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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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sexta-feira, 14 de setembro de 2007

A Tia Sally e o Estado

No final das suas aventuras, Hucleberry Finn decide ir para Oeste pelo melhor dos motivos:

But I reckon I got to light out for the Territory ahead of the rest, because Aunt Sally she's going to adopt me and sivilize me and I can't stand it. I been there before.

Quando leio nos blogs de direita o elogio do Oeste selvagem e do período de colonização americano como uma espécie de Idade de Ouro do mercado não posso deixar de me lembrar de Huckleberry, da tia Sally, da tia Polly e da tensão entre os impulsos libertários de um e as restrições civilizadoras das outras. A mesma tensão aparece, de resto, em todos os mitos desse período: de um lado os pioneiros independentes, os cowboys solitários, os rancheiros quase soberanos, os bandidos-heróis; do outro as ligas de mulheres, as associações religiosas, os homens da lei, as matriarcas e as professorinhas para quem a prioridade era criar uma autoridade pública que fechasse os saloons e obrigasse as crianças a ir para a escola mesmo quando não queriam.

De um lado, com o chamamento da liberdade e dos horizontes sem fim sempre nos ouvidos, o cowboy; do outro, a prendê-lo, a puxá-lo para junto da lareira, a chamá-lo à responsabilidade, a civilizá-lo, a professorinha, a schoolmarm.

No mito esta luta ainda não acabou. Na História, a professorinha (e a Tia Sally) derrotaram o cowboy (e Huckleberry). Como não podia deixar de acontecer, vistas as coisas em retrospectiva.

A luta pela soberania individual estava perdida à partida. A independência do pioneiro supunha uma retaguarda industrial sem a qual não disporia de tecidos para vestir, couros tratados para fazer as suas selas, pregos para construir as suas casas, serras para transformar troncos de árvore em tábuas, bigornas e ferro para fazer ferraduras e aros de rodas, armas de fogo para caçar ou para se defender. Sem essa retaguarda industrial, e sem o Estado que a tornou possível, os pioneiros teriam tido que combater os índios com armas iguais: em vez de os massacrar teriam sido massacrados.

Viver na fronteira era viver em dois mundos, recolhendo o melhor de cada um e recusando o pior. Era beneficiar do Estado, da base industrial e da organização militar que este possibilitava, e ao mesmo tempo escapar à sua jurisdição e às restrições que ele impunha. Era o paraíso. Era, com efeito, a Idade de Ouro.

O que acabou com a festa foi o Oceano Pacífico. Só por si, a tia Sally nunca teria civilizado Huckleberry, nem a professorinha teria capturado o cowboy. O oceano deteve-os; o Estado, que lhes seguia no encalço, apanhou-os.

Um Estado muito diferente dos Estados europeus, é certo. Nem admira: um Estado construído por professorinhas e por Tias Sally é necessariamente diferente dum Estado construído por nobres, diplomatas e juristas. Mas se um dia, lá no limbo onde vivem as personagens de ficção, a Tia Sally de Mark Twain se encontrar com o Conde Mosca de Stendhal ou com o Príncipe de Salinas de Lampedusa, terão por certo afinidades suficientes para poderem conversar gostosamente.