I.
Cinco mil euros. É quanto o governo diz que se gasta por aluno e por ano no ensino básico e secundário. E eu acredito, embora dentro das escolas não seja fácil entender para onde vai tanto dinheiro.
Se cada professor ganhar um salário médio de 21.000,00 € por ano e o rácio professor aluno for de 1/14, sobram 3.500,00 € por aluno. Se cada turma tiver vinte alunos, sobram, descontados os salários dos professores, 70.000,00 € por turma. Se em cada escola o rácio turmas/salas de aula for de 3/2, sobram 105.000,00 € por ano por sala de aula, ou 8.750,00 € por mês.
Oito mil setecentos e cinquenta euros por mês para cada sala de aula é muito dinheiro. Chegaria para que todas estivessem sempre em perfeito estado de conservação, confortáveis, aconchegadas, aquecidas no Inverno, bem iluminadas, equipadas com tudo o necessário e até com algum luxo. Mesmo que metade desse dinheiro fosse para pagar a biblioteca da escola, os equipamentos desportivos, a manutenção de corredores, gabinetes e espaços exteriores, os serviços administrativos da escola e o aparelho do sistema educativo, ainda assim podíamos ter salas de aula capazes de rivalizar com as de qualquer país europeu.
II.
Então porque é que as não temos?
A resposta a esta pergunta encontrei-a há dias, quando tive de ir à Direcção Regional de Educação do Norte. Este organismo está instalado num edifício que já foi uma escola e que depois disso foi totalmente remodelado. Agora tem aquecimento central, ar condicionado, anteparas de vidro e aço inoxidável contra as correntes de ar, revestimentos de primeira qualidade no chão e nas paredes - tudo o que possa contribuir para tornar agradável a permanência dos que lá trabalham.
E são muitos, os que lá trabalham. Como são muitos os que trabalham nas outras Direcções Regionais de Educação, para não falar dos serviços centrais do Ministério, com a sua profusão de Direcções-Gerais, gabinetes, secretarias, dependências diversas. Tantos, que a maior parte do orçamento do Ministério é gasta, diz a Ministra, em salários - salários de burocratas, entenda-se, não de professores. Tantos, que o que chega às salas de aula não é, como devia ser, a fatia maior, mas sim algumas exíguas sobras outorgadas de má vontade.
Esta é uma das razões, e a mais concreta de todas, que me levam a dizer que qualquer melhoria significativa na qualidade do ensino em Portugal tem que passar necessariamente pela extinção ou redução drástica do Ministério da Educação. Mas será que isto alguma vez poderá acontecer?
Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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terça-feira, 15 de abril de 2008
quarta-feira, 9 de abril de 2008
Esquerda tontinha, direita cegueta
I.
É frequente que se atribuam os males do ensino à influência duma esquerda tontinha, herdeira de Rousseau, ingénua na sua concepção do ser humano, avessa à disciplina e ao esforço, relativista no plano ético e propensa a dissociar a noção de autoridade da noção de poder. Esta esquerda tontinha encara os jovens como naturalmente "bons", o que dispensa qualquer espécie de coacção no processo educativo, e naturalmente "criativos", o que lhes permite construir os seus próprios "saberes" sem necessidade, por parte do professor, de qualquer "dirigismo" na transmissão de um património intelectual ou cultural. Não reconhece qualquer diferenciação entre um aluno e outro em termos de inteligência ou talento, de modo que as discrepâncias em matéria de desempenho só se podem dever às diferentes formas de segregação social, à falta de empenho do professor ou à deficiente aplicação das técnicas pedagógicas promotoras da igualdade. Do mesmo modo que não há hierarquização de capacidades entre os alunos, também não há hierarquização entre aluno e professor, uma vez que todos os "saberes" se equivalem e nenhum deles confere autoridade especial ao seu detentor. Deste modo, não podendo o professor construir a sua autoridade sobre o seu estatuto de "mais sabedor", nem podendo baseá-la num poder de coacção delegado pelo Estado, resta-lhe apoiá-la no seu próprio carisma, natural ou adquirido - o qual, sendo decerto uma perna indispensável do tripé, tem a enorme desvantagem de ser apenas uma.
II.
Atribuir responsabilidades à esquerda tontinha é assim perfeitamente justificado, mas incide apenas sobre uma das faces da moeda. Igual responsabilidade tem uma certa direita que mergulha as suas raízes no ancestral anti-intelectualismo português e hoje vê na educação e no ensino um mero instrumento de formação profissional. Perante uma qualquer área do conhecimento a pergunta quase instintiva desta direita é "para que serve"; e não lhe ocorre que a cultura, o conhecimento, o pensamento crítico podem ser fins em si mesmos; nem que, a servirem para alguma finalidade, esta finalidade pode ser não só a economia e o trabalho, mas qualquer outra dimensão da vida. Esta direita vê na escola uma fábrica em que entram crianças e de onde saem recursos humanos - como se fosse possível prever, à data em que uma criança de seis anos entra para a escola, as competências profissionais específicas de que vai precisar passados quinze ou vinte anos. A décadas de distância, a capacidade de compor um soneto ou de ler a Ilíada no original pode ter consequências económicas mais vastas e mais ramificadas do que o domínio duma qualquer técnica profissional de banda estreita que por essa altura já estará mais do que desactualizada.
A esquerda tontinha e a direita de vistas curtas e excessivamente pragmática que determinam as políticas educativas têm em comum o horror ao passado, que consideram inútil e irrelevante. Só lhes interessa o futuro, que uns e outros têm a ilusão de conhecer e do qual se consideram donos. Nem uns nem outros compreendem a absoluta impossibilidade de ensinar a uma criança o mundo em que ela há-de viver: o mais que podemos fazer, se formos realistas, dedicados e competentes, é ensinar-lhe o mundo tal como é hoje e tal como o passado o moldou. A mudança do presente para o futuro não pode ser ensinada: o que nos prepara para ela é o conhecimento crítico das mudanças que deram origem ao presente. Tão utópica é a esquerda tontinha como a direita pragmática. Uma situa-se para lá do humano, no reino da perfeição; outra para cá do humano, no reino da técnica; e deste modo ambas recusam uma educação centrada no homem e à medida do homem como a que preconizava Wilhelm von Humboldt.
A coligação esquizofrénica entre a esquerda tontinha e a direita cegueta é desconfortável para ambas as partes, mas não deixa por isso de ser uma coligação que bem ou mal vai funcionando. Opera na tecno-burocracia educativa, opera nas escolas, opera nos currículos e nos programas. Opera na profusão legislativa, onde os preâmbulos tendem a ser de esquerda e os articulados a ser de direita; e não sei se não operará também na idiossincrasia da actual ministra da educação. A metáfora de Dr. Jekyll e Mr. Hyde só não se aplica aqui porque, enquanto a personagem do romance tinha um lado nobre, as personalidades desavindas da ministra são ambas perniciosas e vis.
É frequente que se atribuam os males do ensino à influência duma esquerda tontinha, herdeira de Rousseau, ingénua na sua concepção do ser humano, avessa à disciplina e ao esforço, relativista no plano ético e propensa a dissociar a noção de autoridade da noção de poder. Esta esquerda tontinha encara os jovens como naturalmente "bons", o que dispensa qualquer espécie de coacção no processo educativo, e naturalmente "criativos", o que lhes permite construir os seus próprios "saberes" sem necessidade, por parte do professor, de qualquer "dirigismo" na transmissão de um património intelectual ou cultural. Não reconhece qualquer diferenciação entre um aluno e outro em termos de inteligência ou talento, de modo que as discrepâncias em matéria de desempenho só se podem dever às diferentes formas de segregação social, à falta de empenho do professor ou à deficiente aplicação das técnicas pedagógicas promotoras da igualdade. Do mesmo modo que não há hierarquização de capacidades entre os alunos, também não há hierarquização entre aluno e professor, uma vez que todos os "saberes" se equivalem e nenhum deles confere autoridade especial ao seu detentor. Deste modo, não podendo o professor construir a sua autoridade sobre o seu estatuto de "mais sabedor", nem podendo baseá-la num poder de coacção delegado pelo Estado, resta-lhe apoiá-la no seu próprio carisma, natural ou adquirido - o qual, sendo decerto uma perna indispensável do tripé, tem a enorme desvantagem de ser apenas uma.
II.
Atribuir responsabilidades à esquerda tontinha é assim perfeitamente justificado, mas incide apenas sobre uma das faces da moeda. Igual responsabilidade tem uma certa direita que mergulha as suas raízes no ancestral anti-intelectualismo português e hoje vê na educação e no ensino um mero instrumento de formação profissional. Perante uma qualquer área do conhecimento a pergunta quase instintiva desta direita é "para que serve"; e não lhe ocorre que a cultura, o conhecimento, o pensamento crítico podem ser fins em si mesmos; nem que, a servirem para alguma finalidade, esta finalidade pode ser não só a economia e o trabalho, mas qualquer outra dimensão da vida. Esta direita vê na escola uma fábrica em que entram crianças e de onde saem recursos humanos - como se fosse possível prever, à data em que uma criança de seis anos entra para a escola, as competências profissionais específicas de que vai precisar passados quinze ou vinte anos. A décadas de distância, a capacidade de compor um soneto ou de ler a Ilíada no original pode ter consequências económicas mais vastas e mais ramificadas do que o domínio duma qualquer técnica profissional de banda estreita que por essa altura já estará mais do que desactualizada.
A esquerda tontinha e a direita de vistas curtas e excessivamente pragmática que determinam as políticas educativas têm em comum o horror ao passado, que consideram inútil e irrelevante. Só lhes interessa o futuro, que uns e outros têm a ilusão de conhecer e do qual se consideram donos. Nem uns nem outros compreendem a absoluta impossibilidade de ensinar a uma criança o mundo em que ela há-de viver: o mais que podemos fazer, se formos realistas, dedicados e competentes, é ensinar-lhe o mundo tal como é hoje e tal como o passado o moldou. A mudança do presente para o futuro não pode ser ensinada: o que nos prepara para ela é o conhecimento crítico das mudanças que deram origem ao presente. Tão utópica é a esquerda tontinha como a direita pragmática. Uma situa-se para lá do humano, no reino da perfeição; outra para cá do humano, no reino da técnica; e deste modo ambas recusam uma educação centrada no homem e à medida do homem como a que preconizava Wilhelm von Humboldt.
A coligação esquizofrénica entre a esquerda tontinha e a direita cegueta é desconfortável para ambas as partes, mas não deixa por isso de ser uma coligação que bem ou mal vai funcionando. Opera na tecno-burocracia educativa, opera nas escolas, opera nos currículos e nos programas. Opera na profusão legislativa, onde os preâmbulos tendem a ser de esquerda e os articulados a ser de direita; e não sei se não operará também na idiossincrasia da actual ministra da educação. A metáfora de Dr. Jekyll e Mr. Hyde só não se aplica aqui porque, enquanto a personagem do romance tinha um lado nobre, as personalidades desavindas da ministra são ambas perniciosas e vis.
domingo, 6 de abril de 2008
Proposta de luta
Com greves às sextas-feiras não vamos lá. Nem com greves só de um dia.
Mas nada impede um sindicato de entregar um pré-aviso de greve por um período muito longo - de 1 de Maio a 30 de Setembro, por exemplo - e organizar os professores para durante esse tempo darem as suas aulas, fazerem a avaliação dos alunos, e mais nada: nem reuniões, nem tarefas de direcção de turma, nem visitas de estudo, nem substituições, nem actividades extra-curriculares, nem nada. Mesmo as reuniões de Conselho de Turma não se realizariam: em vez disso cada professor entregaria as suas propostas de avaliação no CE, ou introduzi-las-ia no sistema informático, e a administração de cada escola que fizesse o que entendesse com elas.
Os professores dariam aulas, estudariam e avaliariam os alunos; para tudo o resto estariam em greve. Será que isto poderia funcionar? Imaginem os títulos nos jornais: PROFESSORES EM GREVE DÃO AULAS. E imaginem o que é que acontecia à «avaliação do desempenho», sobretudo se esta greve se prolongasse por todo o próximo ano lectivo...
Mas nada impede um sindicato de entregar um pré-aviso de greve por um período muito longo - de 1 de Maio a 30 de Setembro, por exemplo - e organizar os professores para durante esse tempo darem as suas aulas, fazerem a avaliação dos alunos, e mais nada: nem reuniões, nem tarefas de direcção de turma, nem visitas de estudo, nem substituições, nem actividades extra-curriculares, nem nada. Mesmo as reuniões de Conselho de Turma não se realizariam: em vez disso cada professor entregaria as suas propostas de avaliação no CE, ou introduzi-las-ia no sistema informático, e a administração de cada escola que fizesse o que entendesse com elas.
Os professores dariam aulas, estudariam e avaliariam os alunos; para tudo o resto estariam em greve. Será que isto poderia funcionar? Imaginem os títulos nos jornais: PROFESSORES EM GREVE DÃO AULAS. E imaginem o que é que acontecia à «avaliação do desempenho», sobretudo se esta greve se prolongasse por todo o próximo ano lectivo...
sexta-feira, 4 de abril de 2008
Ainda a escola do Salgueiral
Num dia chega-nos a notícia de que uma professora tinha sido processada por ter infligido maus tratos aos seus alunos, pondo-lhes fita-cola na boca. No dia seguinte surgem novos factos que nos dão a saber que o que se tinha passado fora afinal perfeitamente inócuo.
Eu desconfiei logo no primeiro dia que a história estaria mal contada. Não porque tivesse informações que mais ninguém tinha, mas só por intuição. Esta intuição foi desenvolvida com o tempo e sustenta-se nas minhas circunstâncias particulares. Desconfiei porque sou macaco velho; porque sei bem como as coisas tendem a passar-se nas salas de aula; porque sei razoavelmente como as coisas se passam na cabeça duma criança; porque sei como é fácil, na Sociedade do Espectáculo, fazer com que uma coisa pareça o seu contrário.
Mas desconfiei sobretudo porque estou consciente de que o nosso sistema educativo está neste preciso momento em plena guerra civil. E como diz o aforismo, em qualquer guerra a primeira baixa é sempre a verdade.
Prevejo que nos próximos meses os media vão ser inundados por notícias de maus tratos de professores a alunos. Na sua maior parte essas notícias serão, tal como esta, distorções malévolas dos factos. Mas algumas corresponderão, infelizmente, à verdade. Os professores têm que estar preparados para batalhar nos media e nos tribunais quando forem alvo de calúnias (e vão ser); mas a nossa melhor e mais efectiva defesa nesta fase da luta vai ter que ser o cumprimento escrupuloso duma rigorosa deontologia profissional.
Eu desconfiei logo no primeiro dia que a história estaria mal contada. Não porque tivesse informações que mais ninguém tinha, mas só por intuição. Esta intuição foi desenvolvida com o tempo e sustenta-se nas minhas circunstâncias particulares. Desconfiei porque sou macaco velho; porque sei bem como as coisas tendem a passar-se nas salas de aula; porque sei razoavelmente como as coisas se passam na cabeça duma criança; porque sei como é fácil, na Sociedade do Espectáculo, fazer com que uma coisa pareça o seu contrário.
Mas desconfiei sobretudo porque estou consciente de que o nosso sistema educativo está neste preciso momento em plena guerra civil. E como diz o aforismo, em qualquer guerra a primeira baixa é sempre a verdade.
Prevejo que nos próximos meses os media vão ser inundados por notícias de maus tratos de professores a alunos. Na sua maior parte essas notícias serão, tal como esta, distorções malévolas dos factos. Mas algumas corresponderão, infelizmente, à verdade. Os professores têm que estar preparados para batalhar nos media e nos tribunais quando forem alvo de calúnias (e vão ser); mas a nossa melhor e mais efectiva defesa nesta fase da luta vai ter que ser o cumprimento escrupuloso duma rigorosa deontologia profissional.
quinta-feira, 3 de abril de 2008
Afinal o que se passou foi isto
Numa turma estava uma professora e várias crianças a trabalhar com papel e fita-cola. As crianças estavam irrequietas, não se calavam, e a professora, na brincadeira, ameaçou-os que lhes punha fita-cola na boca. Um dos miúdos respondeu: "Ponha, professora, ponha!" A professora pôs, perante o riso de todos, incluindo o próprio. Ao verem aquilo as outras crianças também quiseram, e a professora fez-lhes a vontade. Depois achou que já chegava de brincadeira, tirou-lhes a fita-cola e a aula prosseguiu em boa paz e perfeita normalidade.
Em suma: aquilo que eu já suspeitava ser quase inócuo revelou-se afinal perfeitamente inócuo.
Tudo teria ficado por aqui se entre os pais das crianças não estivesse o famoso "Bruxo de Fafe", que viu neste episódio uma oportunidade de se promover. E vai de apresentar uma queixa por maus tratos contra a professora. E imediatamente - até parece que por bruxaria - se transformou uma banalidade num horror.
Moral da história: ninguém diga que não se deixa enganar por bruxos. Nem mesmo gente tão culta e sofisticada como o Daniel Oliveira.
Em suma: aquilo que eu já suspeitava ser quase inócuo revelou-se afinal perfeitamente inócuo.
Tudo teria ficado por aqui se entre os pais das crianças não estivesse o famoso "Bruxo de Fafe", que viu neste episódio uma oportunidade de se promover. E vai de apresentar uma queixa por maus tratos contra a professora. E imediatamente - até parece que por bruxaria - se transformou uma banalidade num horror.
Moral da história: ninguém diga que não se deixa enganar por bruxos. Nem mesmo gente tão culta e sofisticada como o Daniel Oliveira.
quarta-feira, 2 de abril de 2008
O horror, o horror!
I. A horrorização do banal
Pergunto-me muitas vezes se o fenómeno da banalização do mal referido por Hannah Arendt não terá como contrapartida, nas sociedades pós-modernas, um fenómeno complementar e inverso de horrorização do banal. Vem isto a propósito da professora que colocou duas crianças pequenas de frente para a parede com fita-cola a tapar-lhes a boca. Este episódio suscitou posições extremas na blogosfera: de um lado considerou-se a acção da professora perfeitamente normal, do outro apareceram reacções como esta, de Daniel Oliveira, exprimindo nada menos do que a sua intolerância «absoluta» perante os factos relatados.
Para um adulto, ou até para um adolescente, uma mordaça é uma violência sem nome. Ou melhor: não propriamente a mordaça, mas sobretudo a ideia da mordaça. Compreende-se bem o horror: poucas formas de violência transportarão consigo uma tão grande carga simbólica; poucas terão tanto poder evocativo, poucas nos transportarão tão facilmente a um mundo, que desejaríamos ver ultrapassado, de cárceres, de tiranias, de torturas. O universo histórico que uma mordaça convoca entra em ressonância com o universo que transportamos dentro de nós, universo este de que são feitos muitos dos nossos pesadelos.
Mas se não for uma mordaça, mas sim um bocado de fita-cola a unir um ao outro, precariamente, os lábios duma criança? Duma criança que não é estúpida e sabe que lhe é fisicamente possível retirá-la quando entender? Duma criança que não transporta consigo, como nós transportamos, o peso duma História feita de atrocidades e crimes? Será para esta criança aquele bocado de fita-cola a violência inimaginável que seria uma mordaça para um adulto, ou meramente um castigo quase inócuo, do qual no dia seguinte não resta nem a recordação?
As crianças são seres estranhos e difíceis de compreender. Muitas coisas que não afectam um adulto podem deixar numa criança feridas que nunca mais fecharão; mas por outro lado são capazes de suportar sem sofrimento nem esforço aparente coisas que quase destruiriam um adulto. Fita-cola na boca, por um período curto? Talvez haja crianças pequenas para quem isto seja um trauma irreparável; mas o mais certo, para quase todas, é que seja um percalço trivial, menos causador de sofrimento do que a outra componente do castigo, que neste caso foi ficarem quietas e viradas para a parede. Assim os adultos não o façam passar disto.
II. A banalização do horror
Mas na vida duma criança, mesmo da mais amada e protegida, não faltam horrores. Verdadeiros horrores, e não emanações vazias da Sociedade do Espectáculo ou construções espúrias dum sentimentalismo pós-moderno. Um desses horrores, infelizmente inevitável, é a escola. Para muitas crianças - não para todas, felizmente - o primeiro dia na escola ou no infantário é o dia em que o mundo desaba à sua volta. Nós, pais, fazemos tudo o que podemos para as preparar, e depois disso tudo o que podemos para mitigar o choque. Também a professora ou educadora se esforçará nesse sentido. E quando as coisas correm bem nunca sabemos se isso de deveu ao nosso esforço, ou ao da professora, ou simplesmente à sorte. Sabemos apenas, confusamente, que traímos a confiança depositada em nós.
E depois há o recreio, as outras crianças que são, tais como a nossa, pequenas feras e cometem por dia mais crueldades umas contra as outras do que o mais sádico professor poderia cometer numa semana. Tentamos não pensar demasiadamente nestas coisas, porque se o fizéssemos daríamos em doidos, ou então mandaríamos para as urtigas dez milénios de civilização e deixaríamos as nossas crianças crescer analfabetas, nuas, selvagens e felizes.
Mas não pode ser. E porque não pode ser, evitamos pensar demasiado no assunto. E assim começamos a banalizar o horror. Não temos culpa: é inevitável. É o preço que nós e os nossos filhos pagamos por esse luxo que é ter uma civilização.
Mas nem todos os horrores que as nossas crianças sofrem são inevitáveis como este. Alguns resultam simplesmente da estupidez e da maldade humana. Em Portugal temos um governo que se propõe manter os nossos filhos na escola 55 horas - leram bem, 55 horas - por semana. Crianças que têm direito a tempo para brincar, tempo para fazerem o que querem, tempo para estar com a família. Não é isto um horror? Porém, não vejo multidões sedentas de sangue a invadir os ministérios, a enfiar em chuços as cabeças do primeiro-ministro, da ministra da educação, e já agora também a do ministro do trabalho que permite que sejamos quase todos obrigados a trabalhar demais. Também desta maneira banalizamos o horror, e desta vez com um pouco mais de culpa.
Ou podemos ir no autocarro ou no metro e ouvir uma mãe dizer a um filho pequeno que já não gosta dele, que o vai deixar ficar e arranjar outro menino. Quem de nós nunca ouviu uma conversa como esta? É banal, é do dia-a-dia. Mal reparamos. E no entanto é talvez o maior dos horrores, porque a criança acredita. E sabe que não pode sobreviver sozinha. E sente-se condenada à morte. A mim incomoda-me mais ver uma criança passar por isto do que saber que mil crianças passaram uns minutos viradas para a parede com fita-cola na boca. Mas cada um tem a sua sensibilidade, e se eu tenho direito à minha, o Daniel Oliveira e todos os que se horrorizaram com o caso da fita-cola têm direito à deles.
Mas se a nossa sensibilidade é tão exigente que nos obriga a empolar o banal, então é melhor termos o cuidado de não banalizar o que é horrível.
Pergunto-me muitas vezes se o fenómeno da banalização do mal referido por Hannah Arendt não terá como contrapartida, nas sociedades pós-modernas, um fenómeno complementar e inverso de horrorização do banal. Vem isto a propósito da professora que colocou duas crianças pequenas de frente para a parede com fita-cola a tapar-lhes a boca. Este episódio suscitou posições extremas na blogosfera: de um lado considerou-se a acção da professora perfeitamente normal, do outro apareceram reacções como esta, de Daniel Oliveira, exprimindo nada menos do que a sua intolerância «absoluta» perante os factos relatados.
Para um adulto, ou até para um adolescente, uma mordaça é uma violência sem nome. Ou melhor: não propriamente a mordaça, mas sobretudo a ideia da mordaça. Compreende-se bem o horror: poucas formas de violência transportarão consigo uma tão grande carga simbólica; poucas terão tanto poder evocativo, poucas nos transportarão tão facilmente a um mundo, que desejaríamos ver ultrapassado, de cárceres, de tiranias, de torturas. O universo histórico que uma mordaça convoca entra em ressonância com o universo que transportamos dentro de nós, universo este de que são feitos muitos dos nossos pesadelos.
Mas se não for uma mordaça, mas sim um bocado de fita-cola a unir um ao outro, precariamente, os lábios duma criança? Duma criança que não é estúpida e sabe que lhe é fisicamente possível retirá-la quando entender? Duma criança que não transporta consigo, como nós transportamos, o peso duma História feita de atrocidades e crimes? Será para esta criança aquele bocado de fita-cola a violência inimaginável que seria uma mordaça para um adulto, ou meramente um castigo quase inócuo, do qual no dia seguinte não resta nem a recordação?
As crianças são seres estranhos e difíceis de compreender. Muitas coisas que não afectam um adulto podem deixar numa criança feridas que nunca mais fecharão; mas por outro lado são capazes de suportar sem sofrimento nem esforço aparente coisas que quase destruiriam um adulto. Fita-cola na boca, por um período curto? Talvez haja crianças pequenas para quem isto seja um trauma irreparável; mas o mais certo, para quase todas, é que seja um percalço trivial, menos causador de sofrimento do que a outra componente do castigo, que neste caso foi ficarem quietas e viradas para a parede. Assim os adultos não o façam passar disto.
II. A banalização do horror
Mas na vida duma criança, mesmo da mais amada e protegida, não faltam horrores. Verdadeiros horrores, e não emanações vazias da Sociedade do Espectáculo ou construções espúrias dum sentimentalismo pós-moderno. Um desses horrores, infelizmente inevitável, é a escola. Para muitas crianças - não para todas, felizmente - o primeiro dia na escola ou no infantário é o dia em que o mundo desaba à sua volta. Nós, pais, fazemos tudo o que podemos para as preparar, e depois disso tudo o que podemos para mitigar o choque. Também a professora ou educadora se esforçará nesse sentido. E quando as coisas correm bem nunca sabemos se isso de deveu ao nosso esforço, ou ao da professora, ou simplesmente à sorte. Sabemos apenas, confusamente, que traímos a confiança depositada em nós.
E depois há o recreio, as outras crianças que são, tais como a nossa, pequenas feras e cometem por dia mais crueldades umas contra as outras do que o mais sádico professor poderia cometer numa semana. Tentamos não pensar demasiadamente nestas coisas, porque se o fizéssemos daríamos em doidos, ou então mandaríamos para as urtigas dez milénios de civilização e deixaríamos as nossas crianças crescer analfabetas, nuas, selvagens e felizes.
Mas não pode ser. E porque não pode ser, evitamos pensar demasiado no assunto. E assim começamos a banalizar o horror. Não temos culpa: é inevitável. É o preço que nós e os nossos filhos pagamos por esse luxo que é ter uma civilização.
Mas nem todos os horrores que as nossas crianças sofrem são inevitáveis como este. Alguns resultam simplesmente da estupidez e da maldade humana. Em Portugal temos um governo que se propõe manter os nossos filhos na escola 55 horas - leram bem, 55 horas - por semana. Crianças que têm direito a tempo para brincar, tempo para fazerem o que querem, tempo para estar com a família. Não é isto um horror? Porém, não vejo multidões sedentas de sangue a invadir os ministérios, a enfiar em chuços as cabeças do primeiro-ministro, da ministra da educação, e já agora também a do ministro do trabalho que permite que sejamos quase todos obrigados a trabalhar demais. Também desta maneira banalizamos o horror, e desta vez com um pouco mais de culpa.
Ou podemos ir no autocarro ou no metro e ouvir uma mãe dizer a um filho pequeno que já não gosta dele, que o vai deixar ficar e arranjar outro menino. Quem de nós nunca ouviu uma conversa como esta? É banal, é do dia-a-dia. Mal reparamos. E no entanto é talvez o maior dos horrores, porque a criança acredita. E sabe que não pode sobreviver sozinha. E sente-se condenada à morte. A mim incomoda-me mais ver uma criança passar por isto do que saber que mil crianças passaram uns minutos viradas para a parede com fita-cola na boca. Mas cada um tem a sua sensibilidade, e se eu tenho direito à minha, o Daniel Oliveira e todos os que se horrorizaram com o caso da fita-cola têm direito à deles.
Mas se a nossa sensibilidade é tão exigente que nos obriga a empolar o banal, então é melhor termos o cuidado de não banalizar o que é horrível.
Prós e Contras
Vejam o desempenho de Joana Amaral Dias no Prós e Contras. Quanto menos sabem, mais certezas têm.
terça-feira, 1 de abril de 2008
Equilíbrio e moderação
Comparando a intervenção de Paulo Guinote nos Prós e Contras de ontem com a de Joana Amaral Dias pareceu-me não poder haver maior contraste. Guinote foi equilibrado, moderado, consciente da complexidade e dos matizes do tema tratado. Joana Amaral Dias, pelo contrário, foi extremista, desiquilibrada, simplista e dogmática. Arvorou durante todo o programa uma expressão indignada, e de cada vez que a câmara a focava durante uma intervenção com que não concordasse assumia a linguagem corporal de quem está a ser esbofeteado. As suas posições são obviamente matéria de fé e não admitem contraditório. Daí a espécie de ultimato que fez aos restantes intervenientes e a todos nós: ou ela, ou o fascismo.
Comparem-se as duas posições em matéria de autoridade: para Joana Amaral Dias a autoridade do professor é uma coisa que se conquista - e só isso. A questão do poder, e a associação do poder à autoridade, são coisas que Joana Amaral Dias prefere não discutir. Para Paulo Guinote a autoridade é isso mas também o poder de coerção delegado pelo Estado. Ao mundo perfeito postulado por Joana Amaral Dias opõe Guinote o mundo real. Guinote tem uma posição mais realista, equilibrada e moderada, mais fundada nos factos; mais inteligente, em suma. Mas também mais complexa e matizada, e em televisão o complexo e o matizado têm dificuldade em passar. Considerando esta dificuldade creio que Guinote se desenvencilhou muito bem.
Comparem-se as duas posições em matéria de autoridade: para Joana Amaral Dias a autoridade do professor é uma coisa que se conquista - e só isso. A questão do poder, e a associação do poder à autoridade, são coisas que Joana Amaral Dias prefere não discutir. Para Paulo Guinote a autoridade é isso mas também o poder de coerção delegado pelo Estado. Ao mundo perfeito postulado por Joana Amaral Dias opõe Guinote o mundo real. Guinote tem uma posição mais realista, equilibrada e moderada, mais fundada nos factos; mais inteligente, em suma. Mas também mais complexa e matizada, e em televisão o complexo e o matizado têm dificuldade em passar. Considerando esta dificuldade creio que Guinote se desenvencilhou muito bem.
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