I. A horrorização do banal
Pergunto-me muitas vezes se o fenómeno da banalização do mal referido por Hannah Arendt não terá como contrapartida, nas sociedades pós-modernas, um fenómeno complementar e inverso de horrorização do banal. Vem isto a propósito da professora que colocou duas crianças pequenas de frente para a parede com fita-cola a tapar-lhes a boca. Este episódio suscitou posições extremas na blogosfera: de um lado considerou-se a acção da professora perfeitamente normal, do outro apareceram reacções como esta, de Daniel Oliveira, exprimindo nada menos do que a sua intolerância «absoluta» perante os factos relatados.
Para um adulto, ou até para um adolescente, uma mordaça é uma violência sem nome. Ou melhor: não propriamente a mordaça, mas sobretudo a ideia da mordaça. Compreende-se bem o horror: poucas formas de violência transportarão consigo uma tão grande carga simbólica; poucas terão tanto poder evocativo, poucas nos transportarão tão facilmente a um mundo, que desejaríamos ver ultrapassado, de cárceres, de tiranias, de torturas. O universo histórico que uma mordaça convoca entra em ressonância com o universo que transportamos dentro de nós, universo este de que são feitos muitos dos nossos pesadelos.
Mas se não for uma mordaça, mas sim um bocado de fita-cola a unir um ao outro, precariamente, os lábios duma criança? Duma criança que não é estúpida e sabe que lhe é fisicamente possível retirá-la quando entender? Duma criança que não transporta consigo, como nós transportamos, o peso duma História feita de atrocidades e crimes? Será para esta criança aquele bocado de fita-cola a violência inimaginável que seria uma mordaça para um adulto, ou meramente um castigo quase inócuo, do qual no dia seguinte não resta nem a recordação?
As crianças são seres estranhos e difíceis de compreender. Muitas coisas que não afectam um adulto podem deixar numa criança feridas que nunca mais fecharão; mas por outro lado são capazes de suportar sem sofrimento nem esforço aparente coisas que quase destruiriam um adulto. Fita-cola na boca, por um período curto? Talvez haja crianças pequenas para quem isto seja um trauma irreparável; mas o mais certo, para quase todas, é que seja um percalço trivial, menos causador de sofrimento do que a outra componente do castigo, que neste caso foi ficarem quietas e viradas para a parede. Assim os adultos não o façam passar disto.
II. A banalização do horror
Mas na vida duma criança, mesmo da mais amada e protegida, não faltam horrores. Verdadeiros horrores, e não emanações vazias da Sociedade do Espectáculo ou construções espúrias dum sentimentalismo pós-moderno. Um desses horrores, infelizmente inevitável, é a escola. Para muitas crianças - não para todas, felizmente - o primeiro dia na escola ou no infantário é o dia em que o mundo desaba à sua volta. Nós, pais, fazemos tudo o que podemos para as preparar, e depois disso tudo o que podemos para mitigar o choque. Também a professora ou educadora se esforçará nesse sentido. E quando as coisas correm bem nunca sabemos se isso de deveu ao nosso esforço, ou ao da professora, ou simplesmente à sorte. Sabemos apenas, confusamente, que traímos a confiança depositada em nós.
E depois há o recreio, as outras crianças que são, tais como a nossa, pequenas feras e cometem por dia mais crueldades umas contra as outras do que o mais sádico professor poderia cometer numa semana. Tentamos não pensar demasiadamente nestas coisas, porque se o fizéssemos daríamos em doidos, ou então mandaríamos para as urtigas dez milénios de civilização e deixaríamos as nossas crianças crescer analfabetas, nuas, selvagens e felizes.
Mas não pode ser. E porque não pode ser, evitamos pensar demasiado no assunto. E assim começamos a banalizar o horror. Não temos culpa: é inevitável. É o preço que nós e os nossos filhos pagamos por esse luxo que é ter uma civilização.
Mas nem todos os horrores que as nossas crianças sofrem são inevitáveis como este. Alguns resultam simplesmente da estupidez e da maldade humana. Em Portugal temos um governo que se propõe manter os nossos filhos na escola 55 horas - leram bem, 55 horas - por semana. Crianças que têm direito a tempo para brincar, tempo para fazerem o que querem, tempo para estar com a família. Não é isto um horror? Porém, não vejo multidões sedentas de sangue a invadir os ministérios, a enfiar em chuços as cabeças do primeiro-ministro, da ministra da educação, e já agora também a do ministro do trabalho que permite que sejamos quase todos obrigados a trabalhar demais. Também desta maneira banalizamos o horror, e desta vez com um pouco mais de culpa.
Ou podemos ir no autocarro ou no metro e ouvir uma mãe dizer a um filho pequeno que já não gosta dele, que o vai deixar ficar e arranjar outro menino. Quem de nós nunca ouviu uma conversa como esta? É banal, é do dia-a-dia. Mal reparamos. E no entanto é talvez o maior dos horrores, porque a criança acredita. E sabe que não pode sobreviver sozinha. E sente-se condenada à morte. A mim incomoda-me mais ver uma criança passar por isto do que saber que mil crianças passaram uns minutos viradas para a parede com fita-cola na boca. Mas cada um tem a sua sensibilidade, e se eu tenho direito à minha, o Daniel Oliveira e todos os que se horrorizaram com o caso da fita-cola têm direito à deles.
Mas se a nossa sensibilidade é tão exigente que nos obriga a empolar o banal, então é melhor termos o cuidado de não banalizar o que é horrível.
Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
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4 comentários:
Excelente. Muito bem.
Hoje em dia dizer-se mais que "isso é feio" é violência susceptível (como dizem os 'psicólogos') de deixar ficar as crianças "traumatizadas".
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Caro JLS,
também sou professor, subscrevo muitas das suas opiniões expressas neste blog.
Desta vez a solidariedade profissional toldou-lhe o raciocinio.
Acontece aos melhores.
Caro on,
A solidariedade profissional pode ter-me toldado o raciocínio, mas pelos vistos, à luz do que soube hoje, não me toldou a intuição. Logo que li a notícia desconfiei que a história estava mal contada e que o que verdadeiramente acontecera tinha sido quase inócuo, e não a monstruosidade relatada.
Afinal errei no «quase». A coisa foi inócua de todo. E aposto que nos próximos meses os media vão ser inundados de notícias de maus tratos praticados por professores sobre alunos. Algumas, infelizmente, vão ser verdadeiras. A maior parte, como esta, vai ser distorcida.
Ainda bem que foi inócuo, e nada me espanta esta nova campanha contra os professores. Mas essa é só mais um razão para ser prudente e criteroso nos comentários.
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