Pode-se chamar filho-da-puta ao Senhor Primeiro-Ministro? Esta questão não pode deixar de se levantar face às recentes notícias segundo as quais um professor de Inglês terá dito a um conhecido «para teres um doutoramento só por fax» (na versão do próprio) ou «estamos num país de bananas governado por um filho-da-puta dum primeiro-ministro» (na versão do bufo que o delatou).
Admitamos,
for the sake of argument, que a versão do bufo corresponde ao que na realidade foi dito. Ressalve-se, também, que por economia de espaço não vou aqui tratar da questão sob o ponto de vista das boas-maneiras ou do bom gosto; e que por incompetência também não vou tratar dele sob o ponto de vista da legalidade. Restará então a vertente moral.
Se considerarmos a expressão «filho-da-puta» no seu sentido literal, é evidente que não podemos chamar tal coisa a José Sócrates. Estaríamos a caluniar gravemente uma senhora que, tanto quanto sabemos, não exerce nem nunca exerceu a profissão de trabalhadora do sexo. E estaríamos a considerar José Sócrates um produto dessa actividade socialmente mal-vista - quando é público e notório que nasceu na vigência de um casamento legal, realizado entre duas pessoas de sexo diferente.
Há muito tempo, porém, que a acepção literal desta expressão se tornou arcaica. Em Trás-os-Montes, só para dar um exemplo, quando se chama «filho-da-puta» a alguém, mandam as boas maneiras que se acrescente «sem desfazer na senhora tua mãe, que é uma digníssima pessoa». «Filho-da-puta» será assim sinónimo, não de «bastardo», mas de «sacana» - um indivíduo sem escrúpulos que para atingir os seus objectivos não se importa de sacrificar o bem comum nem de infringir os direitos de quem lhe está mais próximo.
Com o tempo o conceito foi evoluindo no sentido de designar cada vez menos os sacanas em geral e cada vez mais uma categoria específica de sacanas. Para esta evolução muito contribuiu o clássico
Discurso Sobre o Filho-da-Puta, de Alberto Pimenta, onde o autor já teoriza, de um modo absolutamente inovador para a época, determinados traços caracterizadores do sujeito. Para este teórico o filho-da-puta é sempre um tipo muito
ocupado e também muito
preocupado, o que ajuda a explicar a sua quase-obsessão pela
eficiência.
Deste modo o «filho-da-puta», que tinha começado por ser um subproduto da indústria mais antiga do mundo, depressa se tornou, primeiro, num fulano sem escrúpulos, depois num sacana qualquer, depois num sacana preocupado e obcecado. Hoje é sobretudo um sacana eficiente, um tecno-burocrata da geração que neste momento está a chegar ao poder nas empresas, no governo e na alta administração.
Antes de responder à minha pergunta inicial tenho, portanto, que considerar vários parâmetros de avaliação. Até que ponto vão os escrúpulos de José Sócrates, ou a falta deles? Já sacaneou muita gente? Nunca sacaneou ninguém? Dá sinais de obsessão? É eficiente? Preocupa-se demasiado com a eficiência dos outros?
Qustões difíceis, estas. Para as esclarecer um pouco, consideremos, como termo de comparação, algumas figuras da cena internacional. Podemos, com rigor, chamar «filho-da-puta» ao Sr. George W. Bush? Estou em crer que não. Podemos chamar-lhe coisas piores, algumas mesmo muito piores, e sem dúvida com toda a justiça. Mas filho-da-puta? A Cheney, talvez. A Rumsfeld, provavelmente. A Wolfowitz, certamente. Mas a Bush falta-lhe a finura, o
cool, o
je ne sais quoi que definem o verdadeiro (e legítimo, passe o oxímoro) filho-da-puta.
Vladimir Putin anda lá perto, sem dúvida. Jacques Chirac também. Os gémeos Kaczinski, que há poucas décadas poderiam ter sido considerados uns bons filhos-da-puta, são hoje, dada a acepção muito mais exigente do termo, uns filhos-da-puta péssimos. Mas o filho-da-puta por excelência, o pai e a mãe de todos os filhos-da-puta, foi e é - e penso que isto é consensual - o ex-Primeiro-Ministro do Reino Unido, o Sr. Tony Blair.
Ora acontece que Sócrates, por muito que se queira parecer com Blair, não o consegue completamente. Notam-se nele ainda alguns resquícios de consciência moral - que o tempo e o profissionalismo dos assessores se encarregarão, sem dúvida, de apagar; quando olha para os «recursos humanos» com que conta para construir a «modernidade», pode ser que ainda enxergue à transparência, muito difusamente, pessoas. E até o sorriso, calculado ao milímetro como o de Blair, parece por vezes mostrar uma réstea de autenticidade que deve dar noites de insónias aos seus assessores de imagem.
Concluindo: podemos chamar «filho-da-puta» ao Senhor Primeiro-Ministro da República Portuguesa?
A única resposta que cabe aqui é tentativa e provisória. Lá poder, podemos. Mas parece que não devemos, por muito grande que seja a nossa vontade de o fazer - e eu compreendo que essa vontade seja quase irresistível, particularmente por parte de quem se sente sacaneado. Não devemos porque há o risco concreto de sermos processados; e não devemos porque há o risco moral de não estarmos a ser inteiramente justos.
Por mim, já decidi: assim como nunca ninguém me ouviu, também nunca ninguém me ouvirá chamar chamar sacana nem filho-da-puta ao Sr. Primeiro-Ministro actualmente em funções. O que me obriga, por razões de justo equilíbrio, e apesar dos resultados da greve geral de hoje, a também nunca chamar «bananas» à generalidade dos meus concidadãos.