No final das suas aventuras, Hucleberry Finn decide ir para Oeste pelo melhor dos motivos:
But I reckon I got to light out for the Territory ahead of the rest, because Aunt Sally she's going to adopt me and sivilize me and I can't stand it. I been there before.
Quando leio nos blogs de direita o elogio do Oeste selvagem e do período de colonização americano como uma espécie de Idade de Ouro do mercado não posso deixar de me lembrar de Huckleberry, da tia Sally, da tia Polly e da tensão entre os impulsos libertários de um e as restrições civilizadoras das outras. A mesma tensão aparece, de resto, em todos os mitos desse período: de um lado os pioneiros independentes, os cowboys solitários, os rancheiros quase soberanos, os bandidos-heróis; do outro as ligas de mulheres, as associações religiosas, os homens da lei, as matriarcas e as professorinhas para quem a prioridade era criar uma autoridade pública que fechasse os saloons e obrigasse as crianças a ir para a escola mesmo quando não queriam.
De um lado, com o chamamento da liberdade e dos horizontes sem fim sempre nos ouvidos, o cowboy; do outro, a prendê-lo, a puxá-lo para junto da lareira, a chamá-lo à responsabilidade, a civilizá-lo, a professorinha, a schoolmarm.
No mito esta luta ainda não acabou. Na História, a professorinha (e a Tia Sally) derrotaram o cowboy (e Huckleberry). Como não podia deixar de acontecer, vistas as coisas em retrospectiva.
A luta pela soberania individual estava perdida à partida. A independência do pioneiro supunha uma retaguarda industrial sem a qual não disporia de tecidos para vestir, couros tratados para fazer as suas selas, pregos para construir as suas casas, serras para transformar troncos de árvore em tábuas, bigornas e ferro para fazer ferraduras e aros de rodas, armas de fogo para caçar ou para se defender. Sem essa retaguarda industrial, e sem o Estado que a tornou possível, os pioneiros teriam tido que combater os índios com armas iguais: em vez de os massacrar teriam sido massacrados.
Viver na fronteira era viver em dois mundos, recolhendo o melhor de cada um e recusando o pior. Era beneficiar do Estado, da base industrial e da organização militar que este possibilitava, e ao mesmo tempo escapar à sua jurisdição e às restrições que ele impunha. Era o paraíso. Era, com efeito, a Idade de Ouro.
O que acabou com a festa foi o Oceano Pacífico. Só por si, a tia Sally nunca teria civilizado Huckleberry, nem a professorinha teria capturado o cowboy. O oceano deteve-os; o Estado, que lhes seguia no encalço, apanhou-os.
Um Estado muito diferente dos Estados europeus, é certo. Nem admira: um Estado construído por professorinhas e por Tias Sally é necessariamente diferente dum Estado construído por nobres, diplomatas e juristas. Mas se um dia, lá no limbo onde vivem as personagens de ficção, a Tia Sally de Mark Twain se encontrar com o Conde Mosca de Stendhal ou com o Príncipe de Salinas de Lampedusa, terão por certo afinidades suficientes para poderem conversar gostosamente.
Blogue sobre livros, discos, revistas e tudo o mais de que me apeteça escrever...
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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.
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7 comentários:
Muito interessantes estes pensamentos. Venho de férias, longe da net, e acho que estava esfomeado por coisas destas. Este post valeu por uma almoçarada!
"A luta pela soberania individual estava perdida à partida. A independência do pioneiro supunha uma retaguarda industrial sem a qual não disporia de tecidos para vestir, couros tratados para fazer as suas selas, pregos para construir as suas casas, serras para transformar troncos de árvore em tábuas, bigornas e ferro para fazer ferraduras e aros de rodas, armas de fogo para caçar ou para se defender. Sem essa retaguarda industrial, e sem o Estado que a tornou possível, os pioneiros teriam tido que combater os índios com armas iguais: em vez de os massacrar teriam sido massacrados."
Mas a retaguarda industrial nao é garantida pelo estado mas pelo mercado. Nao existe o projecto serrote ou o projecto bigorna entre os burocratas. O que existe são individuos em todo o mundo a trabalharem para si mesmos, desde o lenhador ao mineiro, passando pelo comandante do navio e pelo fabicante de serrotes e bigornas.
Obrigado Carmo
Caro David, você está a confundir «garantir» com «fazer». O estado não tem que fabricar o serrote nem que comandar o navio (embora o possa fazer se a sociedade disso o encarregar). O que o Estado tem que fazer é garantir ao ferreiro que ninguém lhe rouba a bigorna nem incendeia a loja, e ao comandante do navio que a sua viagem tem uma razoável probabilidade de não ser interrompida por um ataque de piratas.
Uma sociedade industrial é uma coisa incrivelmente complexa. Não depende só do trabalho nem do espírito empreendedor nem dos conhecimentos científicos das pessoas. Se você tivesse uma máquina do tempo e enviasse para a Roma Imperial uma equipa de engenheiros, cientistas e artesãos com a missão de fabricar uma bicicleta de montanha igual às que se vendem no Jumbo por 100 euros - isto para já mão falar numa limusina Mercedes com ar condicionado - eles não a conseguiriam fabricar. Teriam primeiro que criar de raiz todas as fileiras de produção que convergem numa bicicleta moderna. Teriam que inventar a caravela, o sextante e a bússola, ir ao Brasil buscar borracha, reformular todo o sistema económico de modo a criar necessidades que permitissem economias de escala, mudar provavelmente todas as relações sociais e todo o sistema político - e mesmo assim a tal bicicleta de 100 euros ficaria por um preço tal que nem Crassus a poderia comprar. Pensar numa sociedade industrial sem complexidade, ou numa sociedade altamente complexa sem um Estado moderno, é de um simplismo atroz.
O estado tem como vê o papel de garantir a segurança e o cumprimento das regras, essa é a sua tarefa primordial.
Do fabrico do serrote e da bigorna o estado está excluido, são processos que resultam da auto-organização espontanea dos elementos que compoem a sociedade.
Mesmo a criação e a invençao sao processos que emanam de um modo geral da sociedade civil e da marcha da historia. Recordo-lhe o software e o telemovel que usa.
Caro David, parece-me que estamos os dois a dizer a mesma coisa. É claro que o Estado não tem nada (a menos que seja mandatado para isso pelos cidadãos, que são soberanos) que fabricar serrotes, bigornas, software ou telemóveis. Tem é que assegurar as condições para que outros façam essas coisas. E sem ele essas condições não podem pura e simplesmente existir.
Quanto à auto-organização espontânea da sociedade, só posso dizer que o Estado não é mais do que essa organização. O ferreiro depende do carvoeiro, este fornece o padeiro, que por sua vez depende do moleiro e do importador de cereais... disto tudo resulta um sistema de leis. Estas leis, para que o ferreiro e os outros possam trabalhar em paz, têm que ser impostas coercivamente a quem as não quiser cumprir; a entidade que exerce esta coerção chama-se Estado. E este intervém mais ou menos na economia conforme a sociedade entenda - em função do tempo, do lugar e das circunstâncias - que ele deve intervir.
Está em curso na blogosfera um movimento de solidariedade para com os trabalhadores portadores de deficiência, no sentido de ajudar a introduzir nos temas da actualidade a sua reivindicação de reposição dos benefícios fiscais que lhes foram retirados no OE 2007. A iniciativa é do blog “o país do Burro”, que lançou um repto a todos para que coloquem um pequeno dístico nos seus blogs, com link para o blog do MTPD. Agradece-se a colaboração de todos. O código HTML está disponível no país do burro.
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