A CEE foi fundada com um objectivo bem definido e claramente político: romper pelo prazo mais longo possível com o estado de guerra que é historicamente o estado habitual, senão mesmo natural, da Europa.
Para servir este objectivo político, os pais fundadores estabeleceram objectivos económicos; e para servir estes objectivos económicos criaram uma arquitectura institucional que depois foi evoluindo até configurar a UE dos nossos dias.
Enquanto a ordem de prioridades se manteve clara - acima de tudo a Paz, e, subsidiariamente a esta, a prosperidade e a equidade - a União Europeia foi um espaço de esperança não só para os governos, mas também para sectores maioritários dos eleitorados. Com a passagem do tempo, porém, foi chegando ao poder uma geração sem memória directa da guerra; e aderiram à UE países, como Portugal e Espanha, que a não tinham sentido nos seus territórios e cujos cidadãos estavam mais motivados pela promessa de prosperidade do que pela promessa de paz. O capitalismo financeirizou-se, a economia real perdeu terreno para a economia virtual e os novos poderes financiaram a captura das instituições académicas por uma ortodoxia económica que os favorecia. No plano ideológico, o neo-liberalismo e as doutrinas monetaristas prevaleceram sobre as doutrinas keynesianas que tinham estado na base dos Trinta Anos Gloriosos do pós-guerra. A Europa virou à direita: os partidos trabalhistas, sociais-democratas, socialistas e democratas-cristãos desapareceram de cena ou transformaram-se - mesmo quando mantiveram as suas antigas designações - no braço político do poder financeiro.
As formações políticas que herdaram os ideais de Willy Brandt ou Olof Palme são hoje, como o nosso Bloco de Esquerda, minoritárias, e apresentadas pelos media à opinião pública como extremistas e utópicas.
A ordem de prioridades a que obedeceu a fundação da CEE inverteu-se durante estas décadas. A UE deu a paz por adquirida e perdeu assim de vista a sua razão de ser. O objectivo absoluto, imposto ou auto-imposto a todos os Estados europeus, deixou de ser a paz e passou a ser o equilíbrio orçamental a qualquer custo. O próprio desenvolvimento económico e a produção de bens e serviços - a economia real - são objectivos tolerados desde que não comprometam, mesmo a curto prazo, os equilíbrios contabilísticos. No fundo da tabela de prioridades fica tudo o que é político: a democracia, vista como dispensável no paradigma tecnocrático, e com ela a equidade, a justiça e a própria paz.
Esta inversão, só por si, conduz-nos no caminho da guerra: conduzir-nos-ia nesse caminho mesmo que a ditadura financeira em vigor na Europa não se baseasse nas doutrinas e nas políticas económicas que vigoraram na Alemanha nos anos imediatamente anteriores à subida de Hitler ao poder. Não vou tentar quantificar a probabilidade dum conflito armado generalizado entre Estados europeus. Mesmo os que consideram esta eventualidade improvável reconhecerão, com certeza, que a mera possibilidade é grave demais para ser ignorada.
A paz na Europa não pode - nunca pôde - ser deixada à paixão nacionalista ou ao arbítrio dos mercados. Exige - sempre exigiu - uma vontade política consciente, respaldada numa arquitectura institucional que lhe seja especificamente dedicada.
Mas exige também, desde logo, a manutenção da paz social em cada um dos Estados europeus, especialmente naqueles em que os conflitos sociais têm historicamente contribuído para o desencadear de conflitos armados entre estados-nação. A conflitualidade social decorrente das medidas de austeridade impostas não pode ser vista como um acidente de percurso ou como um obstáculo ultrapassável à realização de um projecto europeu definido em termos contabilísticoa abstractos: tem que ser vista em si mesma como uma significativa derrota do projecto europeu original. A vontade de paz é uma vontade política, mesmo quando pressupõe, como muito bem compreenderam os Pais Fundadores da CEE, condições de ordem económica.
No plano trans-nacional, não há paz sem interdependência económica. Foi esta a intuição genial que inspirou os fundadores de CEE. Mas também não há paz no plano trans-nacional sem paz no plano nacional - e daí a importância dada desde o início à coesão económica e social. A paz, como objectivo político, exige o aperfeiçoamento da democracia e não a sua erosão; diminuição das desigualdades e não o seu aumento; produtividade como um fim e competitividade como um meio, e não o inverso; liberdade de pensamento económico para que cada nação - e, dentro de cada nação, cada geração - possa gerir défices e superavits de acordo com a sua vontade política e com as doutrinas económicas que entenda mais adequadas. Quando a Alemanha impõe aos outros Estados e a si própria, por via constitucional, objectivos orçamentais que decorrem duma doutrina económica que está longe de ser consensual - nem entre as opiniões públicas, nem entre os economistas - não impede que outras doutrinas económicas surjam no debate público e académico ainda com mais força: impede apenas que se apresentem aos eleitorados em pé de igualdade com a doutrina oficial e que compita com ela pela via democrática. Quando as ideias estão impedidas de competir no espaço democrático acabam por procurar outras maneiras de se impor. Ilegalizar a social-democracia, como querem Merkel e Passos Coelho e como António José Seguro está disposto a permitir, não é a melhor maneira de assegurar a paz na Europa.
A União Europeia tem que ser refundada segundo uma linha condutora que refira ao seu objectivo político inicial toda a sua arquitectura institucional, incluindo os poderes e a missão do Banco Central Europeu. Tem que rever à luz desse objectivo os tratados de Roma, Maastricht e Lisboa. Para não ser apenas uma coligação de democracias em decadência, tem que se transformar ela própria numa democracia em crescimento. Tem que voltar a fazer prevalecer o político sobre o económico e o económico sobre o financeiro, se não quer que a dimensão política da vida se imponha descontroladamente, contra a vontade e o interesse de quase todos os europeus, sob a forma duma guerra.
Os países pequenos podem contribuir para esta mudança de paradigma insistindo, negociação a negociação, em pôr sobre a mesa o imperativo da paz. Mas não podem esperar até que a Europa, esse navio gigantesco, mude de rumo: têm eles próprios que assumir unilateralmente e desde já, no plano interno, que os seus responsáveis políticos foram mandatados e têm legitimidade para prosseguir, antes de mais, objectivos políticos; que é destes, e só destes, que devem decorrem as suas políticas económicas; e destas decorrem legitimamente as políticas financeiras. Esta ordem de prioridades deve ficar bem clara, não só internamente, como externamente: só ela permitirá traçar a linha no chão sem a qual todas as negociações entre os pequenos Estados e as instituições financeiras internacionais se traduzirão numa sucessão de recuos sem fim.
Um veículo entre outros para que Portugal pudesse notificar a União Europeia do quadro em que se propõe negociar de futuro poderia ser um pacto ibérico: um Pacto para a Paz e Neutralidade. Este pacto, fortemente publicitado, teria por fim evitar que uma eventual guerra europeia se desenrolasse em solo ibérico. Comprometeria ambos os países a organizar as suas forças armadas para a neutralidade, como faz a Suíça, e forneceria a fundamentação legal para que tomassem posições concertadas no âmbito europeu sobre tratados, contratos, entendimentos ou cláusulas que constituíssem, no seu entender, ameaças, ainda que remotas, para a paz na Europa.
Nenhum país europeu é tão grande nem tão forte que não possa ser liderado por pigmeus. E nenhum país europeu é tão pequeno nem tão fraco que não possa ser liderado por gigantes. O primeiro político que seja capaz de recordar à União Europeia a sua razão de existir, atingirá - seja ele português, búlgaro, grego, belga, luxemburguês - a estatura política dum Jean Monet ou de um Jacques Delors. E contribuirá talvez para salvar algumas dezenas de milhões de vidas humanas.
1 comentário:
Viva.
Perfeito.
Aquele abraço
Paulo Prudêncio
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