Uma das características mais sonsas, mais sornas e mais castradoras da mentalidade portuguesa é a ideia de que quem fala alto perde a razão. Esta ideia é um dos dois ou três consensos nacionais que eu já não entendia aos seis anos e continuo sem compreender nem aceitar agora que caminho para os sessenta.
A razão tem-se ou não se tem. Quem a tem não a perde por falar alto, do mesmo modo que quem não a tem não a ganha por falar macio. Esta ideia peregrina de que a razão se perde por questões de forma permite, entre outras coisas, reescrever o passado: a aplicar-se, Leonor Cipriano deixou de ter sido torturada a partir do momento em que essa tortura foi denunciada publicamente. Manuela Moura Guedes, uma jornalista venal e sem escrúpulos, passou magicamente a ser um modelo de probidade e isenção a partir do momento em que Marinho e Pinto lho disse cara a cara.
Não compreendo esta lógica. Devo ser estrangeirado. Aprecio as almas generosas que falam alto e desprezo os filhos da puta, por mais macio que falem. Desprezo-os, de resto, tanto mais quanto mais macio falam.
Agora andam para aí alguns plumitivos a dizer, sorrateiros e sonsos, como quem não quer a coisa, que Marinho e Pinto até pode ter alguma razão mas que a perde por não ficar calado. Querem impugná-lo da Ordem dos Advogados e pôr talvez no seu lugar mais um filho da puta com boas maneiras, daqueles que as Faculdades de Direito de Coimbra e Lisboa produzem às fornadas.
Talvez possam com isto dar ao seu sucessor o poder que a ele nunca lhe quiseram dar; mas o que está dito está dito, o que está escrito está escrito; poder é uma coisa e autoridade é outra; e nunca darão a ninguém a autoridade que Marinho e Pinto conquistou por mérito próprio.
Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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domingo, 31 de maio de 2009
sábado, 30 de maio de 2009
50.000 ou 80.000, pouco interessa
A afluência à manifestação dos professores prova que a fraca adesão à última greve não foi sinal de desmobilização nem de desânimo. Prova que os professores se estão a preparar para uma longa e dura campanha e que têm consciência que a corrida agora é de fundo.
A ministra lá voltou a dizer "falem para aí, que a mim entra-me por um ouvido e sai por outro"; mas já não consegue esconder, nem a si própria, que os professores começam finalmente a ser ouvidos. Talvez um dia, não muito longínquo, possamos dizer que perdemos a ministra mas ganhámos a República.
A ministra lá voltou a dizer "falem para aí, que a mim entra-me por um ouvido e sai por outro"; mas já não consegue esconder, nem a si própria, que os professores começam finalmente a ser ouvidos. Talvez um dia, não muito longínquo, possamos dizer que perdemos a ministra mas ganhámos a República.
Outra vez a governabilidade
A falta duma maioria absoluta não torna impossível governar um país. Torna impossível, sim, governá-lo comodamente, mas com isto não precisam os eleitores de se preocupar: a política não existe para comodidade dos políticos.
O que pode tornar um país ingovernável é outra coisa, uma coisa de que o caso português se vem tornando cada vez mais um exemplo: o litígio entre os órgãos de soberania e o Soberano.
Este litígio, já antigo entre nós, tem-se agravado ultimamente até aos limites do tolerável. Primeiro veio a desconfiança dos cidadãos em relação ao Parlamento. Correram rios de tinta sobre as causas desta desconfiança; propuseram-se contra ela os mais variados e desencontrados remédios; mas o conflito persistiu e agravou-se. De entre as muitas escaramuças deste conflito, destaco uma: a sonegação ao eleitorado do referendo sobre o Tratado de Lisboa. Tudo se passou aqui como se competisse ao Soberano ser digno da confiança do órgão de soberania e não ao órgao de soberania merecer a confiança do Soberano.
Passemos do ramo legislativo para o executivo, e vermos que também aqui a crispação é cada vez maior. Não ignoro que o "hay gobierno? Soy contra" é uma atitude quase inata em muitos portugueses, e até acho que é uma atitude muito saudável desde que continue a ser minoritária. O problema é que corremos o risco de ela se tornar, se não maioritária, pelo menos tão espalhada que entre em choque com essa outra atitude quase inata que é, entre nós, o "haja quem mande." Quando o governo de José Sócrates declarou guerra à sociedade civil, demonizando-a sob o epíteto de "corporações", derrubou uma parte dos resguardos que protegiam uma contra a outra estas duas vertentes antagónicas da nossa mentalidade. Ao atacar e criminalizar as classes letradas, este governo (para além de ter cometido um erro histórico comparável à expulsão dos judeus por D. João III ou à dos jesuítas pelo Marquês de Pombal) lançou outro órgão de soberania na guerra do Estado contra a sociedade.
Mas tudo isto se torna insignificante e inócuo em comparação com o desenvolvimento mais recente: os portugueses já não confiam nos tribunais. Repito: os portugueses já não confiam nos tribunais. Uma polis em que o Soberano não confia no poder legislativo ainda é governável; se, em cima desta desconfiança, se multiplicam os conflitos entre partes significativas da sociedade e o poder executivo, a governação torna-se muito mais difícil (mesmo depois de perdidas as veleidades duma boa governação). Com os tribunais em causa, o País fica, de facto, no limiar da ingovernabilidade - e isto, não por falta duma maioria absoluta no Parlamento, mas até talvez, em parte, por causa dela.
Em Portugal, o único órgão de soberania que não está neste momento em litígio aberto com o Soberano é (até quando?) o Presidente da República. Mas mesmo este tem falhado no uso dos seus poderes e no cumprimento do seu mandato.
Entre os poderes do Presidente conta-se o de dissolver o Parlamento. Entre os seus deveres conta-se o de assegurar o regular funcionamento das instituições. Ora acontece que a continuada impossibilidade, por parte da Assembleia da República, de designar um Provedor de Justiça configura a sua incapacidade de funcionar regularmente. Perante esta incapacidade, o Presidente podia e devia tê-la dissolvido na altura própria - mesmo que isto significasse entregar de bandeja ao PS uma nova maioria absoluta. Há momentos em que os princípios têm que preponderar sobre o cálculo político, sob pena de o próprio cálculo político sair furado.
Apesar desta grave omissão, não ponho ainda em questão a legitimidade política e democrática do actual Presidente, como tenho posto a do actual Governo. As situações são diferentes. Há um incumprimento de mandato por parte do Presidente, mas este incumprimento ainda não se tornou, ao contrário do que acontece com o Governo, tão generalizado nem tão sistemático que ilegitime o titular do cargo.
Mas não estamos longe desta fronteira. Estamos tão perto que talvez baste um pequeno passo em falso para a transpor. E este passo em falso poderia muito bem ser, por parte do Presidente, a viabilização do autêntico golpe de Estado em que consistiria a formação dum Bloco Central dos interesses nos dias ou semanas seguintes a uma eleição em que o Soberano tivesse deixado clara a sua vontade de inflectir à esquerda.
O que pode tornar um país ingovernável é outra coisa, uma coisa de que o caso português se vem tornando cada vez mais um exemplo: o litígio entre os órgãos de soberania e o Soberano.
Este litígio, já antigo entre nós, tem-se agravado ultimamente até aos limites do tolerável. Primeiro veio a desconfiança dos cidadãos em relação ao Parlamento. Correram rios de tinta sobre as causas desta desconfiança; propuseram-se contra ela os mais variados e desencontrados remédios; mas o conflito persistiu e agravou-se. De entre as muitas escaramuças deste conflito, destaco uma: a sonegação ao eleitorado do referendo sobre o Tratado de Lisboa. Tudo se passou aqui como se competisse ao Soberano ser digno da confiança do órgão de soberania e não ao órgao de soberania merecer a confiança do Soberano.
Passemos do ramo legislativo para o executivo, e vermos que também aqui a crispação é cada vez maior. Não ignoro que o "hay gobierno? Soy contra" é uma atitude quase inata em muitos portugueses, e até acho que é uma atitude muito saudável desde que continue a ser minoritária. O problema é que corremos o risco de ela se tornar, se não maioritária, pelo menos tão espalhada que entre em choque com essa outra atitude quase inata que é, entre nós, o "haja quem mande." Quando o governo de José Sócrates declarou guerra à sociedade civil, demonizando-a sob o epíteto de "corporações", derrubou uma parte dos resguardos que protegiam uma contra a outra estas duas vertentes antagónicas da nossa mentalidade. Ao atacar e criminalizar as classes letradas, este governo (para além de ter cometido um erro histórico comparável à expulsão dos judeus por D. João III ou à dos jesuítas pelo Marquês de Pombal) lançou outro órgão de soberania na guerra do Estado contra a sociedade.
Mas tudo isto se torna insignificante e inócuo em comparação com o desenvolvimento mais recente: os portugueses já não confiam nos tribunais. Repito: os portugueses já não confiam nos tribunais. Uma polis em que o Soberano não confia no poder legislativo ainda é governável; se, em cima desta desconfiança, se multiplicam os conflitos entre partes significativas da sociedade e o poder executivo, a governação torna-se muito mais difícil (mesmo depois de perdidas as veleidades duma boa governação). Com os tribunais em causa, o País fica, de facto, no limiar da ingovernabilidade - e isto, não por falta duma maioria absoluta no Parlamento, mas até talvez, em parte, por causa dela.
Em Portugal, o único órgão de soberania que não está neste momento em litígio aberto com o Soberano é (até quando?) o Presidente da República. Mas mesmo este tem falhado no uso dos seus poderes e no cumprimento do seu mandato.
Entre os poderes do Presidente conta-se o de dissolver o Parlamento. Entre os seus deveres conta-se o de assegurar o regular funcionamento das instituições. Ora acontece que a continuada impossibilidade, por parte da Assembleia da República, de designar um Provedor de Justiça configura a sua incapacidade de funcionar regularmente. Perante esta incapacidade, o Presidente podia e devia tê-la dissolvido na altura própria - mesmo que isto significasse entregar de bandeja ao PS uma nova maioria absoluta. Há momentos em que os princípios têm que preponderar sobre o cálculo político, sob pena de o próprio cálculo político sair furado.
Apesar desta grave omissão, não ponho ainda em questão a legitimidade política e democrática do actual Presidente, como tenho posto a do actual Governo. As situações são diferentes. Há um incumprimento de mandato por parte do Presidente, mas este incumprimento ainda não se tornou, ao contrário do que acontece com o Governo, tão generalizado nem tão sistemático que ilegitime o titular do cargo.
Mas não estamos longe desta fronteira. Estamos tão perto que talvez baste um pequeno passo em falso para a transpor. E este passo em falso poderia muito bem ser, por parte do Presidente, a viabilização do autêntico golpe de Estado em que consistiria a formação dum Bloco Central dos interesses nos dias ou semanas seguintes a uma eleição em que o Soberano tivesse deixado clara a sua vontade de inflectir à esquerda.
sexta-feira, 29 de maio de 2009
Nós, europeus
A escola primária ensinou-me que eu era europeu, pelo menos em sentido geográfico. Durante muitos anos, contudo, não me senti europeu por aí além: até para ir ali a Espanha era preciso um passaporte, e para obter um era preciso que a PIDE deixasse (e, no caso de um rapaz em idade militar, a tropa). Quando o meu professor de Religião e Moral, um homem do salazarismo, me dizia que a liberdade absoluta não existe, eu respondia-lhe que não queria a liberdade absoluta: bastava-me a liberdade relativa de qualquer francês ou alemão. Mas isto estava tão longe de mim como a Lua.
A seguir ao 25 de Abril, a Europa não ficou muito mais perto: havia limites apertados à quantidade de dinheiro que se podia transportar legalmente para fora do País, os transportes eram caros, os telefonemas caros e difíceis. Apesar disto, lá consegui passar um ano em Heidelberg com uma bolsa de estudo do Estado Alemão; e, mais ou menos por esta altura, Fernando Pessoa ensinou-me que Portugal não só é parte da Europa, mas uma parte essencial dela: Portugal é a face com que a Europa contempla, esfíngica, o Oceano.
Hoje acontece-me, por vezes, ter de fazer um esforço para me lembrar de quantas vezes me meti num avião para um país europeu nos doze meses precedentes. Viajei em turismo, viajei em trabalho, viajei em estudo. A certa altura, comecei a ter a impressão de que se estava a instalar na Europa algo de parecido com as corporações medievais: era-me mais fácil conversar com um professor finlandês ou sueco do que com um yuppie português. Sentia que com eles falava a mesma língua, e com o yuppie não.
Ainda hoje sinto o mesmo.
Hoje, sou um europeu. Mais do que isso, sou um europeísta convicto. E é por isso que fico perplexo com a minha própria reacção quando vejo nos cartazes eleitorais do PS o slogan que dá o título a este texto. Se eu me sinto europeu, de onde me vem a convicção de que esse slogan é uma enorme mentira?
Não é que os slogans mentirosos em campanhas eleitorais me perturbem grandemente: estou habituado a eles e já não espero outra coisa. Mas este é mais que uma mentira. É uma mentira egrégia e despudorada. Os europeus em que José Sócrates e Vital Moreira me querem incluir não são os europeus em que eu me incluo. Não são nem podem ser os cidadãos da Europa, pelo menos enquanto esta se continuar a esforçar por negar aos seus habitantes, precisamente, a cidadania.
A Europa de Sócrates e Vital Moreira não é a Europa dos cidadãos. Não é a minha Europa. O Parlamento Europeu, para o qual vou votar, não me representa adequadamente porque não tem o poder de iniciar legislação nem de fiscalizar o Executivo. As leis que me governam provêm em 60% de Bruxelas; e, como não foram redigidas tendo em conta a minha franquia democrática, o resultado é que sou, como qualquer outro habitante da UE, 40% cidadão e 60% súbdito.
E é nesta situação que Sócrates e Vital Moreira se esforçam por nos manter, um com a sua defesa desesperada do falecido tratado de Lisboa e com o seu apoio contra-natura a Durão Barroso, o outro levando para Bruxelas um formalismo legalista e árido (lembram-se do que ele disse em relação aos professores?) que impede a cidadania de crescer.
É a Europa da burocracia e dos negócios. É a Europa dos interesses. Não é uma República, é uma empresa; e consequentemente não tem cidadãos, tem «recursos humanos». Não é «Nós, a Europa»: é «Eles, a Europa.»
A seguir ao 25 de Abril, a Europa não ficou muito mais perto: havia limites apertados à quantidade de dinheiro que se podia transportar legalmente para fora do País, os transportes eram caros, os telefonemas caros e difíceis. Apesar disto, lá consegui passar um ano em Heidelberg com uma bolsa de estudo do Estado Alemão; e, mais ou menos por esta altura, Fernando Pessoa ensinou-me que Portugal não só é parte da Europa, mas uma parte essencial dela: Portugal é a face com que a Europa contempla, esfíngica, o Oceano.
Hoje acontece-me, por vezes, ter de fazer um esforço para me lembrar de quantas vezes me meti num avião para um país europeu nos doze meses precedentes. Viajei em turismo, viajei em trabalho, viajei em estudo. A certa altura, comecei a ter a impressão de que se estava a instalar na Europa algo de parecido com as corporações medievais: era-me mais fácil conversar com um professor finlandês ou sueco do que com um yuppie português. Sentia que com eles falava a mesma língua, e com o yuppie não.
Ainda hoje sinto o mesmo.
Hoje, sou um europeu. Mais do que isso, sou um europeísta convicto. E é por isso que fico perplexo com a minha própria reacção quando vejo nos cartazes eleitorais do PS o slogan que dá o título a este texto. Se eu me sinto europeu, de onde me vem a convicção de que esse slogan é uma enorme mentira?
Não é que os slogans mentirosos em campanhas eleitorais me perturbem grandemente: estou habituado a eles e já não espero outra coisa. Mas este é mais que uma mentira. É uma mentira egrégia e despudorada. Os europeus em que José Sócrates e Vital Moreira me querem incluir não são os europeus em que eu me incluo. Não são nem podem ser os cidadãos da Europa, pelo menos enquanto esta se continuar a esforçar por negar aos seus habitantes, precisamente, a cidadania.
A Europa de Sócrates e Vital Moreira não é a Europa dos cidadãos. Não é a minha Europa. O Parlamento Europeu, para o qual vou votar, não me representa adequadamente porque não tem o poder de iniciar legislação nem de fiscalizar o Executivo. As leis que me governam provêm em 60% de Bruxelas; e, como não foram redigidas tendo em conta a minha franquia democrática, o resultado é que sou, como qualquer outro habitante da UE, 40% cidadão e 60% súbdito.
E é nesta situação que Sócrates e Vital Moreira se esforçam por nos manter, um com a sua defesa desesperada do falecido tratado de Lisboa e com o seu apoio contra-natura a Durão Barroso, o outro levando para Bruxelas um formalismo legalista e árido (lembram-se do que ele disse em relação aos professores?) que impede a cidadania de crescer.
É a Europa da burocracia e dos negócios. É a Europa dos interesses. Não é uma República, é uma empresa; e consequentemente não tem cidadãos, tem «recursos humanos». Não é «Nós, a Europa»: é «Eles, a Europa.»
segunda-feira, 11 de maio de 2009
Um país ingovernável?
Ou: Uma Lição de Democracia Dada por um Cidadão aos Partidos; e não ousem dizer que não precisam dela.
Fala-se muito agora na formação dum Bloco Central no caso provável de o PS não obter maioria absoluta nas próximas eleições legislativas. O PS e o PSD juram e voltam a jurar que não, mas todos sabemos o que valem essas juras em período eleitoral: o mesmo que juras de amor eterno a meio da noite.
Ora acontece que qualquer coligação pós-eleitoral tem um défice de legitimidade intrínseco, uma vez que o programa de governo sufragado pelo Parlamento não tem fundamento num programa eleitoral anterior sufragado pelo Soberano. Perante os actos dum governo de coligação pós-eleitoral, o cidadão pode sempre dizer "não foi nisto que eu votei."
O mesmo não pode o cidadão dizer perante um governo de um só partido (nem perante um governo de coligação se esta se formar antes das eleições e apresentar a sufrágio um programa eleitoral). Ao votar, e mesmo ao abster-se, o eleitor celebra dois contratos: um com a República, outro com quem vier a ser eleito. Nos termos do seu contrato com a República, fica vinculado ao resultado das eleições: mesmo que tenha votado noutros, não pode dizer mais tarde "não foi nestes que votei." Pode continuar a dizer-se de cada eleitor concreto que votou no partido x ou no partido y, mas dos eleitores em abstracto diz-se que votaram no partido ou candidato vencedor. Neste contrato, a obrigação da República consiste em ser efectivamente a Coisa Pública, não se deixando substituir ou dominar por interesses particulares.
O partido ou candidato vencedor está contratualmente obrigado perante os eleitores - todos os eleitores, e não só os que votaram nele - a cumprir o seu programa. Neste programa consiste, grosso modo, o conteúdo essencial do seu mandato; e, como em Democracia não há mandatos em branco (em bom rigor não há votos em partidos ou pessoas, mas sim em programas), a legitimidade de qualquer eleito, que começa por ser puramente eleitoral, depende para continuar do cumprimento das acções para que foi mandatado. Um governo de coligação pós-eleitoral não se pode ilegitimar por incumprimento de mandato pela simples razão que nunca se chegou a legitimar cabalmente: o seu mandato é em larga medida um mandato vazio. A sua legitimidade é imperfeita: é uma legitimidade legal e formal, mas não é legitimidade política nem legitimidade democrática.
O défice de legitimidade intrínseco dos governos de coligação pode ser ampliado pelas circunstâncias concretas: é o que acontecerá, creio eu, se o PS e o PSD se coligarem depois das eleições, não tendo apresentado previamente à apreciação do Soberano um programa comum. As circunstâncias concretas das próximas eleições legislativas são tais que o défice de legitimidade inerente a todos os governos de coligação se ampliaria, no caso específico dum governo de bloco Central, até ao ponto em que uma minoria significativa de cidadãos, ou até talvez uma maioria, não reconheceria legitimidade ao Governo e não se sentiria vinculada às instituições da República.
Que circunstâncias são essas? Enumero-as:
Em primeiro lugar, se se registar, como é de prever, uma subida significativa dos partidos à esquerda do PS, será difícil não concluir daqui que o Soberano manifestou explicitamente a sua vontade de que a República seja governada mais à esquerda nos próximos quatro anos; e se o Parlamento lhe der, em vez desse Governo mais à esquerda, um Governo mais à direita, muitos eleitores sentirão que o voto lhes foi confiscado.
Em segundo lugar, os temas da corrupção, do tráfico de influências e da promiscuidade entre poder político e poder económico têm ocupado uma boa parte do debate público nos últimos meses. Justa ou injustamente, uma parte considerável do eleitorado não vê no PS e no PSD dois partidos, mas sim um só partido; e não é um partido da República, mas dos interesses. Muitos eleitores, incluindo alguns dos que votarem no PS ou no PSD, estarão a tentar manter separadas, a favor da República, as duas componentes desse Partido dos Interesses. Se virem que essa votação resulta, por manobras pós-eleitorais do PI, num aumento do poder de gente em que ninguém votou, sentir-se-ão vítimas duma fraude eleitoral - por mais correcto que o processo seja formalmente.
Em terceiro lugar, não está em cima da mesa como hipótese, nem foi pedida ao Soberano, uma maioria suficiente para mexer na Constituição. Ao ir às urnas, o Soberano não estará a exprimir qualquer vontade de que uma tal maioria seja constituída. Se o PI a fabricar a posteriori, e a utilizar para mexer naquilo em que o Soberano não quer que se mexa, fará caducar qualquer legitimidade política que a votação popular, por mais expressiva que seja, lhe tenha conferido.
Tudo isto pode parecer muito abstracto e muito árido, mas a verdade é que o eleitorado tem mostrado a sua capacidade de avaliar momento a momento a legitimidade de quem o governa. Tem mostrado a sua capacidade de distinguir entre legitimidade política e democrática, por um lado, e legitimidade formal, por outro. Distingue entre poder e autoridade e não gosta que quem tem de menos desta tenha demais daquele.
E sabem ainda outra coisa, os eleitores: é que, quanto mais se deslegitima o poder formal, mais se legitimam os poderes informais. Se a soberania popular for subvertida nas instituições, o Povo exercê-la-á na rua, ou na Internet, ou onde puder - e terá, quer os políticos e os juristas queiram, quer não, toda a legitimidade para tal. Do mesmo modo, é dos livros que os cidadãos têm legitimidade, em casos-limite, para praticar a desobediência cívica. Temo que um governo do Bloco Central leve os cidadãos a este limite, do qual o PS sozinho os aproximou perigosamente durante a legislatura que termina este ano.
Será o país ingovernável sem maioria absoluta? Governável comodamente, não será, mas a política não serve a comodidade dos políticos. Será governável à custa de muita negociação - mas a negociação é a essência da boa política, e nenhum praticante da arte tem o direito de se furtar a ela.
Ingovernável será, isso sim, com um Bloco Central. Não porque este não disponha de legitimidade formal, mas porque não disporá de legitimidade democrática. Porque terá poder a mais para autoridade a menos. E porque os cidadãos, muito provavelmente, não se deixarão governar por uma tão descarada coligação de interesses.
Fala-se muito agora na formação dum Bloco Central no caso provável de o PS não obter maioria absoluta nas próximas eleições legislativas. O PS e o PSD juram e voltam a jurar que não, mas todos sabemos o que valem essas juras em período eleitoral: o mesmo que juras de amor eterno a meio da noite.
Ora acontece que qualquer coligação pós-eleitoral tem um défice de legitimidade intrínseco, uma vez que o programa de governo sufragado pelo Parlamento não tem fundamento num programa eleitoral anterior sufragado pelo Soberano. Perante os actos dum governo de coligação pós-eleitoral, o cidadão pode sempre dizer "não foi nisto que eu votei."
O mesmo não pode o cidadão dizer perante um governo de um só partido (nem perante um governo de coligação se esta se formar antes das eleições e apresentar a sufrágio um programa eleitoral). Ao votar, e mesmo ao abster-se, o eleitor celebra dois contratos: um com a República, outro com quem vier a ser eleito. Nos termos do seu contrato com a República, fica vinculado ao resultado das eleições: mesmo que tenha votado noutros, não pode dizer mais tarde "não foi nestes que votei." Pode continuar a dizer-se de cada eleitor concreto que votou no partido x ou no partido y, mas dos eleitores em abstracto diz-se que votaram no partido ou candidato vencedor. Neste contrato, a obrigação da República consiste em ser efectivamente a Coisa Pública, não se deixando substituir ou dominar por interesses particulares.
O partido ou candidato vencedor está contratualmente obrigado perante os eleitores - todos os eleitores, e não só os que votaram nele - a cumprir o seu programa. Neste programa consiste, grosso modo, o conteúdo essencial do seu mandato; e, como em Democracia não há mandatos em branco (em bom rigor não há votos em partidos ou pessoas, mas sim em programas), a legitimidade de qualquer eleito, que começa por ser puramente eleitoral, depende para continuar do cumprimento das acções para que foi mandatado. Um governo de coligação pós-eleitoral não se pode ilegitimar por incumprimento de mandato pela simples razão que nunca se chegou a legitimar cabalmente: o seu mandato é em larga medida um mandato vazio. A sua legitimidade é imperfeita: é uma legitimidade legal e formal, mas não é legitimidade política nem legitimidade democrática.
O défice de legitimidade intrínseco dos governos de coligação pode ser ampliado pelas circunstâncias concretas: é o que acontecerá, creio eu, se o PS e o PSD se coligarem depois das eleições, não tendo apresentado previamente à apreciação do Soberano um programa comum. As circunstâncias concretas das próximas eleições legislativas são tais que o défice de legitimidade inerente a todos os governos de coligação se ampliaria, no caso específico dum governo de bloco Central, até ao ponto em que uma minoria significativa de cidadãos, ou até talvez uma maioria, não reconheceria legitimidade ao Governo e não se sentiria vinculada às instituições da República.
Que circunstâncias são essas? Enumero-as:
Em primeiro lugar, se se registar, como é de prever, uma subida significativa dos partidos à esquerda do PS, será difícil não concluir daqui que o Soberano manifestou explicitamente a sua vontade de que a República seja governada mais à esquerda nos próximos quatro anos; e se o Parlamento lhe der, em vez desse Governo mais à esquerda, um Governo mais à direita, muitos eleitores sentirão que o voto lhes foi confiscado.
Em segundo lugar, os temas da corrupção, do tráfico de influências e da promiscuidade entre poder político e poder económico têm ocupado uma boa parte do debate público nos últimos meses. Justa ou injustamente, uma parte considerável do eleitorado não vê no PS e no PSD dois partidos, mas sim um só partido; e não é um partido da República, mas dos interesses. Muitos eleitores, incluindo alguns dos que votarem no PS ou no PSD, estarão a tentar manter separadas, a favor da República, as duas componentes desse Partido dos Interesses. Se virem que essa votação resulta, por manobras pós-eleitorais do PI, num aumento do poder de gente em que ninguém votou, sentir-se-ão vítimas duma fraude eleitoral - por mais correcto que o processo seja formalmente.
Em terceiro lugar, não está em cima da mesa como hipótese, nem foi pedida ao Soberano, uma maioria suficiente para mexer na Constituição. Ao ir às urnas, o Soberano não estará a exprimir qualquer vontade de que uma tal maioria seja constituída. Se o PI a fabricar a posteriori, e a utilizar para mexer naquilo em que o Soberano não quer que se mexa, fará caducar qualquer legitimidade política que a votação popular, por mais expressiva que seja, lhe tenha conferido.
Tudo isto pode parecer muito abstracto e muito árido, mas a verdade é que o eleitorado tem mostrado a sua capacidade de avaliar momento a momento a legitimidade de quem o governa. Tem mostrado a sua capacidade de distinguir entre legitimidade política e democrática, por um lado, e legitimidade formal, por outro. Distingue entre poder e autoridade e não gosta que quem tem de menos desta tenha demais daquele.
E sabem ainda outra coisa, os eleitores: é que, quanto mais se deslegitima o poder formal, mais se legitimam os poderes informais. Se a soberania popular for subvertida nas instituições, o Povo exercê-la-á na rua, ou na Internet, ou onde puder - e terá, quer os políticos e os juristas queiram, quer não, toda a legitimidade para tal. Do mesmo modo, é dos livros que os cidadãos têm legitimidade, em casos-limite, para praticar a desobediência cívica. Temo que um governo do Bloco Central leve os cidadãos a este limite, do qual o PS sozinho os aproximou perigosamente durante a legislatura que termina este ano.
Será o país ingovernável sem maioria absoluta? Governável comodamente, não será, mas a política não serve a comodidade dos políticos. Será governável à custa de muita negociação - mas a negociação é a essência da boa política, e nenhum praticante da arte tem o direito de se furtar a ela.
Ingovernável será, isso sim, com um Bloco Central. Não porque este não disponha de legitimidade formal, mas porque não disporá de legitimidade democrática. Porque terá poder a mais para autoridade a menos. E porque os cidadãos, muito provavelmente, não se deixarão governar por uma tão descarada coligação de interesses.
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