(Do Frankfurter Allgemeiner de 05.04.09; traduzido por mim)
Os princípios da liberdade e da igualdade valem também para os países que não os acolhem nos seus sistemas legais? Esta questão coloca-se apesar de quase todos os países terem assinado a Declaração Geral dos Direitos Humanos de 1948. Mas em muitos casos tratou-se apenas de um reconhecimento formal que não foi integrado na ordem jurídica interna. A excepção cultural, a tradição particular opôs-se nestes países aos princípios universais.
"Os direitos humanos estão em vigor independentemente de serem ou não parte de um sistema jurídico", dizem os seus defensores. Têm que o dizer, já que estes direitos não têm força se só tiverem efeito nos lugares onde estiverem integrados na ordem jurídica. É precisamente nos lugares em que este não é o caso que eles são necessários, e têm que ser legitimados com argumentos que não sejam estritamente de ordem legal.
A legitimação que tem sido usada há séculos é o argumento da Natureza. Os filósofos atenienses que introduziram o conceito - os Cínicos, que se situaram no início da "Velha Doutrina" - não tinham qualquer respeito pela Lei (nomos), antes recorriam na sua argumentação à Natureza (physis): acreditavam que a Natureza obrigava a considerar todos os homens livres e iguais.
Em Roma, onde as ideias de liberdade e igualdade integraram, três séculos mais tarde, a cultura dos letrados, a palavra "natura" transformou-se mesmo numa palavra da moda. A crença nos velhos deuses regredia e passava-se a reconhecer a natureza como a autoridade mais alta. A ordem harmónica que rege o Universo era venerada como se fosse divina. A unidade da natureza, resultante da convergência dum número infinito de variações, era tão admirada que se tornou o modelo para todas as obras humanas. Na "nova doutrina" podia por isso dizer-se que tanto os reis como os escravos nascem nus e sem quaisquer sinais de diferença hierárquica. Quando Séneca disse "nenhum homem é mais nobre do que outro", acrescentou: "do ponto de vista da Natureza." Mesmo o imperador se deu conta disto: Marco Aurélio tornou-se um dos representantes desta concepção do mundo.
Este conceito legitimado pela Natureza, prevalecente sobre todas as ordenações legais concretas, transformou-se em "lex naturae," e foi-lhe dado o nome de Direito Natural. Sob a bandeira desta noção - mais tarde usurpada por desvios anómalos - desenrolou-se uma luta que durou séculos. Na Idade Média foi esquecido; mas com o renovaddo interesse pelo mundo antigo, no Renascimento, no Humanismo e no Iluminismo, ele regressou à luz do dia. Quando os teóricos da Revolução Francesa exigiram liberdade e igualdade, basearam-se nos "direitos natos". "Regresso à Natureza!", gritou Rousseau; e a sua frase "L'homme est né libre" encontrou em Schiller a seguinte expressão: "O ser humano nasce livre, seria livre mesmo que tivesse nascido em cadeias".
Hoje ninguém fala em Direito Natural quando o tema são os direitos humanos. Há boas razões para isto: Encontram-se de facto os indivíduos, na Natureza, numa relação livre e igual uns com os outros? Não. Na natureza reinam hierarquias rígidas. Ela não reconhece a ninguém o direito à vida. Funciona, muito pelo contrário, segundo a lei do comer ou ser comido. Se a Evoluçãotrouxe um aperfeiçoamento, isto deve-se à sobrevivência dos mais fortes. Os fracos foram sacrificados.
O jogo admirável das forças da natureza não é conduzido por princípios morais externos. A sua ordenação vem profundamente de dentro: é "intrínseca." É por isso de compreender que o conceito de direitos humanos, que se autonomeava "direito natural", fosse combatido por ser anti-natural. Isto aconteceu mesmo antes da Revolução Francesa, quando o britânico Edmund Burke escreveu um panfleto intitulado "Uma Defesa da Sociedade Natural, ou: um olhar sobre a miséria e a inconveniência que qualquer espécie de ordem artificial traz à Humanidade".
Depois da Revolução, quando as ideias de liberdade se desacreditaram de forma tão horrível no Terror, o apelo aos verdadeiros princípios da natureza transformou-se no argumento principal daqueles que queriam restaurar o Antigo Regime - os românticos. Novalis e Eichendorff elogiaram a especificidade admirável do orgânico e exigiram da ordem política que radicasse num devir ancestral - submetida a nenhum princípio exterior, mas sim obediente à sua dinâmica intrínseca.
A ideia dos Direitos Humanos é tão contrária à Natureza, tão oposta a tudo aquilo que resulta de si mesmo, que não é sustentável sem uma obra humana artificial, sem uma construção: o Estado. Numa observação superficial isto não se vê claramente. Muita gente pensa que os Direitos Humanos estão dirigidos contra o Estado e que a sua defesa implica o enfraquecimento deste. É certo que por um lado isto é correcto - mas por outro lado estes direitos pressupõem o Estado. Só ele está em condições de os garantir, só ele possui o monopólio da força necessário à protecção dos indivíduos contra os ataques de terceiros aos seus direitos.
A ideia de que os indivíduos gozam de tanto mais direitos quanto mais fraco for o Estado está muito espalhada, mas é falsa. O contrário é que é o caso. A liberdade do indivíduo exige um Estado forte. Antes de ele existir, o indivíduo isolado - a menos que se tratasse dum aventureiro com escassas probabilidades de chegar a velho - ficava preso toda a vida ao lugar em que tinha nascido. Não se podia emancipar da sua comunidade, uma vez que estava dependente da sua protecção, e tinha que se conformar com o lugar que lhe tinha sido dado na hierarquia. Depois formou-se o Estado moderno, e só então, sob a sua protecção, puderam os indivíduos desenvolver a liberdade e a igualdade.
De quão pouco servem os Direitos Humanos onde o Estado não existe, podem os migrantes testemunhá-lo. Hannah Arendt relata o que aconteceu aos emigrantes judeus que confiaram nos seus direitos eternos: "Afinal, quando as pessoas falavam de direitos inalienáveis e incondicionais, queriam dizer que estes eram independentes de todos os governos e tinham que ser respeitados por todos os governos. E subitamente verificou-se que no momento em que os seres humanos deixam de ser protegidos por um governo deixam de gozar de direitos civis e consequentemente é-lhes negado o mínimo de direitos com que alegadamente nasceram; de repente deixou de haver quem lhes pudesse garantir a protecção do Direito".
Este papel do Estado foi negligenciado durante as últimas décadas. Foi pouco valorizado em todas as suas funções; foi, pelo contrário, menosprezado e reprimido como perturbador das forças livres e auto-reguladas da sociedade. Toda a teoria era consensual quanto a isto: Niklas Luhmann procurou reduzi-lo ao mínimo na sua Teoria dos Sistemas e não o quis reconhecer nem mesmo no seu papel de garante dos direitos essenciais, Jürgen Habermas combateu-o como um "sistema" contra o qual o mundo da vida teria que se afirmar. Nos pós-modernos franceses, entre eles Michel Foucault, ele é mostrado como um elefante numa loja de louças. Só eram tidas em conta as actividades vindas das bases, da chamada Sociedade Civil.
Este tempo já passou. É certo que os letrados ainda apresentam, nos seus colóquios, os escritos anti-estatais que tinham preparados, e ainda têm na boca a frase de Foucault "Não queremos ser governados!" Mas já se vão dando conta que este lema não se coaduna com a realidade. De dia para dia, são compelidos pelos noticiários a deixar-se ensinar como é prejudicial a falta de poder do Estado. À falta de ser eficazmente controlada por uma instância central, a economia mundial caiu numa crise grave, e numa grande parte do Mundo uma tal instância reguladora torna-se urgentemente necessária para que os direitos humanos sejam efectivamente assegurados. "Failed state" - ainda há pouco tempo, a situação que esta expressão descreve era tida por desejável, porque permitia que as forças sociais vindas de baixo se desenvolvessem; hoje, essa mesma expressão é entendida como assinalando o caos no qual os direitos humanos se afundam.
Cresce de novo o interesse pela consagração de decisões centrais aplicáveis às áreas mais vastas possíveis. Isto exprimiu-se no entusiasmo com que a eleição de Barack Obama desencadeou em todo o mundo. Ele despertou a esperança de que os direitos humanos possam ser ficar em todo o mundo sob a protecção da única super-potência. E estas expressões de entusiasmo não deram lugar à fobia de um governo mundial que até agora se manifestava sempre que alguém exprimia propósitos semelhantes. "Polícia do Mundo" já não é insulto. Os direitos humanos, quer residam inalienavelmente no Céu, quer nascam das profundezas da lei natural, exigem uma instituição central construída pelo homem que os faça cumprir - se necessário pela força. O Tribunal Penal Internacional aponta nesta direcção. Na internacionalização da defesa dos direitos humanos mostra-se já a tendência para o Estado Mundial.
Sibyle Tönnis
1 comentário:
Imagine
John Lennon
(and no religion too)
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