As ciências experimentais têm mecanismos e protocolos de validação conhecidos de todos: a apresentação de resultados em publicações idóneas, a avaliação cega por pares, a replicabilidade, a falsificabilidade. As aplicações práticas dos seus resultados são sujeitas a filtros adicionais: a avaliação económica e política da sua viabilidade, a avaliação técnica e deontológica por parte das associações profissionais relevantes. Graças a estes mecanismos, nós, os leigos, se tivermos algumas noções básicas de Filosofia das Ciências, podemos afirmar com um razoável grau de confiança que certas teorias pretensamente científicas, como o criacionismo, a homeopatia ou a negação do aquecimento global, são tretas sem qualquer credibilidade.
A Matemática é um caso singular: é a única ciência exacta que não é experimental. Mas também os seus resultados se sujeitam a uma validação científica rigorosa, graças à qual os leigos podem confiar nos matemáticos.
No caso das Ciências Humanas, a validação é muito mais problemática. Não posso, na minha qualidade de filólogo, pedir aos leigos um grau de confiança nas minhas formulações que seja suficiente para basear nelas práticas ou técnicas consensuais. Isto não me dispensa, porém, como não dispensa o sociólogo, o politólogo, o filósofo ou o historiador, de praticar o rigor possível nem de me sujeitar à validação possível - quando mais não seja (e pode ser mais), a que resulta duma avaliação da coerência interna do discurso, da cogência dos argumentos e da congruência entre as conclusões e os modelos da realidade provenientes das outras áreas do saber. Não posso, enquanto filólogo, dispensar a psico-linguística; esta não pode dispensar a psicologia experimental; e o psicólogo não pode, por sua vez, desprezar os dados da Neuropsicologia.
Nas Ciências Humanas o rigor é possível, mas é muito mais difícil do que nas ciências exactas ou experimentais: os protocolos de validação não estão estabelecidos com a mesma segurança, e por outro lado o investigador vê-se obrigado a trabalhar fora da sua área de competência, aumentando assim a probabilidade de erro.
A tentação sempre presente nas Ciências Humanas é prescindir dos métodos e protocolos da validação científica a favor duma validação político-administrativa; e, se as suas teorias tiverem implicações na estrutura de poder e nas relações de força presentes no corpo político, o poder tenderá a encorajar esta dependência.
Não admira, portanto, que as Ciências da Educação e a Economia se encontrem em circunstâncias semelhantes no que toca a sua relação com o poder político. De entre todas as teorias pedagógicas, os Estados escolhem, sobretudo nos países em que a tradição política é o centralismo napoleónico, as que são politicamente mais favoráveis aos grupos dominantes, conferindo-lhes o estatuto de pensamento único e relegando as alternativas para o plano da inexistência. Deste modo, o combate de muitos professores contra o pensamento único nas Ciências da Educação passa a ser apresentado, na propaganda oficial, como um combate contra as próprias Ciências da Educação.
Esta politização do saber, a sua degradação em ideologia e a violência que é o "pensamento único" são patentes também no campo da Economia. Os economistas "heterodoxos", mesmo quando da craveira de um Paul Krugman (ele próprio refere aqui este facto), vêem dificultado o seu acesso à Comunicação Social ou, se são referidos, são apresentados como anti-economistas ou não-economistas. A Alemanha inclui na sua Constituição normas que favorecem uma escola de pensamento económico em detrimento de outras, procurando assim condicionar as escolhas politico-económicas, não só dos seus dirigentes políticos actuais, como dos futuros. O Tratado de Lisboa consagra e constitucionaliza, contra a vontade até agora expressa dos povos europeus, o neoliberalismo.
As instituições têm, é claro, a sua legitimidade. Mas é bom que se compreenda que nem o Ministério da Educação em Portugal, nem a Comissão Europeia, nem o Bundesbank na Alemanha têm autoridade científica que lhes permita validar certas escolas de pensamento em detrimento de outras, e muito menos blindá-las de modo a comprometer com elas as gerações futuras.
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sábado, 18 de julho de 2009
Ciências da Educação, Economia e Filosofia das Ciências
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5 comentários:
Caro José Luiz Sarmento:
li o seu comentário à "declaração de voto" de Miguel Vale de Almeida no blog deste. Pessoalmente não estou de acordo com a sua conclusão geral, embora partilhe de alguns dos seus argumentos. Mas, sobretudo, fiquei muito admirado com os seus comentários ao tratado de Lisboa (independentemente da questão de saber se Sócrates devia ou não ter organizado um referendo sobre a sua ratificação). Considero-os profundamente errados e creio que se trata de uma questão importante que deve ser discutida publicamente, tantas são as "falsidades" sobre o TL que vejo repetidas em diferentes meios de comunicação. Como não disponho de outro meio de lhe fazer chegar o emu comentário, permito-me enviar-lho por esta via, embora não tenha directamente a ver com o tema do seu post de 18 de Julho.
Espero poder contribuir para uma discussão séria e profunda sobre tão importante tema.
"“Tanta falsidade sobre o Tratado de Lisboa!”
(Resposta a José Luiz Sarmento).
Não sei se Sócrates é ou não o melhor 1º Ministro que tivemos. Sei de certeza é que a sua afirmação: ” Sócrates vai ficar na História por ter sonegado aos portugueses um referendo que lhes permitiria pronunciar-se contra o Tratado de Lisboa - um documento que constitucionaliza o neoliberalismo e acabará, se for posto em prática, com qualquer possibilidade de democracia na Europa.” é completamente falsa (à parte o facto evidente de que Sócrates não organizou um referendo ao TL) e constitui um claro exemplo dos dislates que se dizem/escrevem todos os dias sobre a Europa.
Vindo da extrema direita nacionalista, não me toca, mas infelizmente muitas vezes vem de quem se diz de esquerda.
1. Que eu saiba, ainda está por demonstrar que o referendo, a realizar-se, teria resultado na rejeição do TL pelos portugueses. Mas, claro, os ilumindados já sabem como o povo vota, não é? Nem vale a pena fazer o referendo…
2. O TL não “constitucionaliza” nada. Que eu saiba, não é uma constituição, é um tratado como todos os que tivémos até agora, como o que está em vigor, que foi fixado pelo de Nice, revisto aquando da adesão dos novos países. Quanto ao tal “neoliberalismo”, o TL não acrescenta nada ao Tratado existente que se possa considerar, mesmo utilizando a sua lógica, de “neoliberal”. Pelo contrário, as poucas cláusulas relativas às políticas da UE que tem -porque o TL é essencialmente um tratado sobre instiuições, não sobre políticas - dizem respeito à obrigatoriedade de ter em consideração os efeitos sociais das medidas a adoptar no âmbito das várias políticas, à protecção dos serviços económicos de interesse geral, à protecção do ambiente, à luta contra as modificações climáticas. Desafio-o a indicar-me uma só linha do TL que acrescente qualquer tendência “neoliberal” aos tratados existentes. Os quais, caso ainda não se tenha dado conta, vão continuar em vigor se o TL não for ratificado.(continua...)
(reposta a José Luiz Sarmento... continuação)
3. Quanto à democracia, a sua afirmação é patética. Diga-me um só exemplo pelo qual o TL agrava a dimensão democrática na UE. Indique um, se for capaz. Isso são declarações ocas que se ouvem amiude entre os anti-europeus e os opinion-makers para quem é chique malhar na Europa - Pacheco Pereira, António Barreto, José Manuel Fernandes & Cia - mas que não têm qualquer sentido.
Pelo contrário, eu digo-lhe , e provo-o: o TL reforça o carácter democrático da UE. Porquê? Eis algumas razões:
- Porque reforça o papel do PE, o qual passará a ter uma palavra decisiva a dizer sobre muita da legislação europeia na qual o Conselho decide até agora sózinho. Chama-se a isso co-decisão, e o TL alarga muito o seu âmbito de aplicação, tornando-a a regra geral. Baseia-se na lógica democrática de que as leis que afectam a vida das pessoas devem ter a aprovação dos representates eleitos dessas pessoas. Como os Governos, quando se reunem em Bruxelas no seio do Conselho, não são (nem podem ser) controlados pelos seus respectivos Parlamentos, o único modo de o fazer é dar voz ao Parlamento Europeu, eleito pelos cidadãos. Se acha que isso é anti-democrático, gostaria de conhecer a sua noção de democracia…
Porque reforça o papel dos Parlamentos nacionais, os quais passarão a estar em posção de controlar todas as propostas legislativas formuladas pela Comissão e passarão a ter uma palavra a dizer sempre que acharem que a legislação em discussão a nível europeu viola o princípio fundamental do exercício das competências nacionais, o princípio da subsidiariedade. E também terão um a palavra decisiva a dizer sobre qualquer passagem da unanimidade à maioria qualificada, ou seja, sobre importantes decisões de carácter institucional. Reforçar o papel dos Parlamentos nacionais também será anti-democrático?
Porque reforça o controlo do PE sobre a Comissão, nomeadamente no que diz respeito à escolha do seu Presidente (que terá de ser eleito pela maioria absoluta dos deputados europeus).
Porque, pela primeira vez, cria um mecanismo de petição legislativa popular, segundo o qual, se 1 milhão de cidadãos de vários Estados membros requerer uma iniciativa legilsativa numa determinada matéria, a Comissão europeia terá de a apresentar ou de justificar devidamente a sua recusa em fazê-lo.
Porque obriga o Conselho de Ministros , enquanto órgão legislativo, a reunir e deliberar em público, e não à porta fechada como sucede agora. Ou seja, no futuro, já não será mais possível aos ministros de qualquer governo virem dizer que se bateram como leões, mas os nossos parceiros foram inflexíveis, etc, foi o oukaze de Bruxelas, etc, quando afinal eles próprios aplaudiram ou solicitaram determinadas medidas e não querem assumi-lo porque sabem que isso lhes provocaria dificuldades com parte da opinião pública do seu país…talvez ache que mais transparência faz mal à democracia…?
(resposta a José Luis Sarmento...conclusão)
Isto para não lhe dizer que o TL dá um papel decisivo ao PE em matéria de aprovação do orçamento europeu ou de acordos internacionais (como os celebrados no âmbito da OMC); reforça a protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos a nível europeu, nomeadamente porque tem, pela primeira vez, um catálogo comum - a Carta dos Direitos Fundamentais - dos direitos de que todos os europeus gozam (sem pôr em causa os catálogos de direitos existentes em cada Estado-membro, que nuns casos serão mais avançados - como a Constituição portuguesa em matéria de direitos económicos e sociais, pelo menos em teoria, noutros casos o serão menos - por isso que o patronato britânico é contra a Carta), ao qual dá força de lei como se se tratasse do próprio tratado, o que significa que os tribunais europeus poderão aplicar e obrigar todas as instituições europeias a respeitar esses direitos..
Além disso, o TL clarifica de maneira substancial as competências da UE, definindo claramente os seus limites; clarifica o papel da UE a nível internancional; reforça a sua coerência e cria condicções de maior estabilidade política das suas instituições (o Presidente do Conselho Europeu, por ex), reforça (embora, admito-o, de maneira talvez ainda não suficiente), o controlo parlamentar sobre a acção da UE no domínio da política externa, etc….
Em suma: pode-se ser a favor ou contra a integração europeia; pode-se notar que ainda há muito por fazer para garantir o aprofundamento da democracia na UE, e é certamente verdade. Mas dizer que o TL é um passo retrógado em matéria de democratização da Europa, é falso. Como espero ter-lhe demonstrado.
Já vai sendo tempo de uma certa esquerda deixar de lutar contra moinhos de vento - ainda que europeus - e concentrar as suas energias onde elas verdadeiramente são necessárias…"
Estou de acordo com a grande parte das coisas que disse... e, que estranho: sou licenciada em Ciências da Educação...
Mas no meio de tudo o que disse há um grande absurdo... Culpar as Ciências da Educação pelas más pedagogias (para além de demonstrar que não fez o seu trabalho de casa quando decidiu escrever este artigo)é quase como culpar a medicina pelas doenças, ou a politica pelos políticos...
Eu não culpo de nada as Ciências da Educação; culpo, sim, o "pensamento único" em Ciências da Educação. Deixo bem explícita no meu artigo a diferença entre as duas coisas, tal como deixo explícito o interesse que o poder político tem em confundi-las.
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