Se esta pergunta me fosse feita por um gestor ou por um economista, eu responder-lhe-ia que estava feita ao contrário: não é a economia que pede contas à cultura, é a cultura que as pede à economia.
No entanto, a pergunta, feita num contexto que não seja estreitamente utilitário, faz sentido e merece resposta. Para que serve a cultura?
Uma resposta possível, implícita no que escrevi acima, é que não serve nem tem que servir para nada. A cultura é um fim em si mesma. A vida que não é examinada não é digna de ser vivida, dizia Sócrates: vivemos para filosofar, não filosofamos para viver. A vida sem cultura, depreende-se, pode ser vida, mas não é vida humana.
Outra resposta é que só a cultura permite a liberdade. Não a garante: apenas a permite. O homem ignorante, o homem primário, erige à sua volta uma prisão feita de convencionalismos, frases feitas, mitos urbanos, slogans e superstições. Não ousa dar um passo fora dela; por vezes nem se apercebe da existência de um mundo exterior. Não sofre com o seu cativeiro.
Mas se tem poder suficiente para obrigar outros a partilhá-lo, esses sofrem. A normalidade, que é a utopia dos medíocres, é a distopia de quem sabe que há mais mundo. Transmutada pelo jargão tecno-burocrático, a normalidade torna-se normalização: nem por isso é menos desumana.
A incultura de que falo não é só a dos iletrados. Pode ser a que resulta da hiper-especialização. O homem ou a mulher que detém um só saber tende a ver nele a explicação cabal do Mundo e do Homem: vemos isto hoje em muitos economistas, especialmente nos neoliberais, mas neste particular os economistas não são - longe disso - caso único.
Ou pode ser a incultura que resulta da mera erudição, que só sabe pensar o que já foi pensado.
O pensador, o cientista, o artista, o professor têm a seu cargo a liberdade de todos. A escola não serve para normalizar as pessoas (como a União Europeia faz à fruta): serve para as equipar com os recursos de pensamento e de percepção que lhes permitirão, se quiserem, fugir à norma. A política educativa não é subsidiária da política económica. É isto que nenhum burocrata da educação ou técnico da OCDE jamais entenderá.
Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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sexta-feira, 31 de julho de 2009
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Férias
Estou de partida para férias. Não levo portátil: quero esquecer-me por uma semana da política portuguesa.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
Declaração de voto
Carlos Santos, n'O Valor das Ideias, faz a sua declaração de voto a favor do PS. O texto merece ser lido pela alto nível de reflexão que revela - que aliás é timbre do autor - pela honestidade intelectual da argumentação e pela articulação do discurso. Só discordo dele em duas matérias: a confiança que ele põe na pessoa de José Sócrates, e outra, crucial, que exporei adiante.
O meu voto vai ser na esquerda e na modernidade. Não vai ser no PS pelo seguinte:
1. O neoliberalismo
Carlos Santos declara-se consciente da «deriva» neoliberal do PS na legislatura que agora termina e declara-se contrário a ela. Eu não creio que se trate apenas duma deriva: foi muito mais do que isso, foi uma política. E, se é certo que as políticas podem mudar, eu não confio no PS, enredado que está na mesma teia de interesses que enreda o PSD e o CDS, como agente desta mudança.
2. O Tratado de Lisboa
O neoliberalismo é mais que uma deriva, é uma política; e, com o Tratado de Lisboa, será mais que uma política: será um regime que condicionará todas as políticas europeias. Pior ainda: será um regime imposto contra a vontade expressa dos eleitorados (se os irlandeses votarem «sim» no próximo referendo, como fazem prever as sondagens, será caso único e não fará esquecer que, em todas as outras ocasiões em que foi permitido aos eleitores pronunciar-se, disseram «não»). A entrada em vigor do Tratado de Lisboa blindará o neoliberalismo contra todas as mudanças presentes ou futuras. Tratar-se-á, portanto, não duma opção política, mas duma opção de regime, de natureza constitucional, tomada sem o consentimento dos povos e sem a maioria qualificada que normalmente se exige em questões de regime - seja no Parlamento Europeu, seja em qualquer um dos Parlamentos nacionais. Ao sonegar aos portugueses o referendo que lhes tinha prometido, José Sócrates fez muito pior do que deixar uma promessa por cumprir: colaborou num golpe de estado à escala europeia, pois outra coisa não se pode chamar à instituição habilidosa de um regime que nem os actuais cidadãos, nem os futuros, poderão facilmente modificar por meios democráticos. José Sócrates tem responsabilidades neste golpe de estado: a sua actuação, tal como a dos seus congéneres europeus, não configura uma mera deriva, nem sequer uma política que os cidadãos possam um dia mudar; configura, sim, um novo regime a que todos os europeus estarão sujeitos, quer queiram, quer não. Restam-nos apenas duas ténues esperanças: que os irlandeses, apesar do que prevêem as sondagens, acabem por votar «não»; ou que David Cameron, vencendo as eleições no Reino Unido, sujeite a questão a referendo. (Nunca me imaginei a torcer por um Partido Conservador, mas é bem verdade que a política dá muitas voltas).
3. A corrupção
Não sou juiz, sou eleitor. Consequentemente, não defino a corrupção juridicamente, mas politicamente: corrupção é tudo aquilo, legal ou ilegal, que favoreça a convertibilidade recíproca entre riqueza e poder. A história do PS no Parlamento durante os últimos quatro anos é confrangedora neste particular. Desde as propostas do Engº Cravinho às do Bloco de Esquerda, tudo o que pudesse ser eficaz no combate à corrupção foi bloqueado pela maioria; e tudo o que partiu do PS foi no sentido oposto. Foram os PIN, foram os ajustes directos, foi o finca-pé no segredo bancário, foi um Código de Processo Penal que parece expressamente concebido para deixar impunes os crimes de colarinho branco... Já se sabe que a corrupção não pode ser eliminada, especialmente na definição que dei dela acima; mas pode ser diminuída, e a impressão que fica é que o PS fez tudo o que podia, não para a diminuir, mas para a favorecer.
4. Os grandes bloqueios da sociedade portuguesa
O diagnóstico está feito há muito tempo e é relativamente consensual: os grandes bloqueios que impedem o nosso desenvolvimento são a corrupção, que discuti acima, e a falta de eficácia da Justiça e do Ensino. Foi esta a situação que José Sócrates encontrou quando chegou ao poder; e agora, no fim da legislatura, deixa tudo pior do que estava.
Em vez de encontrar soluções reais para problemas concretos, este governo optou por soluções virtuais para problemas em larga medida inventados.
O problema principal da nossa justiça é o formalismo e a excessiva preocupação com a correcção técnica em detrimento da justiça substancial. Não interessa o que se prova, mas o que se dá por provado. Quod non est in acta non est in mundo: este princípio é justo, mas levado ao extremo leva às demoras e às burocracias de que todos nos queixamos e, pior que isso, contribui para a percepção generalizada de que a justiça é injusta. O governo, porém, em lugar de atacar o verdadeiro problema, decidiu convocar um pogrom contra os privilégios, reais e supostos, dos juízes. A sociedade não se tornou mais justa, a justiça não passou a fazer-se em tempo útil, mas Sócrates ganhou popularidade: era isto que interessava.
No ensino, os professores andam há décadas a alertar contra os três bloqueios principais do sistema: pedagogia delirante, incivismo endémico e burocracia asfixiante. Tudo isto piorou com Maria de Lurdes Rodrigues: produto do ISEG, criada no caldo de cultura do pedagogismo, a própria palavra "ensino" lhe queima os lábios. Em quatro anos, não moveu uma palha para que nas escolas portuguesas se ensinasse melhor. Não moveu uma palha para que diminuíssem o incivismo, a indisciplina e a violência nas escolas, nem para que os alunos e os encarregados de educação assumissem as suas responsabilidades; pelo contrário, fez aprovar um "Estatuto do Aluno" que só agrava a situação. Não desburocratizou: pelo contrário, transformou a vida dos professores num inferno burocrático que não lhes deixa nem tempo, nem disposição para exercer aquilo qque eles acham (mas a ministra não) que é a sua verdadeira função: ensinar.
Na corrupção, na justiça, no ensino, este governo não fez política, mas sim espectáculo; não trabalhou para o país real, mas para o país virtual dos técnicos de marketing político. Deixou tudo pior do que estava antes. Hostilizou potenciais aliados e criou tantos anticorpos que qualquer solução futura para os problemas da corrupção, da justiça e do ensino vai ser mais difícil, mais demorada e mais incerta do que era há quatro anos.
É possível, é mesmo provável, que tudo o que escrevi atrás esteja enviesado pela minha condição de professor. A quem me lê, peço que desconte o eventual viés e meça o que afirmei pelo conhecimento que tem dos factos. O que o PS fez aos professores, fez também a outros portugueses; e fá-lo-á a muitos mais se lhe dermos oportunidade para tal. O que está fora de causa, para mim, é votar PS. Desejo que o PS tenha mais votos que o PSD, mas não que tenha muitos mais. Desejo que o PS governe, mas não com maioria absoluta, e não com o meu voto. Esse vai para o Bloco de Esquerda.
O meu voto vai ser na esquerda e na modernidade. Não vai ser no PS pelo seguinte:
1. O neoliberalismo
Carlos Santos declara-se consciente da «deriva» neoliberal do PS na legislatura que agora termina e declara-se contrário a ela. Eu não creio que se trate apenas duma deriva: foi muito mais do que isso, foi uma política. E, se é certo que as políticas podem mudar, eu não confio no PS, enredado que está na mesma teia de interesses que enreda o PSD e o CDS, como agente desta mudança.
2. O Tratado de Lisboa
O neoliberalismo é mais que uma deriva, é uma política; e, com o Tratado de Lisboa, será mais que uma política: será um regime que condicionará todas as políticas europeias. Pior ainda: será um regime imposto contra a vontade expressa dos eleitorados (se os irlandeses votarem «sim» no próximo referendo, como fazem prever as sondagens, será caso único e não fará esquecer que, em todas as outras ocasiões em que foi permitido aos eleitores pronunciar-se, disseram «não»). A entrada em vigor do Tratado de Lisboa blindará o neoliberalismo contra todas as mudanças presentes ou futuras. Tratar-se-á, portanto, não duma opção política, mas duma opção de regime, de natureza constitucional, tomada sem o consentimento dos povos e sem a maioria qualificada que normalmente se exige em questões de regime - seja no Parlamento Europeu, seja em qualquer um dos Parlamentos nacionais. Ao sonegar aos portugueses o referendo que lhes tinha prometido, José Sócrates fez muito pior do que deixar uma promessa por cumprir: colaborou num golpe de estado à escala europeia, pois outra coisa não se pode chamar à instituição habilidosa de um regime que nem os actuais cidadãos, nem os futuros, poderão facilmente modificar por meios democráticos. José Sócrates tem responsabilidades neste golpe de estado: a sua actuação, tal como a dos seus congéneres europeus, não configura uma mera deriva, nem sequer uma política que os cidadãos possam um dia mudar; configura, sim, um novo regime a que todos os europeus estarão sujeitos, quer queiram, quer não. Restam-nos apenas duas ténues esperanças: que os irlandeses, apesar do que prevêem as sondagens, acabem por votar «não»; ou que David Cameron, vencendo as eleições no Reino Unido, sujeite a questão a referendo. (Nunca me imaginei a torcer por um Partido Conservador, mas é bem verdade que a política dá muitas voltas).
3. A corrupção
Não sou juiz, sou eleitor. Consequentemente, não defino a corrupção juridicamente, mas politicamente: corrupção é tudo aquilo, legal ou ilegal, que favoreça a convertibilidade recíproca entre riqueza e poder. A história do PS no Parlamento durante os últimos quatro anos é confrangedora neste particular. Desde as propostas do Engº Cravinho às do Bloco de Esquerda, tudo o que pudesse ser eficaz no combate à corrupção foi bloqueado pela maioria; e tudo o que partiu do PS foi no sentido oposto. Foram os PIN, foram os ajustes directos, foi o finca-pé no segredo bancário, foi um Código de Processo Penal que parece expressamente concebido para deixar impunes os crimes de colarinho branco... Já se sabe que a corrupção não pode ser eliminada, especialmente na definição que dei dela acima; mas pode ser diminuída, e a impressão que fica é que o PS fez tudo o que podia, não para a diminuir, mas para a favorecer.
4. Os grandes bloqueios da sociedade portuguesa
O diagnóstico está feito há muito tempo e é relativamente consensual: os grandes bloqueios que impedem o nosso desenvolvimento são a corrupção, que discuti acima, e a falta de eficácia da Justiça e do Ensino. Foi esta a situação que José Sócrates encontrou quando chegou ao poder; e agora, no fim da legislatura, deixa tudo pior do que estava.
Em vez de encontrar soluções reais para problemas concretos, este governo optou por soluções virtuais para problemas em larga medida inventados.
O problema principal da nossa justiça é o formalismo e a excessiva preocupação com a correcção técnica em detrimento da justiça substancial. Não interessa o que se prova, mas o que se dá por provado. Quod non est in acta non est in mundo: este princípio é justo, mas levado ao extremo leva às demoras e às burocracias de que todos nos queixamos e, pior que isso, contribui para a percepção generalizada de que a justiça é injusta. O governo, porém, em lugar de atacar o verdadeiro problema, decidiu convocar um pogrom contra os privilégios, reais e supostos, dos juízes. A sociedade não se tornou mais justa, a justiça não passou a fazer-se em tempo útil, mas Sócrates ganhou popularidade: era isto que interessava.
No ensino, os professores andam há décadas a alertar contra os três bloqueios principais do sistema: pedagogia delirante, incivismo endémico e burocracia asfixiante. Tudo isto piorou com Maria de Lurdes Rodrigues: produto do ISEG, criada no caldo de cultura do pedagogismo, a própria palavra "ensino" lhe queima os lábios. Em quatro anos, não moveu uma palha para que nas escolas portuguesas se ensinasse melhor. Não moveu uma palha para que diminuíssem o incivismo, a indisciplina e a violência nas escolas, nem para que os alunos e os encarregados de educação assumissem as suas responsabilidades; pelo contrário, fez aprovar um "Estatuto do Aluno" que só agrava a situação. Não desburocratizou: pelo contrário, transformou a vida dos professores num inferno burocrático que não lhes deixa nem tempo, nem disposição para exercer aquilo qque eles acham (mas a ministra não) que é a sua verdadeira função: ensinar.
Na corrupção, na justiça, no ensino, este governo não fez política, mas sim espectáculo; não trabalhou para o país real, mas para o país virtual dos técnicos de marketing político. Deixou tudo pior do que estava antes. Hostilizou potenciais aliados e criou tantos anticorpos que qualquer solução futura para os problemas da corrupção, da justiça e do ensino vai ser mais difícil, mais demorada e mais incerta do que era há quatro anos.
É possível, é mesmo provável, que tudo o que escrevi atrás esteja enviesado pela minha condição de professor. A quem me lê, peço que desconte o eventual viés e meça o que afirmei pelo conhecimento que tem dos factos. O que o PS fez aos professores, fez também a outros portugueses; e fá-lo-á a muitos mais se lhe dermos oportunidade para tal. O que está fora de causa, para mim, é votar PS. Desejo que o PS tenha mais votos que o PSD, mas não que tenha muitos mais. Desejo que o PS governe, mas não com maioria absoluta, e não com o meu voto. Esse vai para o Bloco de Esquerda.
sábado, 18 de julho de 2009
Ciências da Educação, Economia e Filosofia das Ciências
As ciências experimentais têm mecanismos e protocolos de validação conhecidos de todos: a apresentação de resultados em publicações idóneas, a avaliação cega por pares, a replicabilidade, a falsificabilidade. As aplicações práticas dos seus resultados são sujeitas a filtros adicionais: a avaliação económica e política da sua viabilidade, a avaliação técnica e deontológica por parte das associações profissionais relevantes. Graças a estes mecanismos, nós, os leigos, se tivermos algumas noções básicas de Filosofia das Ciências, podemos afirmar com um razoável grau de confiança que certas teorias pretensamente científicas, como o criacionismo, a homeopatia ou a negação do aquecimento global, são tretas sem qualquer credibilidade.
A Matemática é um caso singular: é a única ciência exacta que não é experimental. Mas também os seus resultados se sujeitam a uma validação científica rigorosa, graças à qual os leigos podem confiar nos matemáticos.
No caso das Ciências Humanas, a validação é muito mais problemática. Não posso, na minha qualidade de filólogo, pedir aos leigos um grau de confiança nas minhas formulações que seja suficiente para basear nelas práticas ou técnicas consensuais. Isto não me dispensa, porém, como não dispensa o sociólogo, o politólogo, o filósofo ou o historiador, de praticar o rigor possível nem de me sujeitar à validação possível - quando mais não seja (e pode ser mais), a que resulta duma avaliação da coerência interna do discurso, da cogência dos argumentos e da congruência entre as conclusões e os modelos da realidade provenientes das outras áreas do saber. Não posso, enquanto filólogo, dispensar a psico-linguística; esta não pode dispensar a psicologia experimental; e o psicólogo não pode, por sua vez, desprezar os dados da Neuropsicologia.
Nas Ciências Humanas o rigor é possível, mas é muito mais difícil do que nas ciências exactas ou experimentais: os protocolos de validação não estão estabelecidos com a mesma segurança, e por outro lado o investigador vê-se obrigado a trabalhar fora da sua área de competência, aumentando assim a probabilidade de erro.
A tentação sempre presente nas Ciências Humanas é prescindir dos métodos e protocolos da validação científica a favor duma validação político-administrativa; e, se as suas teorias tiverem implicações na estrutura de poder e nas relações de força presentes no corpo político, o poder tenderá a encorajar esta dependência.
Não admira, portanto, que as Ciências da Educação e a Economia se encontrem em circunstâncias semelhantes no que toca a sua relação com o poder político. De entre todas as teorias pedagógicas, os Estados escolhem, sobretudo nos países em que a tradição política é o centralismo napoleónico, as que são politicamente mais favoráveis aos grupos dominantes, conferindo-lhes o estatuto de pensamento único e relegando as alternativas para o plano da inexistência. Deste modo, o combate de muitos professores contra o pensamento único nas Ciências da Educação passa a ser apresentado, na propaganda oficial, como um combate contra as próprias Ciências da Educação.
Esta politização do saber, a sua degradação em ideologia e a violência que é o "pensamento único" são patentes também no campo da Economia. Os economistas "heterodoxos", mesmo quando da craveira de um Paul Krugman (ele próprio refere aqui este facto), vêem dificultado o seu acesso à Comunicação Social ou, se são referidos, são apresentados como anti-economistas ou não-economistas. A Alemanha inclui na sua Constituição normas que favorecem uma escola de pensamento económico em detrimento de outras, procurando assim condicionar as escolhas politico-económicas, não só dos seus dirigentes políticos actuais, como dos futuros. O Tratado de Lisboa consagra e constitucionaliza, contra a vontade até agora expressa dos povos europeus, o neoliberalismo.
As instituições têm, é claro, a sua legitimidade. Mas é bom que se compreenda que nem o Ministério da Educação em Portugal, nem a Comissão Europeia, nem o Bundesbank na Alemanha têm autoridade científica que lhes permita validar certas escolas de pensamento em detrimento de outras, e muito menos blindá-las de modo a comprometer com elas as gerações futuras.
A Matemática é um caso singular: é a única ciência exacta que não é experimental. Mas também os seus resultados se sujeitam a uma validação científica rigorosa, graças à qual os leigos podem confiar nos matemáticos.
No caso das Ciências Humanas, a validação é muito mais problemática. Não posso, na minha qualidade de filólogo, pedir aos leigos um grau de confiança nas minhas formulações que seja suficiente para basear nelas práticas ou técnicas consensuais. Isto não me dispensa, porém, como não dispensa o sociólogo, o politólogo, o filósofo ou o historiador, de praticar o rigor possível nem de me sujeitar à validação possível - quando mais não seja (e pode ser mais), a que resulta duma avaliação da coerência interna do discurso, da cogência dos argumentos e da congruência entre as conclusões e os modelos da realidade provenientes das outras áreas do saber. Não posso, enquanto filólogo, dispensar a psico-linguística; esta não pode dispensar a psicologia experimental; e o psicólogo não pode, por sua vez, desprezar os dados da Neuropsicologia.
Nas Ciências Humanas o rigor é possível, mas é muito mais difícil do que nas ciências exactas ou experimentais: os protocolos de validação não estão estabelecidos com a mesma segurança, e por outro lado o investigador vê-se obrigado a trabalhar fora da sua área de competência, aumentando assim a probabilidade de erro.
A tentação sempre presente nas Ciências Humanas é prescindir dos métodos e protocolos da validação científica a favor duma validação político-administrativa; e, se as suas teorias tiverem implicações na estrutura de poder e nas relações de força presentes no corpo político, o poder tenderá a encorajar esta dependência.
Não admira, portanto, que as Ciências da Educação e a Economia se encontrem em circunstâncias semelhantes no que toca a sua relação com o poder político. De entre todas as teorias pedagógicas, os Estados escolhem, sobretudo nos países em que a tradição política é o centralismo napoleónico, as que são politicamente mais favoráveis aos grupos dominantes, conferindo-lhes o estatuto de pensamento único e relegando as alternativas para o plano da inexistência. Deste modo, o combate de muitos professores contra o pensamento único nas Ciências da Educação passa a ser apresentado, na propaganda oficial, como um combate contra as próprias Ciências da Educação.
Esta politização do saber, a sua degradação em ideologia e a violência que é o "pensamento único" são patentes também no campo da Economia. Os economistas "heterodoxos", mesmo quando da craveira de um Paul Krugman (ele próprio refere aqui este facto), vêem dificultado o seu acesso à Comunicação Social ou, se são referidos, são apresentados como anti-economistas ou não-economistas. A Alemanha inclui na sua Constituição normas que favorecem uma escola de pensamento económico em detrimento de outras, procurando assim condicionar as escolhas politico-económicas, não só dos seus dirigentes políticos actuais, como dos futuros. O Tratado de Lisboa consagra e constitucionaliza, contra a vontade até agora expressa dos povos europeus, o neoliberalismo.
As instituições têm, é claro, a sua legitimidade. Mas é bom que se compreenda que nem o Ministério da Educação em Portugal, nem a Comissão Europeia, nem o Bundesbank na Alemanha têm autoridade científica que lhes permita validar certas escolas de pensamento em detrimento de outras, e muito menos blindá-las de modo a comprometer com elas as gerações futuras.
sexta-feira, 17 de julho de 2009
Teses basilares
Em vez de esmorecerem na luta, muitos professores estão a aproveitar o Verão para reflectir sobre a sua profissão, a filosofia educativa que está na sua base e as implicações desta filosofia na crítica, de que não lhes é legítimo prescindir, às políticas públicas de educação.
Assinalo, a este propósito, dois textos fundamentais: o das "Sete Teses" da APEDE, dividido em em sete mensagens das quais esta é a primeira, e este, de Ramiro Marques, sobre o relatório da OCDE (o qual, sendo elaborado por economistas, carece da autoridade que só têm os professores que estão no terreno ou deram provas no terreno).
Assinalo, a este propósito, dois textos fundamentais: o das "Sete Teses" da APEDE, dividido em em sete mensagens das quais esta é a primeira, e este, de Ramiro Marques, sobre o relatório da OCDE (o qual, sendo elaborado por economistas, carece da autoridade que só têm os professores que estão no terreno ou deram provas no terreno).
quinta-feira, 16 de julho de 2009
Relatório da OCDE
As boas práticas médicas são determinadas por médicos, as jurídicas por juristas, as musicais por músicos e assim sucessivamente; mas as dos professores são determinadas por economistas, sociólogos, psicólogos, gestores e até (ou sobretudo) por motoristas de táxi: por toda a gente excepto por professores. Fará isto algum sentido?
O exemplo mais recente desta tendência é o último relatório da OCDE sobre a política educativa portuguesa. Digamos OCDE por extenso: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. Sublinho: económico.
O governo, ao encomendar este relatório, e a OCDE, ao aceitar fazê-lo, laboram no mesmo erro: o de que a política educativa é uma subsecção da política económica.
Donde se vê que o delírios educativo deste governo começa logo na abordagem; e se vê também que o governo português não está sozinho neste delírio.
O exemplo mais recente desta tendência é o último relatório da OCDE sobre a política educativa portuguesa. Digamos OCDE por extenso: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. Sublinho: económico.
O governo, ao encomendar este relatório, e a OCDE, ao aceitar fazê-lo, laboram no mesmo erro: o de que a política educativa é uma subsecção da política económica.
Donde se vê que o delírios educativo deste governo começa logo na abordagem; e se vê também que o governo português não está sozinho neste delírio.
segunda-feira, 13 de julho de 2009
As Ciências da Educação
Quem está por fora do sistema de ensino tende a partir do princípio que as Ciências da Educação são ciências como as outras, sujeitas a mecanismos rigorosos de validação - avaliação cega por pares idóneos, aplicação dos princípios da replicabilidade e da falsificabilidade, fundamentação, quando possível, em dados experimentais, avaliação de resultados, escrutínio deontológico e técnico por parte dos profissionais encarregados de pôr em prática as suas teorias.
Não admira que partam deste princípio. A quem ocorreria como possível, ou sequer pensável, que um qualquer ramo do saber prescindisse da validação científica a que os outros saberes estão sujeitos a favor duma validação burocrática?
E no entanto é isto que se passa. As pedagogias hegemónicas em Portugal e na generalidade dos países ocidentais dependem, para manterem a sua posição dominante sobre as políticas públicas de educação, da acção do Estado; e esta, como se vê aqui, chega ao ponto de censurar resultados experimentais que sejam contrários à ortodoxia vigente.
Uma Ciência de Estado não é ciência: é ideologia e propaganda. Este facto, que se está a tornar óbvio na Economia, está a tornar-se igualmente óbvio na Pedagogia.
Não admira que partam deste princípio. A quem ocorreria como possível, ou sequer pensável, que um qualquer ramo do saber prescindisse da validação científica a que os outros saberes estão sujeitos a favor duma validação burocrática?
E no entanto é isto que se passa. As pedagogias hegemónicas em Portugal e na generalidade dos países ocidentais dependem, para manterem a sua posição dominante sobre as políticas públicas de educação, da acção do Estado; e esta, como se vê aqui, chega ao ponto de censurar resultados experimentais que sejam contrários à ortodoxia vigente.
Uma Ciência de Estado não é ciência: é ideologia e propaganda. Este facto, que se está a tornar óbvio na Economia, está a tornar-se igualmente óbvio na Pedagogia.
domingo, 12 de julho de 2009
Em Defesa da Escola Pública
Pela sua importância, reproduzo aqui um texto publicado por Inquisidor, com o título que reproduzo, n'O Cartel, em que se mostra que a defesa da escola pública é inseparável da defesa da escola republicana. Espero que o autor que me desculpe ter juntado os dois textos num só e ter efectuado sobre este algum trabalho de edição incidindo sobre a pontuação e algumas «gralhas» que detectei. Tomei ainda a liberdade de destacar algumas frases e expressões.
É à República que se deve a invenção da escola pública. Esta dívida é dupla: a república não só a inventou como instituição, mas também como conceito. Nisso, a escola pública não é apenas um objecto institucional e político; é também um objecto de pensamento.
Se a instituição escolar é tributária da história e das suas determinações contingentes, a escola pública, como objecto filosófico, é tributária de princípios que se desdobram em virtude da sua única necessidade e que articulam uma concepção do político a uma concepção do saber, encontrando o seu ponto de ancoragem na epistemologia cartesiana e na enciclopédia das Luzes.
Se a ligação entre laicidade e escola pública é uma ligação poderosa, é porque aquele princípio intervém, na constituição da escola pública, a um duplo nível: o político-jurídico, mas igualmente a um nível mais fundamental e filosófico. No plano jurídico, a laicidade (como princípio) tornou possível a secularização da escola, operação que a faz existir como instituição pública.
Sabe-se que a história da instituição escolar foi fortemente marcada pela luta contra a Igreja, que no anterior regime (a monarquia), detinha o monopólio do ensino.
Arrancando o ensino às forças que queriam reduzi-lo a uma empresa de edificação das almas, os republicanos instituiram a escola pública, lugar no qual os funcionários são submetidos à obrigação da neutralidade. Mas, a escola pública é muito mais que uma instituição neutra: a laicidade não é apenas um princípio exterior que a protege dos interesses particulares e do proselitismo religioso; é constitutiva da escola ela mesma. É a razão pela qual a escola pública é a única instituição que entende a obrigação da neutralidade aos “usuários”, quer dizer, aos alunos.
Na escola, os alunos são levados a realizar a operação que está no princípio, ele próprio, do regime de laicidade: a constituir-se como átomos desligados das estruturas moleculares nas quais estão presos alguns (ligações familiares ou comunitárias), não para se deligarem definitivamente, mas para os colocar à distância e trabalhar assim para limpar o seu pensamento das opiniões, designadamente preconceitos, que o alienam.
Pela confrontação dos saberes, pela longa sinuosidade das humanidades, o aluno é convocado a dividir-se, divisão sem a qual nenhuma reforma do pensamento é possível.
O espaço escolar, reduzido a esse lugar que é a classe, é, aí, um espaço isomorfo ao da associação política. A classe é uma “classe paradoxal” onde os sujeitos existem, não pelo que os particulariza e os determina socialmente, mas pelo que os distingue, quer dizer, pelo que os singulariza; pelo gosto por tal ou tal matéria, pelo talento em tal disciplina, pela sua paixão por tal obra.
Graças à intelecção dos saberes que a escola transmite, os alunos fazem a experiência concreta da liberdade; compreendem pelas únicas forças do seu entendimento, e nada, então, lhes dita o que pensam. Fazendo isto, os alunos fazem a experiência concreta da igualdade: não são mais indivíduos determinados socialmente, mas sujeitos convocados para o mesmo esforço e as mesmas exigências. Poder-se-ia ir ao ponto de dizer que fazem também, na escola, a experiência da fraternidade, um tanto de camaradagem (ninguém tem necessidade da escola para isso.)
A invenção da escola conforme aos princípios republicanos exigia a construção dum novo paradigma. Entende-se aqui por paradigma um conjunto de propostas ou conceitos simples, ocupando o lugar de fundamento e operando como modelo. O paradigma republicano pode ser enunciado a partir dos três conceitos seguintes:
A escola tem por fim a liberdade· Não há liberdade possível sem instrução· A instrução consiste numa transmissão razoável de saberes.
O primeiro pressupõe que um cidadão livre é um cidadão esclarecido. Tem por implicação a universalidade da escola; se a liberdade é o primeiro fim que deve ser visado pela política, então todos os indivíduos deverão ser instruídos. Daí ressalta a necessidade de criar uma instrução pública; se a instrução é um direito de crença, então a escola deve existir como uma instituição colocada so a égide da esfera da autoridade pública.
O segundo conceito pressupõe que a ignorância é uma fonte de alienação. Se a escola deve instruir, é porque o saber é em si mesmo libertador; liberta da tutela dos que sabem e que poderiam aproveitar-se do poder que lhes confere o saber.
O terceiro pressupõe que todo o saber não faz objecto duma instrução; há saberes que não são da esfera escolar; esta última devendo privilegiar aqueles cuja mestria permite encarar todos os campos do conhecimento.
Destes três conceitos ressalta a seguinte consequência: o lugar natural da escola é a classe, a aula. A instrução supõe um local de abrigo dos barulhos do mundo e no qual os saberes podem ser empregues em virtude dos seus princípios, segundo a ordem racional.
A defesa da escola pública é um dos papéis históricos da esquerda política. Mas a palavra de ordem “defender a escola pública” é, na realidade, um equívoco. Pode revestir um significado mínimo: defender a escola pública significa escola como instituição nacional.
Nesta perspectiva, a questão dos meios torna-se central. De facto, torna-se a única reivindicação da esquerda em matéria da escola: exigir a concessão de fundos públicos para a única escola pública, denunciar a supressão dos postos de ensino, tais são os cavalos de batalha da esquerda no seu combate em favor da escola pública.
Mas a sua defesa pode, também, revestir um significado máximo: defendê-la como conceito. Este equívoco está na origem da famosa “querela da escola” dos anos 80, o que talvez prove que o equívoco não esteja ainda inteiramente sanado.
A “querela da escola” não poderia ser confundida com o que os média têm podido chamar de “a guerra escolar”, que opõe os partidários da escola pública aos da escola privada.
Lembremo-nos que a “querela da escola”, diferentemente da famosa “guerra escolar”, é bastante recente. Produziu no seio da esquerda uma clivagem entre “pedagogistas” e “anti-pedagogistas”. O pedagogismo designa a posição dos que, mantendo a defesa da escola pública como instituição, entendem por bem reformá-la. Na ocorrência, a palavra “reforma” designa uma revolução profunda, já que tudo se resume a uma mudança de paradigma. Se o pedagogismo é polimorfo e sobrepõe, nos factos, propostas que se distinguem pelo seu grau de radicalidade, encontra o seu ponto de ancoragem no recolocar da questão do paradigma republicano, suposto atiçador, acusado de elitista e de favorecer a reprodução social.
Desde os anos 80, as diferentes reformas que o pedagogismo inspirou esgotaram todas as declinências possíveis: do pedagogismo radical, que põe em questão o próprio princípio da separação entre a escola e a sociedade civil, e que exige uma escola “aberta para a vida”, ao pedagogismo benevolente que entende apenas “meter a criança no coração do sistema”, passando pelo pedagogismo hábil que, sob a capa de preservar a escola e o seu objecto, a saber a instrução, torna impossível o exercício (denunciando o princípio do desdobramento) e que substitui aos saberes uma pedagogia desconexa das disciplinas, sem obrigar o pedagogismo extravagante, inventor duma nova linguagem que faz hoje sorrir e métodos felizmente abandonados; as diferentes figuras do pedagogismo são, doravante conhecidas.
Sejam quais forem as propostas anunciadas e nao obstante as negações dos seus representantes mais eminentes, o pedagogismo tem por objectivo a liquidação do paradigma republicano.
A finalidade da escola já não é a liberdade, mas o desenvolvimento dos indivíduos. O seu objecto já não é a transmissão de valores, a aquisição de saber fazer e de saber ser e estar. Trata-se menos de instruir que educar. O seu lugar material não é mais a classe, mas tudo o que existe “fora das paredes”.
O paradigma pedagogista chegou hoje ao termo da sua lógica. A escola é hoje um espaço incluído na sociedade da qual herda todos os males e que dita as suas exigências.
O seu papel já não é instruir, mas responder aos “problemas sociais” e aos pedidos dos seus alunos e seus pais. Assiste-se, consequentemente, a um estranho paradoxo: a escola reformada é uma escola desescolizada, concebida como um mercado ao qual os alunos vêm procurar competências e não mais o lugar da «skole», palavra grega que designa outra forma de lazer que nada tem a ver com jogo ou brincadeira, onde o pensamento só tem que pensar e pode trabalhar para se reformar.
O equívoco é tal que pôde dar lugar a alianças paradoxais. Assim, a direita nacional católoica colocou-se ao lado do anti-pedagogismo e, por estranha ironia da história, encontrou-se a defender o paradigma republicano. Como explicar esta aliança objectiva?
Paralelamente, assiste-se, há alguns anos, a uma outra aliança objectiva, desta vez entre a direita neoliberal e o pedagogismo. A direita neoliberal compreendeu que, para enfraquecer a escola pública e acelerar com esse facto a liberalização do ensino, a estratégia mais hábil e a mais eficaz consistia menos em atacar frontalmente a escola pública que em liquidar, insidiosamente, o paradigma republicano.
Se se pretende defender eficazmente a escola pública, é preciso acabar com este equívoco. A escola pública exige ser defendida como instituição e como conceito. Defender a escola como serviço público não é suficiente. A reivindicação dos meios manter-se-á vã se o adversário persegue a liquidação do paradigma republicano.
Após trinta anos de “querela da escola”, é tempo para clarificar o modelo que é preciso para defender a escola pública e romper com a ideologia pedagogista.
Considerar que a única clivagem existente é a que opõe os reformadores de esquerda aos conservadores de direita, nostálgicos da escola de antanho, leva a cometer um erro grosseiro de análise, já que existe um anti-pedagogismo de esquerda que não é de nostalgia ou de tradição, mas uma fidelidade ao paradigma que os republicanos, em 1911, construiram.
É preciso voltar a dar aos professores todo o protagonismo que não apenas merecem, mas lhes é devido e necessário, para que a escola volte a ser tudo o que já foi e deve voltar a ser.
É à República que se deve a invenção da escola pública. Esta dívida é dupla: a república não só a inventou como instituição, mas também como conceito. Nisso, a escola pública não é apenas um objecto institucional e político; é também um objecto de pensamento.
Se a instituição escolar é tributária da história e das suas determinações contingentes, a escola pública, como objecto filosófico, é tributária de princípios que se desdobram em virtude da sua única necessidade e que articulam uma concepção do político a uma concepção do saber, encontrando o seu ponto de ancoragem na epistemologia cartesiana e na enciclopédia das Luzes.
Se a ligação entre laicidade e escola pública é uma ligação poderosa, é porque aquele princípio intervém, na constituição da escola pública, a um duplo nível: o político-jurídico, mas igualmente a um nível mais fundamental e filosófico. No plano jurídico, a laicidade (como princípio) tornou possível a secularização da escola, operação que a faz existir como instituição pública.
Sabe-se que a história da instituição escolar foi fortemente marcada pela luta contra a Igreja, que no anterior regime (a monarquia), detinha o monopólio do ensino.
Arrancando o ensino às forças que queriam reduzi-lo a uma empresa de edificação das almas, os republicanos instituiram a escola pública, lugar no qual os funcionários são submetidos à obrigação da neutralidade. Mas, a escola pública é muito mais que uma instituição neutra: a laicidade não é apenas um princípio exterior que a protege dos interesses particulares e do proselitismo religioso; é constitutiva da escola ela mesma. É a razão pela qual a escola pública é a única instituição que entende a obrigação da neutralidade aos “usuários”, quer dizer, aos alunos.
Na escola, os alunos são levados a realizar a operação que está no princípio, ele próprio, do regime de laicidade: a constituir-se como átomos desligados das estruturas moleculares nas quais estão presos alguns (ligações familiares ou comunitárias), não para se deligarem definitivamente, mas para os colocar à distância e trabalhar assim para limpar o seu pensamento das opiniões, designadamente preconceitos, que o alienam.
Pela confrontação dos saberes, pela longa sinuosidade das humanidades, o aluno é convocado a dividir-se, divisão sem a qual nenhuma reforma do pensamento é possível.
O espaço escolar, reduzido a esse lugar que é a classe, é, aí, um espaço isomorfo ao da associação política. A classe é uma “classe paradoxal” onde os sujeitos existem, não pelo que os particulariza e os determina socialmente, mas pelo que os distingue, quer dizer, pelo que os singulariza; pelo gosto por tal ou tal matéria, pelo talento em tal disciplina, pela sua paixão por tal obra.
Graças à intelecção dos saberes que a escola transmite, os alunos fazem a experiência concreta da liberdade; compreendem pelas únicas forças do seu entendimento, e nada, então, lhes dita o que pensam. Fazendo isto, os alunos fazem a experiência concreta da igualdade: não são mais indivíduos determinados socialmente, mas sujeitos convocados para o mesmo esforço e as mesmas exigências. Poder-se-ia ir ao ponto de dizer que fazem também, na escola, a experiência da fraternidade, um tanto de camaradagem (ninguém tem necessidade da escola para isso.)
A invenção da escola conforme aos princípios republicanos exigia a construção dum novo paradigma. Entende-se aqui por paradigma um conjunto de propostas ou conceitos simples, ocupando o lugar de fundamento e operando como modelo. O paradigma republicano pode ser enunciado a partir dos três conceitos seguintes:
A escola tem por fim a liberdade· Não há liberdade possível sem instrução· A instrução consiste numa transmissão razoável de saberes.
O primeiro pressupõe que um cidadão livre é um cidadão esclarecido. Tem por implicação a universalidade da escola; se a liberdade é o primeiro fim que deve ser visado pela política, então todos os indivíduos deverão ser instruídos. Daí ressalta a necessidade de criar uma instrução pública; se a instrução é um direito de crença, então a escola deve existir como uma instituição colocada so a égide da esfera da autoridade pública.
O segundo conceito pressupõe que a ignorância é uma fonte de alienação. Se a escola deve instruir, é porque o saber é em si mesmo libertador; liberta da tutela dos que sabem e que poderiam aproveitar-se do poder que lhes confere o saber.
O terceiro pressupõe que todo o saber não faz objecto duma instrução; há saberes que não são da esfera escolar; esta última devendo privilegiar aqueles cuja mestria permite encarar todos os campos do conhecimento.
Destes três conceitos ressalta a seguinte consequência: o lugar natural da escola é a classe, a aula. A instrução supõe um local de abrigo dos barulhos do mundo e no qual os saberes podem ser empregues em virtude dos seus princípios, segundo a ordem racional.
A defesa da escola pública é um dos papéis históricos da esquerda política. Mas a palavra de ordem “defender a escola pública” é, na realidade, um equívoco. Pode revestir um significado mínimo: defender a escola pública significa escola como instituição nacional.
Nesta perspectiva, a questão dos meios torna-se central. De facto, torna-se a única reivindicação da esquerda em matéria da escola: exigir a concessão de fundos públicos para a única escola pública, denunciar a supressão dos postos de ensino, tais são os cavalos de batalha da esquerda no seu combate em favor da escola pública.
Mas a sua defesa pode, também, revestir um significado máximo: defendê-la como conceito. Este equívoco está na origem da famosa “querela da escola” dos anos 80, o que talvez prove que o equívoco não esteja ainda inteiramente sanado.
A “querela da escola” não poderia ser confundida com o que os média têm podido chamar de “a guerra escolar”, que opõe os partidários da escola pública aos da escola privada.
Lembremo-nos que a “querela da escola”, diferentemente da famosa “guerra escolar”, é bastante recente. Produziu no seio da esquerda uma clivagem entre “pedagogistas” e “anti-pedagogistas”. O pedagogismo designa a posição dos que, mantendo a defesa da escola pública como instituição, entendem por bem reformá-la. Na ocorrência, a palavra “reforma” designa uma revolução profunda, já que tudo se resume a uma mudança de paradigma. Se o pedagogismo é polimorfo e sobrepõe, nos factos, propostas que se distinguem pelo seu grau de radicalidade, encontra o seu ponto de ancoragem no recolocar da questão do paradigma republicano, suposto atiçador, acusado de elitista e de favorecer a reprodução social.
Desde os anos 80, as diferentes reformas que o pedagogismo inspirou esgotaram todas as declinências possíveis: do pedagogismo radical, que põe em questão o próprio princípio da separação entre a escola e a sociedade civil, e que exige uma escola “aberta para a vida”, ao pedagogismo benevolente que entende apenas “meter a criança no coração do sistema”, passando pelo pedagogismo hábil que, sob a capa de preservar a escola e o seu objecto, a saber a instrução, torna impossível o exercício (denunciando o princípio do desdobramento) e que substitui aos saberes uma pedagogia desconexa das disciplinas, sem obrigar o pedagogismo extravagante, inventor duma nova linguagem que faz hoje sorrir e métodos felizmente abandonados; as diferentes figuras do pedagogismo são, doravante conhecidas.
Sejam quais forem as propostas anunciadas e nao obstante as negações dos seus representantes mais eminentes, o pedagogismo tem por objectivo a liquidação do paradigma republicano.
A finalidade da escola já não é a liberdade, mas o desenvolvimento dos indivíduos. O seu objecto já não é a transmissão de valores, a aquisição de saber fazer e de saber ser e estar. Trata-se menos de instruir que educar. O seu lugar material não é mais a classe, mas tudo o que existe “fora das paredes”.
O paradigma pedagogista chegou hoje ao termo da sua lógica. A escola é hoje um espaço incluído na sociedade da qual herda todos os males e que dita as suas exigências.
O seu papel já não é instruir, mas responder aos “problemas sociais” e aos pedidos dos seus alunos e seus pais. Assiste-se, consequentemente, a um estranho paradoxo: a escola reformada é uma escola desescolizada, concebida como um mercado ao qual os alunos vêm procurar competências e não mais o lugar da «skole», palavra grega que designa outra forma de lazer que nada tem a ver com jogo ou brincadeira, onde o pensamento só tem que pensar e pode trabalhar para se reformar.
O equívoco é tal que pôde dar lugar a alianças paradoxais. Assim, a direita nacional católoica colocou-se ao lado do anti-pedagogismo e, por estranha ironia da história, encontrou-se a defender o paradigma republicano. Como explicar esta aliança objectiva?
Paralelamente, assiste-se, há alguns anos, a uma outra aliança objectiva, desta vez entre a direita neoliberal e o pedagogismo. A direita neoliberal compreendeu que, para enfraquecer a escola pública e acelerar com esse facto a liberalização do ensino, a estratégia mais hábil e a mais eficaz consistia menos em atacar frontalmente a escola pública que em liquidar, insidiosamente, o paradigma republicano.
Se se pretende defender eficazmente a escola pública, é preciso acabar com este equívoco. A escola pública exige ser defendida como instituição e como conceito. Defender a escola como serviço público não é suficiente. A reivindicação dos meios manter-se-á vã se o adversário persegue a liquidação do paradigma republicano.
Após trinta anos de “querela da escola”, é tempo para clarificar o modelo que é preciso para defender a escola pública e romper com a ideologia pedagogista.
Considerar que a única clivagem existente é a que opõe os reformadores de esquerda aos conservadores de direita, nostálgicos da escola de antanho, leva a cometer um erro grosseiro de análise, já que existe um anti-pedagogismo de esquerda que não é de nostalgia ou de tradição, mas uma fidelidade ao paradigma que os republicanos, em 1911, construiram.
É preciso voltar a dar aos professores todo o protagonismo que não apenas merecem, mas lhes é devido e necessário, para que a escola volte a ser tudo o que já foi e deve voltar a ser.
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quarta-feira, 8 de julho de 2009
Um mistério
Paul Krugman faz aqui uma interrogação que me fez lembrar o tratamento diferenciado que o Público deu ao «manifesto dos 28» e ao «manifesto dos 52». Pergunta Krugman quem decide estas coisas. Em Portugal, sabemos pelo menos um nome: José Manuel Fernandes. Poderia perguntar-se também com base em que critério, e também para isto temos, em Portugal, uma resposta: a visibilidade mediática dos opinantes. É o critério das revistas cor-de-rosa; e foi o próprio director do Público que o disse, em resposta ao provedor do Leitor.
quarta-feira, 1 de julho de 2009
O neoliberalismo contra a propriedade privada
Eu sei, parece um paradoxo. Mas se Manuela Ferreira Leite roubou 193,50€ a cada português por meio duma privatização; e se José Sócrates roubou 255,00€ a cada português por meio duma nacionalização, parece-me que estão os dois a trabalhar para o mesmo. Ver aqui a primeira parte da história. Da segunda, todos se lembram.
What neuroscience can tell us about teaching
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