Durante a Segunda Grande Guerra, certas ilhas da Melanésia que até então não tinham tido qualquer interesse comercial adquiriram subitamente valor estratégico. Tornaram-se bases militares. Construíram-se nelas aeroportos, instalaram-se nelas guarnições, importaram-se objectos que pudessem ser dados aos habitantes locais em troca de trabalho ou sexo ou simplesmente para os manter sossegados.
Os locais nunca tinham imaginado que estas riquezas pudessem existir, nem nunca tinham visto um avião ou um jipe. Observaram cuidadosamente os hábitos e os procedimentos dos recém-chegados, e concluíram, lógica mas erradamente, que se tratava de processos mágicos graças aos quais apareciam no mundo as facas e os machados em aço inoxidável, os tecidos, as contas coloridas e as bebidas alcoólicas destiladas.
Com o fim da guerra tudo isto desapareceu. E, para que voltasse a aparecer, havia que reproduzir os adereços mágicos que estavam na sua origem: aviões de bambu, jipes de bambu, torres de controlo de bambu.
Há consideráveis semelhanças entre os melanésios e os portugueses. Somos bons em reproduzir as formas das coisas. Não temos Estado, mas temos uma coisa em forma de Estado. Não temos mercado, mas temos uma coisa em forma de mercado. Temos umas coisas em forma de empresa que pagam aos seus trabalhadores uma coisa em forma de salário e os sujeitam a uma coisa em forma de avaliação - sendo que o artigo genuíno usado noutra paragens já não é, de si mesmo, grande espingarda. Mas exigem deles trabalho real, e em grande quantidade porque a qualidade é impossível: para o trabalho ter qualidade seria preciso que houvesse gestão e não uma coisa em forma de gestão.
A mesma coisa em forma de avaliação é aplicada - de forma ainda mais desvirtuada, se tal é possível - no sector público. Mas não faz mal: que mal tem sujeitar os juízes a uma coisa em forma de avaliação se tudo o que se pretende deles é uma coisa em forma de justiça? E aos professores, se tudo o que se lhes pede é uma coisa em forma de ensino?
E ai do juiz que queira fazer justiça genuína, ou do professor que queira ensinar genuinamente: será acusado de estar a invadir as competências daquela coisa em forma de governo que define em exclusivo a coisa em forma de bem público com que nos devemos contentar. Temos Portugal explicado: basta olhar para a imagem acima.
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3 comentários:
Há verdades tão amargas ...
J. Cascão
Excelente na forma e brilhante na metáfora. O que não fica explicado é o que “obriga” professores concretos ( ou juízes) à prática de “coisas em forma de ensino” ( ou de justiça ). E não me diga que é a “coisa em forma de governo”. Uma “inexistência” não devia ser o bastante para legitimar a inconsequência ou o mau desempenho de realidades concretas. A menos que se verifique concomitantemente uma hipótese que o texto não elabora, e que tb tenhamos uma coisa em forma de professores, de juízes, de cidadãos…:). Aí sim, teríamos Portugal explicado ( digo eu…) ! :)
Manuel Rocha, não consigo responder à sua objecção a não ser através da minha experiência pessoal, pelo que ela possa valer.
Durante mais de trinta anos tentei ensinar os meus alunos em vez de lhes dar "uma coisa em forma de ensino". Não me arrependo: recordo-me bem demais das vezes em que valeu a pena.
Mas foi um constante remar contra a maré, que me deixou exausto. Não posso, em consciência, culpar os meus colegas que acabam por se deixar ir na corrente, especialmente agora que ela está mais forte do que nunca.
Julgo que algo de semelhante se pode dizer, não só dos juízes, como de muitos outros profissionais. A subversão da realidade é um jogo antigo do poder, e e um daqueles a que é mais difícil resistir.
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