José Sócrates aprendeu a lição: nenhum primeiro-ministro tem posto tantos processos a tanta gente como ele. Geralmente, perde: os tribunais têm entendido, e bem, que o direito do cidadão ao seu bom nome não pode esvaziar o dever do político de se submeter ao escrutínio dos eleitores. Aos eleitores honestos interessa saber se um político é honesto ou não; e, não tendo acesso aos meios investigativos duma polícia profissional nem obrigação de seguir as regras de prova em vigor nos tribunais, resta-lhe formar uma opinião a partir dos media, dos antecedentes que conhece, das peças do puzzle que vai encaixando e até, muito legitimamente, da sua intuição pessoal.
Com base nesta opinião, que não tem que ser uma certeza, o cidadão eleitor decide o seu voto; e com base nela tenta persuadir os outros cidadãos a votar num sentido ou noutro. Está no seu pleníssimo direito.
É por pensar assim que eu já escrevi aqui que não quero que o cidadão José Sócrates seja preso sem que se prove a sua culpa no caso Freeport, mas também não quero que continue a ser primeiro-ministro sem que se prove a sua inocência. Tanto mais que José Sócrates, mesmo que seja inocente em relação a este caso, e que nunca tenha cometido um crime de corrupção tal como a lei o define, é indubitavelmente corrupto pela definição de corrupção que eu já aqui expus, que é política e não jurídica: corrupção é tudo o que converte poder político em poder económico ou poder económico em poder político. O recente chumbo no Parlamento dos projectos de lei contra o enriquecimento ilícito é apenas o último episódio numa longa série que torna clara (ou ainda mais obscura, vista por outro prisma) a posição do Partido Socialista em relação aos corruptos; e nãoserá preciso lembrar que tão ladrão é o que vai à vinha como o que fica à porta...
Convém a José Sócrates confundir os dois planos e passar para a opinião pública esta confusão. É ela que lhe permite vitimizar-se, e é ela que lhe permite conduzir a verdadeira campanha de terror jurídico com que tem procurado silenciar os seus críticos. A sinceridade deste exercício seria mais convincente se não se dessem duas estranhas coincidências: a tentativa recente da parte do Governo de aumentar as custas judiciais, que já são exorbitantes, e o facto de as primeiras referências passadas pelo Governo para os media quanto à possível desejabilidade desta medida terem surgido na sequência dos diversos processos postos por professores e organizações de professores, geralmente com êxito, contra o Ministério da Educação.
Um Estado que não consegue vencer os cidadãos pela razão ou pela lei; um Estado que tenta vencê-los pela ruina económica; um Estado que tenta pôr a Justiça fora do alcance das classes médias; um Estado que ainda por cima tem o privilégio de litigar gratuitamente não tem legitimidade para invocar a Lei que subverte por sistema, e muito menos a têm os titulares dos órgãos de soberania.
E que tal se o Estado, em vez de poder litigar de graça, tivesse de pagar o dobro das custas judiciais do que pagam os cidadãos comuns? E que tal se os tivesse que indemnizar em dobro, em caso de eles obterem vencimento de causa, de todas as despesas em que tivessem incorrido ao longo do processo - incluindo as despesas de representação legal? E que tal se a mesma tabela valesse para os detentores de cargos políticos, para as grandes empresas, e para todos os casos de grande superioridade do poder do queixoso em relação ao do réu? Fala-se tanto em Estado de Direito - porque não havemos nós, cidadãos, de exigir um Estado de Direito a sério?