aos eleitores pronunciar-se, disseram «não»). A entrada em vigor do Tratado de Lisboa blindará o neoliberalismo contra todas as mudanças presentes ou futuras. Tratar-se-á, portanto, não duma opção política, mas duma opção de regime, de natureza constitucional, tomada sem o consentimento dos povos e sem a maioria qualificada que normalmente se exige em questões de regime - seja no Parlamento Europeu, seja em qualquer um dos Parlamentos nacionais. Ao sonegar aos portugueses o referendo que lhes tinha prometido, José Sócrates fez muito pior do que deixar uma promessa por cumprir: colaborou num golpe de estado à escala europeia, pois outra coisa não se pode chamar à instituição habilidosa de um regime que nem os actuais cidadãos, nem os futuros, poderão facilmente modificar por meios democráticos. José Sócrates tem responsabilidades neste golpe de estado: a sua actuação, tal como a dos seus congéneres europeus, não configura uma mera deriva, nem sequer uma política que os cidadãos possam um dia mudar; configura, sim, um novo regime a que todos os europeus estarão sujeitos, quer queiram, quer não. Restam-nos apenas duas ténues esperanças: que os irlandeses, apesar do que prevêem as sondagens, acabem por votar «não»; ou que David Cameron, vencendo as eleições no Reino Unido, sujeite a questão a referendo. (Nunca me imaginei a torcer por um Partido Conservador, mas é bem verdade que a política dá muitas voltas).
3. A corrupção
Não sou juiz, sou eleitor. Consequentemente, não defino a corrupção juridicamente, mas politicamente: corrupção é tudo aquilo, legal ou ilegal, que favoreça a convertibilidade recíproca entre riqueza e poder. A história do PS no Parlamento durante os últimos quatro anos é confrangedora neste particular. Desde as propostas do Engº Cravinho às do Bloco de Esquerda, tudo o que pudesse ser eficaz no combate à corrupção foi bloqueado pela maioria; e tudo o que partiu do PS foi no sentido oposto. Foram os PIN, foram os ajustes directos, foi o finca-pé no segredo bancário, foi um Código de Processo Penal que parece expressamente concebido para deixar impunes os crimes de colarinho branco... Já se sabe que a corrupção não pode ser eliminada, especialmente na definição que dei dela acima; mas pode ser diminuída, e a impressão que fica é que o PS fez tudo o que podia, não para a diminuir, mas para a favorecer.
4. Os grandes bloqueios da sociedade portuguesa
O diagnóstico está feito há muito tempo e é relativamente consensual: os grandes bloqueios que impedem o nosso desenvolvimento são a corrupção, que discuti acima, e a falta de eficácia da Justiça e do Ensino. Foi esta a situação que José Sócrates encontrou quando chegou ao poder; e agora, no fim da legislatura, deixa tudo pior do que estava.
Em vez de encontrar soluções reais para problemas concretos, este governo optou por soluções virtuais para problemas em larga medida inventados.
O problema principal da nossa justiça é o formalismo e a excessiva preocupação com a correcção técnica em detrimento da justiça substancial. Não interessa o que se prova, mas o que se dá por provado. Quod non est in acta non est in mundo: este princípio é justo, mas levado ao extremo leva às demoras e às burocracias de que todos nos queixamos e, pior que isso, contribui para a percepção generalizada de que a justiça é injusta. O governo, porém, em lugar de atacar o verdadeiro problema, decidiu convocar um pogrom contra os privilégios, reais e supostos, dos juízes. A sociedade não se tornou mais justa, a justiça não passou a fazer-se em tempo útil, mas Sócrates ganhou popularidade: era isto que interessava.
No ensino, os professores andam há décadas a alertar contra os três bloqueios principais do sistema: pedagogia delirante, incivismo endémico e burocracia asfixiante. Tudo isto piorou com Maria de Lurdes Rodrigues: produto do ISEG, criada no caldo de cultura do pedagogismo, a própria palavra "ensino" lhe queima os lábios. Em quatro anos, não moveu uma palha para que nas escolas portuguesas se ensinasse melhor. Não moveu uma palha para que diminuíssem o incivismo, a indisciplina e a violência nas escolas, nem para que os alunos e os encarregados de educação assumissem as suas responsabilidades; pelo contrário, fez aprovar um "Estatuto do Aluno" que só agrava a situação. Não desburocratizou: pelo contrário, transformou a vida dos professores num inferno burocrático que não lhes deixa nem tempo, nem disposição para exercer aquilo qque eles acham (mas a ministra não) que é a sua verdadeira função: ensinar.
Na corrupção, na justiça, no ensino, este governo não fez política, mas sim espectáculo; não trabalhou para o país real, mas para o país virtual dos técnicos de marketing político. Deixou tudo pior do que estava antes. Hostilizou potenciais aliados e criou tantos anticorpos que qualquer solução futura para os problemas da corrupção, da justiça e do ensino vai ser mais difícil, mais demorada e mais incerta do que era há quatro anos.
É possível, é mesmo provável, que tudo o que escrevi atrás esteja enviesado pela minha condição de professor. A quem me lê, peço que desconte o eventual viés e meça o que afirmei pelo conhecimento que tem dos factos. O que o PS fez aos professores, fez também a outros portugueses; e fá-lo-á a muitos mais se lhe dermos oportunidade para tal. O que está fora de causa, para mim, é votar PS. Desejo que o PS tenha mais votos que o PSD, mas não que tenha muitos mais. Desejo que o PS governe, mas não com maioria absoluta, e não com o meu voto. Esse vai para o Bloco de Esquerda.
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11 comentários:
Cada um é livre de votar onde quer. Eu quero a derrota do PS e por isso voto contra este partido que tanto nos humilhou... Dia 27 de Setembro o PS será chumbado pelos professores!
Penso exactamente como o autor.
Está aqui um excelent texto que, no entanto, peca por revelar, do seu autor, espírito de contradição. Votar do BE desejando que ganhe o PS é isso mesmo, uma contradição injustificável.
Saudações
Elias
Pois! Está tudo muito bem, mas essa de votar no BE desejando a vitória do PS é que não me entra. Quero que se saiba que o PS foi derrotado e que os professores tiveram um papel importante nessa derrota.
Saudações
Elias
Os professores terão razões de queixa de Sócrates. Mas seriam bom que na hora de votar, cada um pensasse nos interesses nos portugueses, não nos dos professores...
Elias, o que eu desejo, idealmente, é que o BE ganhe as eleições, e por isso voto nele.
Sendo improvável uma vitória do BE, o mal menor seria, na minha opinião, uma vitória do PS, desde que apenas com maioria relativa. Isto significaria, realisticamente, que o PS teria pouco mais votos que o PSD. Não é o que eu desejo idealmente, é o que desejo realisticamente. O mal maior seria uma vitória do PSD, mas essa não me parece provável.
Mas se o PSD descesse tanto que ficasse a uma larga distância do PS, isso seria ouro sobre azul. E se os dois partidos juntos não conseguissem obter 2/3 dos deputados, ainda melhor: estaria afastado o perigo de a Constituição ser revista num sentido neoliberal.
Como vê, não há contradição, há apenas a consciência de que o óptimo é inimigo do bom.
Deixei claro no meu texto que estava a pensar no interesse dos portugueses, embora admitindo que a minha visão desse interesse possa estar enviesada pela minha condição de professor.
Cabe aqui citar o famoso poema de Brecht: «Primeiro levaram os comunistas...»
O que Sócrates fez aos professores, pode fazê-lo também (e tem-no feito) aos outros portugueses. Nenhuma classe profissional está livre de levar com culpas que são do governo.
O Estado faz leis que fomentam a indisciplina nas escolas, o desprezo pelo conhecimento e a burocracia? A culpa é dos professores. O Estado litiga gratuitamente e recorre por rotina, entupindo os tribunais? A culpa é dos juízes. O Estado põe o sistema de saúde ao serviço das empresas privadas? A culpa é dos médicos.
Ponha as barbas de molho, caro Anónimo. Se votar PS ou PSD, arrisca-se a que amanhã a culpa de tudo seja sua.
Caro JLS, lamento não ter esclarecido que a minha resposta visava o comentário de Safira, não o seu. Já quanto às barbas de môlho, divergimos no ponto de que eu acho que para os portugueses Ferreira Leite não é o mesmo que Sócrates...Aliás, nem para os portugueses, nem para os professores...
Eliminei um comentário, assinado por Manuel Baptista, apesar de estar relacionado com o tema do meu post e de não ser grosseiro nem ofensivo.
Mas estava integralmente escrito em maiúsculas. Se o autor quiser reenviar-mo sem ser aos berros, terei todo o gosto em publicá-lo.
Pelas razões invicadas por si e outras também vitarei no Bloco - e gostaria de ver a esquerda em maioria - por isso não desejo sequer a vitória deste PS (em que votei sempre até Junho passado)e muito menos qualquer naioria absoluta.
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