Consideremos a possibilidade de haver democracias reais (entendendo-se por "real", por oposição a "formal", um sistema político em que o voto popular tem consequências); consideremos a possibilidade de existirem Estados Soberanos; e consideremos a possibilidade de haver Mercados Livres Globalizados. O Trilema de Rodrik diz-nos que quaisquer duas destas condições podem coexistir, mas nunca as três.
O que me interessa hoje discutir não é a validade desta tese, mas sim a possibilidade de acrescentar uma terceira coordenada à nossa já conhecida Bússola Política: a oposição entre nacionalismo e cosmopolitismo. A oposição entre laissez-faire e regulação económica não subsume esta terceira coordenada, uma vez que é possível, pelo menos em teoria, ser-se favorável aos mercados livres no âmbito nacional ou regional e desfavorável a eles no âmbito global.
Temos assim que o nosso conhecido quadrado em que se definem quatro espaços políticos é substituído por um cubo em que se definem oito; e o grau de extremismo de cada posição política é definido pela proximidade em relação a cada um dos vértices.
E é aqui que a questão se começa a tornar interessante. Suponhamos que introduzíamos na nossa bússola tridimensional uma nova coordenada. Por exemplo: se as leis devem ter uma base moral que reflicta o consenso da comunidade ou, no extremo oposto, uma base utilitária que não atenda a mais que a protecção dos direitos de cada cidadão contra as acções dos outros. Na primeira opção, é perfeitamente legítimo que o Estado nos proíba de injectar heroína nas veias - nas nossas, é claro - ou de andar nus na rua; na segunda, leis como estas seriam ilegítimas, tais como quaisquer outras que definissem crimes sem vítima. A figura geométrica que ilustraria a variedade de opções políticas daqui resultante seria, não já um segmento de recta, um quadrado ou um cubo, mas sim um hipercubo.
Um hipercubo não é mais nem menos real, nem mais nem menos abstracto, nem mais nem menos imaginário, que um segmento de recta, um quadrado ou um cubo a três dimensões. Mas, se não é menos imaginário, é muito menos imaginável. É, até, inimaginável de todo: o cérebro humano não está equipado para visualizar objectos com quatro dimensões espaciais.
Mas está equipado para os compreender, ou seja: para conhecer as suas propriedades. No caso dum hipercubo, é possível determinar o seu volume (que, se ele tiver dez centímetros de lado, será de 10.000 cm4). E é possível saber quantos vértices tem, que são dezasseis - cada um dos quais representará, na nossa metáfora, uma posição política extrema.
A noção de hipercubo é perfeitamente inútil, por exemplo, para um arquitecto que queira projectar um edifício (a não ser numa história engraçadíssima de Robert A. Heinlein, intitulada And He Built a Crooked House). Mas talvez não seja assim tão inútil para um cidadão empenhado em definir-se politicamente.
O que só prova (esta é para o director do Sol) que a política é mais complicada que a arquitectura. Mas isto já nós sabíamos.
Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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domingo, 28 de fevereiro de 2010
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
A Face da Besta
Este post corresponde, com algumas ligeiras alterações, a um comentário que fiz a este texto publicado no "Ladrões de Bicicletas, e refere-se a esta entrevista a Christophe Dejours", director do Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Acção em Paris, publicada no "Público" no dia 1 deste mês. O título, roubei-o aos "Ladrões".
Quando, há vários dias, li a entrevista a Cristophe Dejours no "Público", o episódio que mais me ficou na cabeça foi o dos gatinhos entregues, no início duma acção de formação, a quinze candidatos a quadros superiores duma empresa, para no fim do seminário lhes ser ordenado que os matassem. O objectivo era ensiná-los a serem impiedosos; o resultado foi catorze gatinho mortos e uma candidata em tratamento psiquiátrico.
Imaginei-me a falar disto com um defensor estrénuo do "empreendorismo" e dos mercados livres e a ouvir o argumento dos costume: que se trata de comportamentos isolados, de pessoas mal formadas, que não se pode tomar a parte pelo todo, etc.
Mesmo que se tratasse dum comportamento isolado - mesmo que se tratasse de um comportamento único - haveria sempre lugar a uma inferência inescapável: se isto é permitido a uma empresa, é permitido a todas.
Mas não se trata de casos isolados. Pelo contrário, são casos inseridos em contextos que envolvem a colaboração de muitas equipas especializadas. Se estes comportamentos se devessem exclusivamente à desumanidade idiossincrática de uns poucos gestores ou patrões, estes não beneficiariam de estruturas montadas nem de técnicas elaboradas para tornar a sua desumanidade mais eficaz.
O horror destas situações está precisamente no seu carácter sistemático, estudado, organizado, racional. E isto desperta alguns fantasmas que desejaríamos ver adormecidos, se não para sempre, pelo menos por mais umas décadas.
No mesmo dia em que li a notícia, comentei-a com um jovem de trinta anos, altamente qualificado, que se move nos mesmos meios académicos e empresariais em que se move a generalidade dos seus amigos e contemporâneos. Também ele tinha lido a entrevista, mas surpreendeu-se com a minha surpresa. E começou a contar-me um rosário de horrores de que tinha sido testemunha, incluindo alguns que não ficam atrás em crueldade dos que a entrevista menciona.
Como é que isto se pode passar à nossa volta sem nós notarmos? O que vamos dizer aos nossos netos quando eles nos pedirem contas do mundo que lhes deixámos? Que não vimos nada? Que não reparámos? Que desviámos os olhos? Que acreditámos nos economistas, nos empresários, nos políticos e nos gurus quando nos disseram que para tornar produtivo o ser humano era preciso destruí-lo?
Quando, há vários dias, li a entrevista a Cristophe Dejours no "Público", o episódio que mais me ficou na cabeça foi o dos gatinhos entregues, no início duma acção de formação, a quinze candidatos a quadros superiores duma empresa, para no fim do seminário lhes ser ordenado que os matassem. O objectivo era ensiná-los a serem impiedosos; o resultado foi catorze gatinho mortos e uma candidata em tratamento psiquiátrico.
Imaginei-me a falar disto com um defensor estrénuo do "empreendorismo" e dos mercados livres e a ouvir o argumento dos costume: que se trata de comportamentos isolados, de pessoas mal formadas, que não se pode tomar a parte pelo todo, etc.
Mesmo que se tratasse dum comportamento isolado - mesmo que se tratasse de um comportamento único - haveria sempre lugar a uma inferência inescapável: se isto é permitido a uma empresa, é permitido a todas.
Mas não se trata de casos isolados. Pelo contrário, são casos inseridos em contextos que envolvem a colaboração de muitas equipas especializadas. Se estes comportamentos se devessem exclusivamente à desumanidade idiossincrática de uns poucos gestores ou patrões, estes não beneficiariam de estruturas montadas nem de técnicas elaboradas para tornar a sua desumanidade mais eficaz.
O horror destas situações está precisamente no seu carácter sistemático, estudado, organizado, racional. E isto desperta alguns fantasmas que desejaríamos ver adormecidos, se não para sempre, pelo menos por mais umas décadas.
No mesmo dia em que li a notícia, comentei-a com um jovem de trinta anos, altamente qualificado, que se move nos mesmos meios académicos e empresariais em que se move a generalidade dos seus amigos e contemporâneos. Também ele tinha lido a entrevista, mas surpreendeu-se com a minha surpresa. E começou a contar-me um rosário de horrores de que tinha sido testemunha, incluindo alguns que não ficam atrás em crueldade dos que a entrevista menciona.
Como é que isto se pode passar à nossa volta sem nós notarmos? O que vamos dizer aos nossos netos quando eles nos pedirem contas do mundo que lhes deixámos? Que não vimos nada? Que não reparámos? Que desviámos os olhos? Que acreditámos nos economistas, nos empresários, nos políticos e nos gurus quando nos disseram que para tornar produtivo o ser humano era preciso destruí-lo?
domingo, 7 de fevereiro de 2010
Adam Smith não era "economicista"
Traduzo e cito Karl Polanyi:
'Adam Smith, é verdade, tratou a riqueza material como um campo de estudo isolado; o facto de ter feito isto com um grande sentido de realismo fez dele o fundador duma nova ciência, a economia. Apesar disso, a riqueza era para ele meramente um aspecto da vida em comunidade, aos propósitos da qual continuava subordinada; era um instrumento utilizado pelas nações na sua luta pela sobrevivência na História e não podia ser dissociada delas. No seu entender, um dos conjuntos de condições que governavam a riqueza das nações derivava do estado de progresso, estagnação ou declínio do país no seu todo; outro conjunto derivava da supremacia da segurança e da previsibilidade, assim como das necessidades atinentes ao equilíbrio do poder; ainda outro era proporcionado pelas políticas do governo que favoreciam o campo ou a cidade, a indústria ou a agricultura; era portanto apenas no contexto de um dado quadro político que ele entendia possível formular a questão da riqueza, pela qual entendia o bem-estar material da "grande maioria do povo". Não há nenhuma sugestão na sua obra de que os interesses económicos dos capitalistas devam determinar as leis da sociedade; nenhuma sugestão de que eles sejam os porta-vozes seculares duma providência divina que governa o mundo económico como uma entidade separada. A esfera económica, com ele, ainda não está sujeita a leis próprias que nos forneçam um critério do bem e do mal.'
Polanyi, Karl. The Great Transformation: The Political and Economic Origins of our Time. 1944. Boston: Beacon Press, 2001
'Adam Smith, é verdade, tratou a riqueza material como um campo de estudo isolado; o facto de ter feito isto com um grande sentido de realismo fez dele o fundador duma nova ciência, a economia. Apesar disso, a riqueza era para ele meramente um aspecto da vida em comunidade, aos propósitos da qual continuava subordinada; era um instrumento utilizado pelas nações na sua luta pela sobrevivência na História e não podia ser dissociada delas. No seu entender, um dos conjuntos de condições que governavam a riqueza das nações derivava do estado de progresso, estagnação ou declínio do país no seu todo; outro conjunto derivava da supremacia da segurança e da previsibilidade, assim como das necessidades atinentes ao equilíbrio do poder; ainda outro era proporcionado pelas políticas do governo que favoreciam o campo ou a cidade, a indústria ou a agricultura; era portanto apenas no contexto de um dado quadro político que ele entendia possível formular a questão da riqueza, pela qual entendia o bem-estar material da "grande maioria do povo". Não há nenhuma sugestão na sua obra de que os interesses económicos dos capitalistas devam determinar as leis da sociedade; nenhuma sugestão de que eles sejam os porta-vozes seculares duma providência divina que governa o mundo económico como uma entidade separada. A esfera económica, com ele, ainda não está sujeita a leis próprias que nos forneçam um critério do bem e do mal.'
Polanyi, Karl. The Great Transformation: The Political and Economic Origins of our Time. 1944. Boston: Beacon Press, 2001
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