Duas coisas me impressionaram com o chumbo do PEC 4: o serão televisivo que se seguiu, que foi um verdadeiro case study de como se monta uma campanha ideológica; e a inusitada veemência com que as instâncias europeias comentaram a votação. Os dois fenómenos estão ligados, como espero mostrar adiante.
O serão televisivo mobilizou todo o comentariado nacional em roda duma questão: E agora? Quem vai fazer o que tem que ser feito? Que "o que tem que ser feito" tem realmente que ser feito foi o pressuposto, apresentado como inquestionável, que uniu todos os comentadores, desde a extrema-direita neoliberal até à extrema esquerda (sendo que por "extrema esquerda" se deve entender, quando falamos de comentadores televisivos, o centro-direita). O discurso do "tem que ser" tinha que ser instalado, com exclusão de qualquer alternativa, nas poucas horas que se seguiram à votação; e foi fascinante assistir à rapidez e à precisão com que foi montado.
À volta deste tema gravitam vários subtemas. Um subtema explícito foi o do "arco governativo". Esta entidade misteriosa é constituída pelos partidos que podem, pela própria natureza das coisas, aspirar ao poder. Um outro subtema, desta vez implícito, foi o duma legitimidade "natural" que prevalece sobre a legitimidade democrática. Neste discurso os partidos de direita dispõem desta legitimidade intrínseca: advém-lhes de pertencerem ao dito "arco governativo", o que os obriga a serem "responsáveis" nas suas propostas.
Se a legitimidade da direita está assim inscrita na ordem natural das coisas, então o sufrágio popular não serve senão para a confirmar. Ao invés: se o eleitorado for "irresponsável" ao ponto de conferir um qualquer mandato à esquerda, a legitimidade resultante deste mandato será sempre incompleta: ao pôr em causa o "tem que ser", a esquerda coloca-se por vontade própria fora do "arco governativo": torna-se, por definição, irrealista; e a sua autoridade, por democrática que seja, contra-natura.
Toda esta montagem pressupõe que "o que tem que ser" tem mesmo que ser. Se as vozes em contrário não podem ser desautorizadas, têm que ser silenciadas; e isto, na inexistência de mecanismos censórios suficientes, só pode ser conseguido se o "tem que ser" ocupar, na campanha eleitoral que se aproxima, todo o espaço do debate.
Naquele serão televisivo ninguém disse nada que os falcões do défice, aqui e na Alemanha, não gostassem de ouvir. Nunca se mencionou que alguns dos economistas mais conceituados do mundo têm declarado peremptoriamente que "o que tem que ser" não não tem que ser; e mais, não só não tem que ser, como é um disparate contraproducente. O artigo de Paul Krugman no New York Times veio depois, é certo; mas não diz mais do que Krugman e muitos outros andam a dizer há três anos. Nem se mencionou que em Portugal muitos economistas independentes (ou seja, sem ligações profissionais ao sector financeiro) afirmam o mesmo. Nem que a rua anda a gritar a mesma coisa em Portugal, na Espanha, na Grécia, na Irlanda, no Reino Unido - e de resto a rua não tem, no consenso destes senhores, qualquer legitimidade democrática.
E eis que, num pequeno país no extremo Oeste da Europa, vem um parlamento eleito legitimar a rua. Aos olhos dos austeritaristas europeus, pouco interessa que alguns partidos tenham votado contra políticas de que discordavam enquanto outros votaram contra elas apesar de concordarem. Se o CDS teve a decência (ou a hipocrisia) de não declarar esta concordância; e se o PSD teve a franqueza (ou o impudor) de a declarar, isso é assunto interno nosso. Lá fora, um parlamento é um parlamento é um parlamento. Um deputado é um deputado é um deputado. E o parlamento português, os deputados portugueses, deram o seu aval oficial ao que a rua anda a gritar por toda a Europa.
Não admira que Angela Merkel tenha tido o atrevimento de considerar a votação "lamentável" - dando assim um puxão de orelhas, perante o parlamento alemão, ao parlamento português. Nem que outros tenham ido além do "lamentável" para considerar a votação "uma tragédia". Compreenderam, melhor que os comentadores políticos portugueses, o alcance europeu do do voto português contra o PEC.
2 comentários:
Havia que estar atento... mas o cidadão infantil colocou-se a jeito - colocou-se à mercê da mafiosice partidária:
- desde socialistas que escodem dívidas ‘debaixo do tapete’ (vide PS), passando por sociais democratas que privatizam empresas estratégicas (ficando os cidadãos à mercê da roubalheira da cartelização; – vide PSD), passando por comunistas que levam Estados à falência (e depois tudo é vendido ao desbarato; – vide ex-URSS), etc...
Um álibi/truque: a limitação do número de mandatos dos políticos é um álibi/truque para reivindicar reformas antecipadas... e... para dar uma ilusão de controlo!...
Ora, os políticos não deverão ter o número de mandatos limitado... mas em contrapartida, esses mandatos deverão estar sujeitos a uma muito maior vigilância/controlo por parte dos cidadãos (ex: o Direito ao Veto do Contribuinte... nota: a nacionalização do negócio 'madoffiano' BPN nunca se realizaria: seria vetada pelo contribuinte!) - blog: Fim da Cidadania Infantil; e os políticos deverão ter uma idade de reforma igual à do regime geral!
NOTA: A não apresentação de contas de forma transparente (para serem sugeitas ao VETO pelo contribuinte), deveria implicar – constitucionalmente – a demissão imediata do governo (ou câmara municipal), e a proibição, do partido em causa, em concorrer às próximas eleições.
De volta aos anos 60!
Visita http://palavrasdechocolate.blogspot.com/2011/04/de-volta-aos-anos-60.html E descobre um pouco mais sobre os anos 60 em Portugal!
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