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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Estatista, graças a Deus

Intimado a responder pelo meu alegado estatismo, vejo-me perante duas perplexidades. A primeira é saber o que é que o meu inquiridor entende por «Estado»; e a segunda é saber, uma vez definida esta entidade, se para ser estatista é preciso defendê-la ou se basta reconhecer a sua existência e a sua inevitabilidade.

Para muita gente - incluindo muitos jovens turcos deslumbrados pelo neoliberalismo - o Estado é fácil de definir: consiste muito simplesmente em todo o poder político que intervém (que «interfere», dizem eles) no funcionamento do Mercado. Esta noção é vastíssima, como facilmente se entende. Inclui todas as formas de organização da sociedade: tribo, cidade, república, teocracia, feudalismo, despotismo iluminado, despotismo oriental, monarquia de direito divino, caudilhismo carismático, etc. Tudo isto, porque não é Mercado, é Estado; ou seja, o monstro, o Moloch que tudo devora e que nos impede de ser livres e prosperar.

Fosse esta a minha noção de Estado, e eu seria mesmo assim estatista - não no sentido de defender estas formas de organização da sociedade, a maior parte das quais me repugna profundamente, mas no sentido de reconhecer a necessidade duma organização política qualquer (a mera anarquia seria sempre pior) e a inevitabilidade do estabelecimento de relações de poder - isto é, políticas - em todos os grupos humanos.

Os seres humanos têm a natureza que têm: é tão natural para eles construir hierarquias como estabelecer mecanismos de troca; e enquanto a natureza humana não mudar as duas tendências «interferirão» sempre uma na outra. A tentação de amputar o homem da sua condição natural de animal político - isto é, de ser que não pode nem nunca poderá viver, nem em cidade pura, nem em mercado puro - é totalitária no sentido mais pleno e mais sóbrio da palavra.

O que os meus inquiridores querem saber, porém, não é se eu reconheço a existência do Estado ou se estou convicto da sua inevitabilidade; é se o defendo e apoio. A questão não faz muito sentido: se uma coisa é inevitável, não precisa do nosso acordo nem é prejudicada pela nossa oposição. O Estado, o Mercado, a Gravidade existem independentemente de nós; mas se isto não nos impede de construir democracias, nem de procurar que as leis sejam boas, nem de andar de avião, nem de lançar naves para o Espaço, então também não nos devia impedir de distribuir a riqueza do modo que acharmos mais conveniente e mais justo.

O Estado a que me refiro quando falo de Estado não é o acima descrito. É o Estado Moderno hobbesiano, essa forma peculiar de organização da sociedade que lança na Magna Carta as suas raízes mais fundas, cuja natureza contratual foi teorizada por Hobbes e Rousseau, que nasceu no meio do sangue e da dor com a Revolução Francesa, que ecoou, com revérberos que ainda hoje se ouvem, na Declaração de Independência americana, que sofreu inúmeras vezes as perversões da escravatura, da opressão, da guerra, do totalitarismo, e inúmeras vezes se levantou de novo. Este Estado não tem nada de natural: é uma construção abstracta do espírito humano, o Artificiall Man referido por Hobbes. De todas as formas conhecidas de organização política, o Estado Moderno é a única que não decorre da natureza humana. Por isso ocorreu, até hoje, apenas numa civilização - a nossa, a europeia ou euro-americana - constituindo talvez o mais valioso contributo que demos ao mundo, mais importante porventura do que a filosofia grega ou a ciência empírica. Por não ocorrer naturalmente, precisa de ser mantido e cultivado para subsistir; e quem acha que o seu desaparecimento seria uma coisa boa, basta que faça a ronda do Iraque, da Arábia Saudita, do Sudão, do Afeganistão, do Zimbabwe, da Colômbia: das teocracias, das sociedades tribais, das repúblicas de gangsters - para ver que género de monstros se precipitarão para preencher o vazio que ele deixará se permitirmos que ele morra.

A artificialidade do Estado hobbesiano grangeou-lhe (a Hobbes e ao Estado Moderno) não poucos inimigos - desde gigantes como Edmund Burke a anões como os actuais neocons. O que é surpreendente, no entanto, não é tanto a aversão que ele provoca em quem prefere formas mais orgânicas e naturais de organizar a sociedade, como a indiferença ou hostilidade de quem (aparentemente) mais beneficiaria com a teorização do poder absoluto. Luís XIV não gostava do Estado artificial e abstracto: o Estado era ele, homem natural de carne e osso. Pelo mesmo diapasão afinaram os restantes Príncipes da Europa: sim, sim, muito bem, está muito bonito, muito bem escrito, mas não era bem isso que nós queríamos. Deixe-nos ficar com o nosso Poder Divino, que nós cá nos arranjamos. Não, não se incomode, não telefone, nós depois telefonamos. Obrigado. Adeus.

Claro que os Príncipes tinham razão. O Estado Moderno não é necessariamente democrático, mas é a única forma de organização do poder que não é necessariamente anti-democrática. Os Príncipes entenderam isto muito bem - melhor do que o próprio Hobbes, que não deu o pequeno passo que faltava em direcção à Democracia devido apenas a dois obstáculos teóricos: não via forma de assegurar a sucessão se o poder estivesse entregue a uma Assembleia, e não dispunha de instrumentos conceptuais que lhe permitissem teorizar a separação dos poderes. Outros, depois dele, passaram esta porta; mas quem a abriu foi ele.

O Estado Moderno não difere das formas naturais de organização política por incluir a noção de República - esta já vem de Aristóteles, dominou o discurso político em Roma, manteve-se viva durante toda a Idade Média e voltou à superfície com os Príncipes Renascentistas e Maquiavel; nem difere delas por incluir a preocupação moral e filosófica com o Bem Comum e com o Bom Governo. Mas difere de todas as outras formas de poder e de hierarquização por ser potencialmente democrático e tendencialmente de Direito.

É por isso que, em se falando de Estado Moderno, me considero orgulhosamente estatista. Não só reconheço a existência e a necessidade do Estado, como o considero digno de ser apoiado e defendido. Olho à minha volta e vejo muita gente a querer deitar fora a democracia - criacionistas, charlatães, darwinistas sociais, cientologistas, islamistas, cristãos evangélicos, terroristas, comunitaristas, pós-modernos, o diabo a quatro. Mas destes todos destaca-se um grupo que se prepara para deitar fora, não só a democracia e a liberdade, mas a própria possibilidade de democracia e liberdade: são os fundamentalistas do Mercado.

Estatista, pois. Apesar de tudo.

3 comentários:

Anónimo disse...

Eu não diria "Graças a Deus" porque sou um ateu convicto. Mas não deixo de concordar com a argumentação do autor, sobretudo na asserção : "De todas as formas conhecidas de organização política, o Estado Moderno é a única que não decorre da natureza humana. Por isso ocorreu, até hoje, apenas numa civilização - a nossa, a europeia ou euro-americana - constituindo talvez o mais valioso contributo que demos ao mundo (...)". É isso mesmo.
E é por isso que nos devíamos deixar de tretas e cultivar uma maior aproximação aos Estados Unidos, independentemente do maior ou menos apreço pelo presidente em exercício.
Jorge Oliveira

Anónimo disse...

Sim, mas para nos aproximarmos dos EUA temos que escolher muito bem os interlocutores.
Não tenho dúvida nenhuma de que há lá gente que está perfeitamente consciente da importância do Estado Moderno - não é em vão que se tem nos ouvidos as palavras majestosas da Declaração de Independência - mas também não faltam por lá vândalos que preparam o regresso à barbárie.
Quanto ao ateísmo... bom, eu costumo referir-me a Deus como a metáfora incontornável. E estava a piscar o olho ao livro de Zélia Amado «Anarquistas graças a Deus»

Igor Caldeira disse...

"O que os meus inquiridores querem saber, porém, não é se eu reconheço a existência do Estado ou se estou convicto da sua inevitabilidade; é se o defendo e apoio. A questão não faz muito sentido: se uma coisa é inevitável, não precisa do nosso acordo nem é prejudicada pela nossa oposição. O Estado, o Mercado, a Gravidade existem independentemente de nós"

Esta é, grosso modo, a minha opinião. Se as coisas têm de existir (e o Estado existirá sempre, chamemos-lhe Estado ou não) ao menos que tentemos dela tirar o máximo proveito.

A crítica dos anarco-capitalistas ao Estado tem esta dupla faceta: metade é a crítica à sua artificialidade, metade é a afirmação de uma série de princípios (pessimistas) a priori acerca da natureza humana. Com todas as pretensões a serem libertários, são apenas a adolescência intelectual do conservadorismo. De resto, e se provas necessitássemos disso mesmo, bastaria ver o afinco com que eles criticam coisas como a defesa dos direitos das mulheres, das minorias raciais ou sexuais ou da ecologia. Se fossem verdadeiramente libertários, procurariam o máximo aumento das liberdades. Podiam até continuar a ser "anti-estatistas" mas a dirigirem também a sua crítica a quando a sociedade (por si própria ou através do Estado) limita a liberdade dos indivíduos através das discriminações. Como não o fazem a única conclusão a que podemos chegar é que são conservadores imaturos.