Pela sua importância, reproduzo aqui um texto publicado por Inquisidor, com o título que reproduzo, n'O Cartel, em que se mostra que a defesa da escola pública é inseparável da defesa da escola republicana. Espero que o autor que me desculpe ter juntado os dois textos num só e ter efectuado sobre este algum trabalho de edição incidindo sobre a pontuação e algumas «gralhas» que detectei. Tomei ainda a liberdade de destacar algumas frases e expressões.
É à República que se deve a invenção da escola pública. Esta dívida é dupla: a república não só a inventou como instituição, mas também como conceito. Nisso, a escola pública não é apenas um objecto institucional e político; é também um objecto de pensamento.
Se a instituição escolar é tributária da história e das suas determinações contingentes, a escola pública, como objecto filosófico, é tributária de princípios que se desdobram em virtude da sua única necessidade e que articulam uma concepção do político a uma concepção do saber, encontrando o seu ponto de ancoragem na epistemologia cartesiana e na enciclopédia das Luzes.
Se a ligação entre laicidade e escola pública é uma ligação poderosa, é porque aquele princípio intervém, na constituição da escola pública, a um duplo nível: o político-jurídico, mas igualmente a um nível mais fundamental e filosófico. No plano jurídico, a laicidade (como princípio) tornou possível a secularização da escola, operação que a faz existir como instituição pública.
Sabe-se que a história da instituição escolar foi fortemente marcada pela luta contra a Igreja, que no anterior regime (a monarquia), detinha o monopólio do ensino.
Arrancando o ensino às forças que queriam reduzi-lo a uma empresa de edificação das almas, os republicanos instituiram a escola pública, lugar no qual os funcionários são submetidos à obrigação da neutralidade. Mas, a escola pública é muito mais que uma instituição neutra: a laicidade não é apenas um princípio exterior que a protege dos interesses particulares e do proselitismo religioso; é constitutiva da escola ela mesma. É a razão pela qual a escola pública é a única instituição que entende a obrigação da neutralidade aos “usuários”, quer dizer, aos alunos.
Na escola, os alunos são levados a realizar a operação que está no princípio, ele próprio, do regime de laicidade: a constituir-se como átomos desligados das estruturas moleculares nas quais estão presos alguns (ligações familiares ou comunitárias), não para se deligarem definitivamente, mas para os colocar à distância e trabalhar assim para limpar o seu pensamento das opiniões, designadamente preconceitos, que o alienam.
Pela confrontação dos saberes, pela longa sinuosidade das humanidades, o aluno é convocado a dividir-se, divisão sem a qual nenhuma reforma do pensamento é possível.
O espaço escolar, reduzido a esse lugar que é a classe, é, aí, um espaço isomorfo ao da associação política. A classe é uma “classe paradoxal” onde os sujeitos existem, não pelo que os particulariza e os determina socialmente, mas pelo que os distingue, quer dizer, pelo que os singulariza; pelo gosto por tal ou tal matéria, pelo talento em tal disciplina, pela sua paixão por tal obra.
Graças à intelecção dos saberes que a escola transmite, os alunos fazem a experiência concreta da liberdade; compreendem pelas únicas forças do seu entendimento, e nada, então, lhes dita o que pensam. Fazendo isto, os alunos fazem a experiência concreta da igualdade: não são mais indivíduos determinados socialmente, mas sujeitos convocados para o mesmo esforço e as mesmas exigências. Poder-se-ia ir ao ponto de dizer que fazem também, na escola, a experiência da fraternidade, um tanto de camaradagem (ninguém tem necessidade da escola para isso.)
A invenção da escola conforme aos princípios republicanos exigia a construção dum novo paradigma. Entende-se aqui por paradigma um conjunto de propostas ou conceitos simples, ocupando o lugar de fundamento e operando como modelo. O paradigma republicano pode ser enunciado a partir dos três conceitos seguintes:
A escola tem por fim a liberdade· Não há liberdade possível sem instrução· A instrução consiste numa transmissão razoável de saberes.
O primeiro pressupõe que um cidadão livre é um cidadão esclarecido. Tem por implicação a universalidade da escola; se a liberdade é o primeiro fim que deve ser visado pela política, então todos os indivíduos deverão ser instruídos. Daí ressalta a necessidade de criar uma instrução pública; se a instrução é um direito de crença, então a escola deve existir como uma instituição colocada so a égide da esfera da autoridade pública.
O segundo conceito pressupõe que a ignorância é uma fonte de alienação. Se a escola deve instruir, é porque o saber é em si mesmo libertador; liberta da tutela dos que sabem e que poderiam aproveitar-se do poder que lhes confere o saber.
O terceiro pressupõe que todo o saber não faz objecto duma instrução; há saberes que não são da esfera escolar; esta última devendo privilegiar aqueles cuja mestria permite encarar todos os campos do conhecimento.
Destes três conceitos ressalta a seguinte consequência: o lugar natural da escola é a classe, a aula. A instrução supõe um local de abrigo dos barulhos do mundo e no qual os saberes podem ser empregues em virtude dos seus princípios, segundo a ordem racional.
A defesa da escola pública é um dos papéis históricos da esquerda política. Mas a palavra de ordem “defender a escola pública” é, na realidade, um equívoco. Pode revestir um significado mínimo: defender a escola pública significa escola como instituição nacional.
Nesta perspectiva, a questão dos meios torna-se central. De facto, torna-se a única reivindicação da esquerda em matéria da escola: exigir a concessão de fundos públicos para a única escola pública, denunciar a supressão dos postos de ensino, tais são os cavalos de batalha da esquerda no seu combate em favor da escola pública.
Mas a sua defesa pode, também, revestir um significado máximo: defendê-la como conceito. Este equívoco está na origem da famosa “querela da escola” dos anos 80, o que talvez prove que o equívoco não esteja ainda inteiramente sanado.
A “querela da escola” não poderia ser confundida com o que os média têm podido chamar de “a guerra escolar”, que opõe os partidários da escola pública aos da escola privada.
Lembremo-nos que a “querela da escola”, diferentemente da famosa “guerra escolar”, é bastante recente. Produziu no seio da esquerda uma clivagem entre “pedagogistas” e “anti-pedagogistas”. O pedagogismo designa a posição dos que, mantendo a defesa da escola pública como instituição, entendem por bem reformá-la. Na ocorrência, a palavra “reforma” designa uma revolução profunda, já que tudo se resume a uma mudança de paradigma. Se o pedagogismo é polimorfo e sobrepõe, nos factos, propostas que se distinguem pelo seu grau de radicalidade, encontra o seu ponto de ancoragem no recolocar da questão do paradigma republicano, suposto atiçador, acusado de elitista e de favorecer a reprodução social.
Desde os anos 80, as diferentes reformas que o pedagogismo inspirou esgotaram todas as declinências possíveis: do pedagogismo radical, que põe em questão o próprio princípio da separação entre a escola e a sociedade civil, e que exige uma escola “aberta para a vida”, ao pedagogismo benevolente que entende apenas “meter a criança no coração do sistema”, passando pelo pedagogismo hábil que, sob a capa de preservar a escola e o seu objecto, a saber a instrução, torna impossível o exercício (denunciando o princípio do desdobramento) e que substitui aos saberes uma pedagogia desconexa das disciplinas, sem obrigar o pedagogismo extravagante, inventor duma nova linguagem que faz hoje sorrir e métodos felizmente abandonados; as diferentes figuras do pedagogismo são, doravante conhecidas.
Sejam quais forem as propostas anunciadas e nao obstante as negações dos seus representantes mais eminentes, o pedagogismo tem por objectivo a liquidação do paradigma republicano.
A finalidade da escola já não é a liberdade, mas o desenvolvimento dos indivíduos. O seu objecto já não é a transmissão de valores, a aquisição de saber fazer e de saber ser e estar. Trata-se menos de instruir que educar. O seu lugar material não é mais a classe, mas tudo o que existe “fora das paredes”.
O paradigma pedagogista chegou hoje ao termo da sua lógica. A escola é hoje um espaço incluído na sociedade da qual herda todos os males e que dita as suas exigências.
O seu papel já não é instruir, mas responder aos “problemas sociais” e aos pedidos dos seus alunos e seus pais. Assiste-se, consequentemente, a um estranho paradoxo: a escola reformada é uma escola desescolizada, concebida como um mercado ao qual os alunos vêm procurar competências e não mais o lugar da «skole», palavra grega que designa outra forma de lazer que nada tem a ver com jogo ou brincadeira, onde o pensamento só tem que pensar e pode trabalhar para se reformar.
O equívoco é tal que pôde dar lugar a alianças paradoxais. Assim, a direita nacional católoica colocou-se ao lado do anti-pedagogismo e, por estranha ironia da história, encontrou-se a defender o paradigma republicano. Como explicar esta aliança objectiva?
Paralelamente, assiste-se, há alguns anos, a uma outra aliança objectiva, desta vez entre a direita neoliberal e o pedagogismo. A direita neoliberal compreendeu que, para enfraquecer a escola pública e acelerar com esse facto a liberalização do ensino, a estratégia mais hábil e a mais eficaz consistia menos em atacar frontalmente a escola pública que em liquidar, insidiosamente, o paradigma republicano.
Se se pretende defender eficazmente a escola pública, é preciso acabar com este equívoco. A escola pública exige ser defendida como instituição e como conceito. Defender a escola como serviço público não é suficiente. A reivindicação dos meios manter-se-á vã se o adversário persegue a liquidação do paradigma republicano.
Após trinta anos de “querela da escola”, é tempo para clarificar o modelo que é preciso para defender a escola pública e romper com a ideologia pedagogista.
Considerar que a única clivagem existente é a que opõe os reformadores de esquerda aos conservadores de direita, nostálgicos da escola de antanho, leva a cometer um erro grosseiro de análise, já que existe um anti-pedagogismo de esquerda que não é de nostalgia ou de tradição, mas uma fidelidade ao paradigma que os republicanos, em 1911, construiram.
É preciso voltar a dar aos professores todo o protagonismo que não apenas merecem, mas lhes é devido e necessário, para que a escola volte a ser tudo o que já foi e deve voltar a ser.
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