«Governamos para a classe média...»
Na verdade, José Sócrates não fez mais que prosseguir a guerra contra as classes médias empreendida por Reagan e Thatcher e continuada por muitos outros, entre os quais Aznar, Barroso e Blair. Esta guerra tomou formas diferentes nos diversos países: nos EUA e no Reino Unido, passou por «quebrar a espinha» aos sindicatos de modo que os trabalhadores blue collar que tinham ascendido à classe média baixa descessem de novo à sua classe de origem. Passou também, nestes países e em todos os outros dominados pelas doutrinas neoliberais, pela precarização e flexibilização dos empregos - como se no contrato entre empregador e empregado as partes fossem iguais em poder. Como esta guerra tinha por objectivo restaurar o poder e a riqueza que as oligarquias tinham perdido devido à ascenção do Estado Social e ao policiamento dos Partidos Comunistas, o poder político apoiou-se nas grandes empresas para financiar as campanhas eleitorais, ao mesmo tempo que procurava os votos no lumpen, prometendo-lhe o que já se sabia que não era para cumprir.
Em Portugal, esta guerra teve um desenvolvimento particular. Grande parte das classes médias era constituía por funcionários públicos, contra os quais não foi difícil convocar uma série de pogroms fundamentados em «privilégios» - uns reais, outros imaginários - «privilégios» estes que se tornavam tanto mais «evidentes» quanto mais aumentava a exploração dos trabalhadores do sector privado. Também não foi difícil, num país caracterizado pela inveja e pelo anti-intelectualismo, apelar ao ódio contra os letrados. O objectivo, prosseguido com determinação e minúcia, era desprofissionalizar, funcionarizar e proletarizar as chamadas «corporações», ou seja, todos aqueles - magistrados, médicos, professores - que pudessem articular e verbalizar a oposição das classes médias a estas políticas. Com os jornalistas, não foi necessário recorrer a estas tácticas, uma vez os grupos económicos que se apoderaram da Comunicação Social já os tinham subjugado ou estavam em vias de o fazer.
No início de 2004, na Europa e na América, a guerra dos oligarcas e dos políticos contra as classes médias parecia estar ganha. Todas as previsões apontavam para a sua progressiva e inexorável proletarização, resultando num mundo em que um pequeníssimo número de super-ricos, acolitados por uma classe política subserviente, exerceria um poder sem limites sobre uma multidão de servos.
Em 11 de Março de 2004 deu-se um daqueles acontecimentos que na altura parecem inconsequentes em termos históricos mas que se verifica mais tarde terem sido pontos de viragem. A seguir ao atentado bombista em Atoja, quando o PP, que liderava todas as sondagens, mentiu aos espanhóis sobre a autoria do crime, os cidadãos, munidos dos seus telemóveis e dos seus endereços de e-mail, conseguiram inverter o sentido do voto e fazer eleger o PSOE. Estava provado que era possível a um número suficiente de cidadãos, não organizados e não apoiaddos por nenhum partido, igreja, órgão de comunicação social ou grupo empresarial, influenciar o resultado dumas eleições.
Este facto terá passado despercebido a muita gente, na Espanha e no Mundo; mas também deve ter havido outros que tomaram dele devida nota, para memória futura.
Entretanto a América Latina tinha descoberto que podia desobedecer impunemente aos EUA; o Irão descobriu que nunca seria invadido nem as suas instalações nucleares destruídas; a Rússia redescobriu, e fez valer, o seu estatuto de grande potência; as classes médias americanas descobriram que podiam, graças às novas tecnologias, angariar o dobro do dinheiro para eleger Obama que os grandes grupos económicos estavam dispostos a dar para eleger um representante dos seus interesses.
As opiniões públicas europeia e americana descobriram que o segredo para enriquecer não estava afinal em produzir riqueza, mas em criar dinheiro virtual a partir do nada. Descobriram isto, não gostaram, e estão a exigir que rolem cabeças.
E até aqui, em Portugal, os professores descobriram que uma pequena organização com acesso à net pode pôr na rua dez vezes mais manifestantes que qualquer sindicato. E as outras classes profissionais estão a descobrir que ou vencem com os professores, ou caem com eles.
Coitado do Pinócrates. Apanhou o comboio neoliberal precisamente quando faltava pouco para ele descarrilar. Conseguirá saltar do comboio em andamento? Conseguirá escapar, se abandonar os seus actuais aliados, à sua retaliação? Conseguirá aliar-se às classes médias realmente, e não só na imagem? Mas como, se tudo o que ele é é imagem? E quem é que vai agora acreditar nele?
Até pode ser que consiga, com muita sorte, uma nova maioria absoluta. Mas não lhe servirá de nada: ao fim de trinta anos sempre a perder, as classes médias estão finalmente ao ataque, e não vai ser possível governar contra elas.
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