A "Alemanha" está em guerra contra a "Europa". Entenda-se aqui por "Alemanha", assim entre aspas, não o Povo alemão nem Estado alemão, mas sim a teia de interesses económicos, políticos e financeiros centrada nas oligarquias alemãs e na tecno-burocracia da União Europeia. Desta "Alemanha" fazem parte não apenas os partidos da Direita alemã, a imprensa tablóide alemã, os bancos alemães e o Bundesbank; nem sequer apenas aquela grande fracção da opinião pública alemã que se deixou intoxicar pela propaganda xenófoba contra aos europeus do Sul e pela narrativa que lança sobre eles as culpas duma crise planeada e posta em prática pelas elites políticas, económicas e tecno-burocráticas da Europa e do Mundo. Nesta acepção, Passos Coelho e Rajoy são tão alemães como Merkel, Vítor Gaspar tão alemão como Schäuble, e Barroso ou Van Rompuy mais alemães que os outros todos.
Esta "Alemanha" também se podia chamar "Áustria", em reconhecimento dos seus mestres Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Joseph Schumpeter, Karl Popper ou Peter Drucker. Mas isto seria do mesmo modo um termo de conveniência, e, como termo de conveniência, "Alemanha" funciona melhor. Foi esta "Alemanha", e não o Estado Alemão em si, que moveu e move ainda uma guerra não declarada contra a "Europa".
Também a palavra "Europa" é aqui usada como termo de conveniência. Não inclui, como é óbvio, a totalidade geográfica do continente europeu. Nem inclui as elites políticas e económicas dos Estados da União Europeia ou da Zona Euro, ou as tecno-burocracias de Bruxelas, Estrasburgo e Frankfurt - que são, nos termos que defini acima, "alemãs." Por "Europa" entendo aqui, por um lado, as classes médias e as classes trabalhadoras da União Europeia, incluindo obviamente as alemãs; e por outro lado o projecto de paz e prosperidade partilhada protagonizado por Jean Monnet, Robert Schuman e Konrad Adenauer.
A guerra movida pela "Alemanha" à "Europa" é uma guerra civil que se desenvolve no contexto duma outra guerra, de âmbito mundial, movida pelos "mercados" contra a União Europeia. A crise do imobiliário nos EUA teve repercussões nos sistemas financeiros de todo o mundo. No Verão de 2008, a derrocada do Lehman Brothers sinalizou publicamente a crise e levou os governos a considerar certas empresas - maioritariamente do sector financeiro - como too big to fail. Politicamente apoiados pelos governos, os bancos responsáveis pela crise criaram uma ditadura de credores que lhes permite ressarcir-se das perdas sofridas cobrando tributo aos contribuintes americanos e europeus, restringindo o crédito à economia real e impondo juros artificialmente inflacionados aos devedores mais vulneráveis - nomeadamente àqueles países cuja participação na zona Euro impossibilitava de pôr em prática políticas que lhes permitissem defender-se.
E foi nesta conjuntura que as instâncias políticas da União Europeia tomaram aquela que é provavelmente a decisão mais estúpida - mais traiçoeiramente estúpida - da sua história. Com a União sob ataque externo, no preciso momento em que as mais elementares considerações estratégicas lhe exigiam que reforçasse os sectores mais fracos da sua periferia, escolheu em vez disto atacá-los por trás e deixá-los entre dois fogos.
Em qualquer guerra a primeira baixa é a verdade. A propaganda que a "Alemanha" utiliza contra a "Europa" baseia-se em duas mentiras fundamentais. A primeira é a narrativa do esbanjamento, da indisciplina, da irresponsabilidade fiscal e dos défices crónicos dos países devedores. Esta mentira tem a sua parcela de verdade (mais no que toca a Grécia e Portugal do que no que toca a Itália, a Espanha e a Irlanda); mas esta parcela é imputável às forças políticas e económicas que nestes países constituem a "Alemanha", e não às classes médias e trabalhadoras ou aos contribuintes que constituem neles a "Europa."
A segunda mentira está em que as transferências financeiras necessárias a uma política de crescimento económico constituiria um jogo de soma zero, em que qualquer ganho para os cidadãos do Sul da Europa corresponderia a um prejuízo equivalente para os contribuintes do Norte. Em nome desta mentira, foram rejeitadas todas as políticas que pudessem funcionar como um jogo de soma positiva. Mesmo perante o que já é uma evidência - que os equilíbrios financeiros pro-cíclicos e as políticas de austeridade em vigor estão a resultar num jogo de soma negativa para todos os povos da UE - continua a insistir-se na mentira. Porque esse é o interesse da "Alemanha." Porque esse é o interesse das instituições bancárias de âmbito mundial que formataram e nomearam os ministros das finanças, quando não os primeiros-ministros, e os governadores dos bancos centrais da União Europeia.
Sabe-se sempre como as guerras começam; nunca se pode prever como acabam. A guerra civil entre a "Alemanha" e a "Europa" poderá ter um de muitos desenlaces, dos quais só consigo imaginar três. Num deles, a "Alemanha" entregará à Alemanha um império que esta terá que assumir mesmo que o não deseje. No centro deste império subsistirão, talvez, os vestígios dum Estado Social, mas nas periferias as condições "normais" de vida e de trabalho estarão próximas da escravatura ou da servidão feudal.
Outro desenlace possível é a vitória da "Europa," com o regresso da União Europeia aos princípios fundadores da CEE e com avanços significativos numa integração política legitimada no processo democrático.
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