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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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domingo, 18 de outubro de 2015

Diálogo ficcional entre um engenheiro de há 77 anos e um economista de daqui a 71 anos

Em 1939 um jovem engenheiro acabado de desmobilizar, por problemas de saúde, da Marinha norte-americana escreveu um livro de ensaios sobre as suas opiniões em matéria de política e economia. E opiniões possuía ele em abundância: em tal abundância e variedade, e tão fora do comum, que não encontrou editor para o livro.

Chamava-se este jovem engenheiro Robert A. Heinlein; e ninguém previa, nem ele, que as décadas seguintes fariam dele o mestre indisputado de um género literário nascente, a ficção científica. Perante a rejeição do seu livro de ensaios, resolveu rescrevê-lo sob a forma de um romance, uma "história do futuro" com o título "For Us, The Living".

Como romance, é fraquito. As personagens são planas e o enredo quase inexistente. Mas é fascinante para três categorias de leitores: aqueles que, conhecendo a obra posterior de Heinlein, encontram aqui condensados quase todos os tópicos que ele desenvolveu durante o meio século em que se tornou uma lenda viva; aqueles que tiram prazer da comparação entre as sua previsão da história do Mundo desde 1939 e o que realmente aconteceu até agora (prever, em 1939, a constituição e posterior desintegração de uma estrutura em tudo semelhante à União Europeia não é façanha pequena); e aqueles que julgam que algumas ideias políticas e económicas que hoje consideramos de vanguarda eram impensáveis há 76 anos.

O enredo é rudimentar. Um engenheiro recém desmobilizado da marinha, Perry, tem um acidente de automóvel em 1939 e acorda em 2086, num corpo jovem em tudo idêntico ao seu. Há um sub-enredo amoroso, como não podia deixar de ser, mas o essencial do livro é uma sucessão de conversas com várias personagens que lhe permitem compreender a América de 2086 e, por comparação com esta, a do seu próprio tempo.

O excerto que traduzi consiste numa conversa entre "Perry" e um professor de Economia, "Master Davis", sobre aquilo a que hoje chamaríamos "Rendimento Básico Incondicional".

"Sobre o que me está a incomodar,” [disse Perry,] “parece-me que já entendo o actual sistema financeiro e vejo bem que funciona melhor que o do meu tempo, mas há coisas nele para que não encontro justificação. Especialmente este dividendo ou cheque-herança. Por que carga de água há-de toda a gente receber dinheiro, quer trabalhe, quer não? Concedo que é justo para as viúvas e os órfãos, os doentes, os cegos e os aleijados, mas porquê sustentar no ócio um matulão que é preguiçoso demais para se sustentar a si próprio? A minha ideia é esta: aumentar o subsídio se necessário, e dar um dividendo maior a quem não se pode sustentar a si próprio, mas se um zângão não quer trabalhar, que morra à fome. Não o vamos deixar viver à custa de todos nós."

"Estou a ver. Incomoda-te que seja permitido a alguém que é capaz de trabalhar viver sem trabalhar. Mas porque é que consideras o trabalho uma virtude?"

"Bom, essas pessoas consomem bens e serviços que podem fazer falta a outras pessoas."

"Sabes de alguém que não tenha tudo o que quer das coisas boas do Mundo?"

"Bem, não."

"Então como é que podes dizer que os ociosos consomem bens que pertencem de justiça aos trabalhadores?"

"Parece-me óbvio."

"Quer dizer que te parece lógico. Mas, se não consegues encontrar no mundo real um caso que a confirme, pode a tua lógica estar correcta? Parece-me que encontraste o teu cisne negro [falácia lógica, discutida anteriormente, que consiste num silogismo em que a premissa maior é desmentida pelos factos observados]."

"Talvez sim. Mas como se pode justificar que homens saudáveis vivam na ociosidade?"

Davis estendeu os lábios. "A ética é mais uma questão de opinião do que de ciência. A moral tem mais a ver com os costumes que com a lei natural. Contudo, se quiseres um argumento moral para justificar a situação, eu posso dar-to. Havia alguém no teu tempo que vivesse sem trabalhar?”

“Oh, havia os que estavam a receber subsídio.”

“Não estou a falar desses. Presume-se que esses quisessem trabalhar e não encontrassem emprego, e lembras-te que provámos matematicamente que não lhes era possível encontrá-lo. Refiro-me àqueles que podiam trabalhar mas não queriam, e viviam bem.”

“Bem, não.”

“De certeza? E os que viviam dos rendimentos, e os proprietários de terras, e os detentores de capital que não participavam na gestão?”

“Ah, sim, claro. Uns poucos milhares, talvez. Mas tinham o direito de viver na ociosidade se quisessem. Ou eles ou os pais tinham ganho o dinheiro. Um homem tem com certeza o direito de providenciar para os seus filhos.”

“Todos os ociosos de hoje são filhos ricos de pais trabalhadores.”

“Estás a tentar brincar comigo?”

“Não foi uma piada, mas é verdade que falei em linguagem figurada. Diz-me, quais são os factores que intervêm na produção da riqueza real?”

“Bom, o trabalho, claro – e as matérias-primas e a terra.”

“Quais eram os factores quando jogámos o nosso jogo de produção e consumo?”

“Ah, sim – e também o capital, e o empreendimento e a gestão, e a inovação e a técnica, e o governo também estava no tabuleiro, mas não tenho a certeza que ele seja um factor na produção.”

“Mas é, como vais ver. Vamos examinar esses factores e tentar fazer uma estimativa aproximada da sua importância. O trabalho é básico, com certeza. Só nas mais paradisíacas ilhas dos Mares do Sul é que o Homem pode viver sem trabalhar. Marx errou ao considerar que o trabalho era único factor a considerar por ser o mais imediato, embora nos seus textos esteja implícita a existência de outros. A iniciativa é mais importante que o trabalho. Sem iniciativa, gestão, capacidade de direcção, e imaginação, a nossa cultura actual, altamente produtiva, seria impossível. A iniciativa é uma forma de trabalho criativo, mais difícil que o trabalho rotineiro, e absolutamente necessária a um alto nível de produção. O capital, ou melhor, a capitalização consiste essencialmente na disposição por parte de um possuidor de riqueza acumulada de a arriscar na esperança de adquirir mais. A sua recompensa é o juro. Hoje já não lhe damos muita importância. O capital é abundante, e, por meio da concorrência exercida pelo Banco dos Estados Unidos, fizemos o juro descer até um ponto em que é proporcional ao risco. […]

“Disse-te há bocado que o governo é um factor na produção. E é um factor, se não por outra razão, porque através dos seus poderes de policiamento cria um ambiente seguro para trabalhar. Sem ele, ninguém poderia acumular riqueza e a criação de riqueza em larga escala não seria viável. O que é outra maneira de dizer que os indivíduos só adquirem riqueza pela permissão da comunidade e a comunidade pode exigir-lhes qualquer tributo necessário à promoção do bem comum. O governo desempenha outras funções, numerosas demais para mencionar, mas estás a ver o meu ponto.

“A terra e as matérias-primas são outro factor óbvio na produção de riqueza. Mesmo na economia mais simples, o trabalhador tem que ter algo sobre que actuar e um lugar para o fazer a fim de produzir riqueza.

“O último factor é a inovação e a técnica. Não me refiro apenas às invenções modernas, protegidas por patentes, mas também a toda a acumulação de conhecimento útil desde a idade da pedra até ao presente. Embora se possa criar riqueza sem inovação, ou com muito pouca, ela é o mais importante de todos os factores. Basta que penses numa mercadoria qualquer para te convenceres disto. Por exemplo, um par de sapatos. Numa fábrica moderna, a produção anda à volta de seiscentos pares de sapatos por trabalhador por dia. Se deduzirmos a matéria-prima e os custos de capital, ficaremos ainda com quatrocentos pares por trabalhador por dia. Há algum homem capaz de fazer quatrocentos pares de sapatos num dia? Põe um homem a uma banca de sapateiro e assume que se trata de um sapateiro experiente, e já será muito bom que ele consiga fazer um par de sapatos num dia. Será então a gestão? A gestão é importante, uma vez que uma má gestão reduzirá a produção, digamos, em 50%, mas apesar disso a fábrica ainda produz muito mais do que produziria um número de sapateiros artesanais igual ao número dos seus trabalhadores. É óbvio que o que permite esta produção é o conhecimento técnico, a contribuição do inventor e do artista criativo. É por isso que os recompensamos tão bem hoje em dia. Há uma característica única do inventor-criador: é que o seu trabalho lhe sobrevive e é cumulativo no seu efeito. Devemos mais ao génio desconhecido que inventou a roda e o eixo do que a todos os trabalhadores que vivem hoje sobre a terra. Além disso, cada inventor está de pé sobre os ombros dos seus antecessores. Nenhuma invenção moderna seria possível sem o trabalho prévio de Bacon, Da Vinci, Watt, Faraday, Edison, et cetera sem número.”

“Sim, isso é evidente, mas e daí? Não vejo como é que o trabalho desses homens possa justificar a preguiça de hoje.”

“Estes homens são os nossos antepassados. Deixaram a cada um de nós a herança mais valiosa que é possível imaginar com excepção da terra e da própria vida. A cada um de nós, nota bem, tanto aos preguiçosos como aos trabalhadores. Recusar ao nosso irmão que prefere não trabalhar a sua parte da produção por razões moralistas que nós próprios inventámos seria exigir para nós aquilo que não ganhámos e a que não temos direito.”

Perry parecia desconcertado mas não convencido. “Admitindo que o que estás a dizer é verdade – e é, suponho – apesar de tudo é preciso trabalho para aplicar essa herança de conhecimento técnico. Porque não há-de cada homem capaz ser obrigado a contribuir para esse trabalho?”

“Mas, Perry, com certeza que vês que não há neste mundo trabalho suficiente para todos. As máquinas libertaram-nos da maldição de Adão. Como caberíamos todos nos postos de controlo das máquinas? Trabalhamos poucas horas, é verdade, e a maior parte dos operadores das máquinas reformam-se jovens, mas não é prático fazer mudanças de turno de quinze em quinze minutos nem treinar novos trabalhadores de poucas em poucas semanas. Havíamos de pôr as pessoas a cavar buracos e a enchê-los de novo para criar trabalho por amor do trabalho? Havíamos de destruir as máquinas e substituí-las por bancas de sapateiro? Há sempre trabalho criativo para fazer; não há limite para ele, mas também não há maneira de o sujeitar a horários. Se um homem tem em si a capacidade de criar, tudo o que podemos fazer é dar-lhe o ócio necessário para a desenvolver.”