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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Pensamento Crítico e Ficção Literária


Da minha lista de hiperligações constam dois blogues que visito frequentemente e que muito aprecio pela defesa que fazem da racionalidade e do pensamento crítico numa sociedade , num sistema educativo e num panorama mediático que cada dia parecem mais hostis a estes valores: o «Que Treta!» do Ludwig Kripphal e o «De Rerum Natura» em que pontificam alguns verdadeiros heavyweights do nosso panorama científico, educativo e filosófico. Eu próprio, mais modestamente, tenho oposto a resistência que posso à maré de irracionalismo perante a qual são muito mais os que derrubam diques do que os que os constroem ou reparam.

Como explicar, então, o meu entusiasmo pelos universos paralelos da literatura fantástica e da ficção científica? O que me leva a ler com interesse e gáudio uma série de histórias situadas num universo em que o mundo é plano e tem a forma dum disco, quando sei que na realidade os planetas, incluindo aquele em que habito, têm formas aproximadamente esféricas? Ou a aceitar naves espaciais que navegam a velocidades superiores à da luz, ou transmissores de matéria, ou um mundo a que se acede através dum armário e que tem por autoridade suprema um leão branco que é Jesus Cristo?

A primeira resposta, é claro, é que tudo isto é ficção e se assume como tal. Mesmo o profundamente religioso C. S. Lewis nunca quis que Narnia fosse outra coisa para além duma alegoria. Tolkien nunca nos pretendeu convencer da existência real da Middle Earth (embora certos neocons pareçam ter lido Tolkien como quem lê a Bíblia e estejam convencidos que a História da Humanidade se esgota na luta entre o Império do Bem e o Império do Mal).

Autores de ficção científica hardcore como Arthur C. Clarke trentaram rodear a armadilha da irracionalidade respeitando escrupulosamente o conhecimento científico vigente à data da escrita - o que deu lugar a narrativas maravilhosas como Rendez-vous with Rama ou ao lançamento de ideias, como a dos satélites geo-estacionários, que vieram mais tarde a ser postas em prática.

Outros, como Isaac Asimov, impuseram a si próprios uma regra: limitarem-se a uma única impossibilidade científica por história. Isto tem a vantagem narrativa óbvia de disciplinar a intervenção de um qualquer Deus Ex Machina deixando uma margem suficiente para o maravilhoso - mas Asimov, não contente com esta limitação auto-imposta, ainda criou certas regras - as famosas três leis da Robótica, ou as menos famosas mas igualmente rígidas leis da Psico-História, às quais se ateve ao longo duma excepcionalmente produtiva carreira literária.

A auto-disciplina de Terry Pratchett faz uso não cair no irracionalismo ou na facilidade é completamente diferente das auto-limitações da ficção científica hardcore. Onde Clarke e Asimov são severamente clássicos, Pratchett é exuberantemente barroco. Pratchett subverte não só o nosso conhecimento da realidade mas também a própria realidade - o seu mundo, além de ser plano e em forma de disco, está assente sobre o dorso de quatro gigantescos elefantes que por sua vez estão de pé sobre a carapaça duma colossal tartaruga. E se alguém lhe pergunta sobre o que está assente a tartaruga, dá esta resposta, deliciosa de nonsense: It's turtles all the way down.

No mundo plano de Pratchett a Magia é válida e a Ciência é crackpot.* Os deuses existem comprovadamente. As bruxas (pelo menos as mais competentes) não acreditam na bruxaria e fazem tudo o que podem para evitar praticá-la. Abstracções antropormóficas como a Morte e o Pai-Natal têm existência física e corpórea. E também o Papão, o João Pestana, fadas de todos os tipos, vampiros, lobisomens, trolls, Anões renanos, valquírias nórdicas, elfos célticos, zombies caribenhos...

O desafio - que não é só narrativo e estético, mas também ético e filosófico - é este: como dar a uma lógica a todo este sincretismo?

É aqui que entra um matemático, professor de Lógica, fotógrafo, epistológrafo, raconteur, sacerdote e escritor chamado Charles L. Dodgson, ou Lewis Carroll: a ele se deve a permissão que Pratchett utiliza de subverter, inverter ou de outro modo manipular, por razões artísticas ou lúdicas, todos os axiomas do pensamento humano ou da linguagem humana - desde que a manipulação seja declarada e tudo o que se faz a partir deste ponto obedeça à lógica mais rigorosa.

Pratchett utiliza a liberdade que Carroll lhe dá para abordar todas as questões políticas, científicas, filosóficas, estéticas ou morais pelas quais se interessa; mas obedece aos limites postos por Carroll a essa mesma liberdade. O resultado é um conjunto de livros inteligentes e apaixonantes, nos quais ilustra, por acréscimo e por assim dizer a contrario, a necessidade de pensar criticamente sobre o Roundworld - este em que vivemos, que nos parece a nós tão natural e parece tão estranho ao Arquichanceler, ao Deão e aos restantes Mágicos da Unseen University de Ankh-Morpork - com excepção dumas tantas mentes brilhantes que trabalham no Departamento de Mágica de Alta Energia com um supercomputador chamado Hex, mentes estas para as quais um mundo em forma de esfera a girar à volta duma estrela enorme é um conceito que pelo menos em teoria não tem nada de inviável.

E os livros cujas capas aparecem a ilustrar este artigo? Bom, não são ficção. São obras de divulgação científica escritas em parceria com o matemático Ian Stewart e o biólogo Jack Cohen. O que os autores procuram é que da comparação das duas lógicas - a lógica ficcional do Discworld e a do Roundworld - ressalte o facto de que o mundo e o nosso conhecimento dele têm de facto uma lógica, e que as coisas não se resumem ao amontoado de declarações inverificáveis e infalsificáveis que os charlatães pós-modernos nos querem impor como único discurso possível.

Por isso, meus amigos: se nunca leram Terry Pratchett e querem conhecê-lo, não comecem por estee três títulos; mas depois de terem lido um ou dois dos outros, certifiquem-se de que estes não ficam fora do vosso plano de leitura. Vão por mim; vale a pena.

*Embora a certa altura uma das suas personagens afirme que toda a magia suficientemente avançada é indistinguível da ciência.

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