A falta duma maioria absoluta não torna impossível governar um país. Torna impossível, sim, governá-lo comodamente, mas com isto não precisam os eleitores de se preocupar: a política não existe para comodidade dos políticos.
O que pode tornar um país ingovernável é outra coisa, uma coisa de que o caso português se vem tornando cada vez mais um exemplo: o litígio entre os órgãos de soberania e o Soberano.
Este litígio, já antigo entre nós, tem-se agravado ultimamente até aos limites do tolerável. Primeiro veio a desconfiança dos cidadãos em relação ao Parlamento. Correram rios de tinta sobre as causas desta desconfiança; propuseram-se contra ela os mais variados e desencontrados remédios; mas o conflito persistiu e agravou-se. De entre as muitas escaramuças deste conflito, destaco uma: a sonegação ao eleitorado do referendo sobre o Tratado de Lisboa. Tudo se passou aqui como se competisse ao Soberano ser digno da confiança do órgão de soberania e não ao órgao de soberania merecer a confiança do Soberano.
Passemos do ramo legislativo para o executivo, e vermos que também aqui a crispação é cada vez maior. Não ignoro que o "hay gobierno? Soy contra" é uma atitude quase inata em muitos portugueses, e até acho que é uma atitude muito saudável desde que continue a ser minoritária. O problema é que corremos o risco de ela se tornar, se não maioritária, pelo menos tão espalhada que entre em choque com essa outra atitude quase inata que é, entre nós, o "haja quem mande." Quando o governo de José Sócrates declarou guerra à sociedade civil, demonizando-a sob o epíteto de "corporações", derrubou uma parte dos resguardos que protegiam uma contra a outra estas duas vertentes antagónicas da nossa mentalidade. Ao atacar e criminalizar as classes letradas, este governo (para além de ter cometido um erro histórico comparável à expulsão dos judeus por D. João III ou à dos jesuítas pelo Marquês de Pombal) lançou outro órgão de soberania na guerra do Estado contra a sociedade.
Mas tudo isto se torna insignificante e inócuo em comparação com o desenvolvimento mais recente: os portugueses já não confiam nos tribunais. Repito: os portugueses já não confiam nos tribunais. Uma polis em que o Soberano não confia no poder legislativo ainda é governável; se, em cima desta desconfiança, se multiplicam os conflitos entre partes significativas da sociedade e o poder executivo, a governação torna-se muito mais difícil (mesmo depois de perdidas as veleidades duma boa governação). Com os tribunais em causa, o País fica, de facto, no limiar da ingovernabilidade - e isto, não por falta duma maioria absoluta no Parlamento, mas até talvez, em parte, por causa dela.
Em Portugal, o único órgão de soberania que não está neste momento em litígio aberto com o Soberano é (até quando?) o Presidente da República. Mas mesmo este tem falhado no uso dos seus poderes e no cumprimento do seu mandato.
Entre os poderes do Presidente conta-se o de dissolver o Parlamento. Entre os seus deveres conta-se o de assegurar o regular funcionamento das instituições. Ora acontece que a continuada impossibilidade, por parte da Assembleia da República, de designar um Provedor de Justiça configura a sua incapacidade de funcionar regularmente. Perante esta incapacidade, o Presidente podia e devia tê-la dissolvido na altura própria - mesmo que isto significasse entregar de bandeja ao PS uma nova maioria absoluta. Há momentos em que os princípios têm que preponderar sobre o cálculo político, sob pena de o próprio cálculo político sair furado.
Apesar desta grave omissão, não ponho ainda em questão a legitimidade política e democrática do actual Presidente, como tenho posto a do actual Governo. As situações são diferentes. Há um incumprimento de mandato por parte do Presidente, mas este incumprimento ainda não se tornou, ao contrário do que acontece com o Governo, tão generalizado nem tão sistemático que ilegitime o titular do cargo.
Mas não estamos longe desta fronteira. Estamos tão perto que talvez baste um pequeno passo em falso para a transpor. E este passo em falso poderia muito bem ser, por parte do Presidente, a viabilização do autêntico golpe de Estado em que consistiria a formação dum Bloco Central dos interesses nos dias ou semanas seguintes a uma eleição em que o Soberano tivesse deixado clara a sua vontade de inflectir à esquerda.
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